POLITICOS, NUNCA MAIS!
O desafio estava lançado!
Roberval Rezende roia as unhas, cruzava e descruzava as pernas. Alta ansiedade. À sua frente, a folha de papel pautado onde deveria colocar, por escrito, suas idéias a respeito da política e dos políticos, permanecia branca, à espera de suas primeiras escritas.
Por vezes, em lances de auto-censura, chegava a se arrepender por ter manifestado suas idéias num local tão aberto a qualquer tipo de discussão. A loja de revistas e jornais da esquina era uma verdadeira tribuna, onde qualquer um podia falar o que pensasse.
— A única maneira de acabar com a bandalheira dos políticos é acabar com a política. Fechar os partidos, liquidar de vez com essa classe de vagabundos e parasitas, que está acabando com o Brasil.
— Cuidado RR! Você pode se dar mal com essas idéias. — A advertência em tom amigável vinha do Mario Magno, o esperto negociante de revistas, jornais e livros, proprietário da “Loja da Cultura”.
— Ouça o que estou dizendo: enquanto houver político profissional, o nosso país não sai do buraco. O pior de tudo é que os bem intencionados e os competentes não têm vez. O sistema todo é viciado desde a sua origem. Como é que aparecem os candidatos? São auto-imposições, aliás, melhor dizendo, são auto-impostores. Os partidos têm de aceitar os candidatos. Não há a menor possibilidade de ser feita uma seleção.
Roberval Rezende — RR para os amigos — se empolga. Tem uma platéia cativa: são os aposentados que vão à loja pegar os jornais da manhã e por ali ficam em bate-papos mais das vezes saudosistas. Mas Roberval, sendo ele mesmo um aposentado da Prefeitura Municipal, não deixa ninguém falar, usa o recinto como um palanque. E tome palavrório.
Um ou outro ouvinte se interessa pelas idéias de RR e o provoca.
— E aí, Roberval, como será essa democracia sem políticos?
— Pra começar, não temos no Brasil a tal de democracia. O que temos aqui é uma oligarquia instalada no poder, que se reveza periodicamente no exercício do mando e que convoca o povo, de tempos em tempos, para dizer “amém” aos desmandos, à corrupção e à ladroeira.
— Mas votamos, enfim! Temos escolhas, opções.
— Uma farsa, uma brincadeira, um arremedo de democracia. Quem escolhe os candidatos para serem votados pelo povo? Você, por acaso, tem jeito de indicar um nome para ser candidato a vereador sequer?
— Os partidos indicam.
— Pura enganação. São os candidatos que se impõem. Os partidos sacramentam os nomes, nem se dão ao trabalho de saber se seus candidatos são homens honestos ou bandidos. A probabilidade de votar num cara desonesto, ladrão ou bandido é muito grande. E uma vez eleitos, gozam de “imunidade parlamentar”.
— Quer dizer que não tem gente que preste nas câmaras de vereadores, entre os deputados ou senadores?
— Poucos. Pouquíssimos. E muitos cidadãos competentes, depois de eleitos, deixam-se contaminar pela desonestidade. Viram as casacas, como se dizia antigamente. Tornam-se tão desonestos, corruptos e ladrões quanto os que já estão “estabelecidos” nas câmaras de todos os níveis.
— Olha, RR, sou malufista, no meu partido só tem gente fina. — Zéca Mendes fala com convicção. Alguns sorriem.
— Ninguém consegue se eleger sem partido. Não existe candidato independente. Uma vez eleito, o cidadão tem de dançar conforme a música, isto é, participar de manobras políticas, fazer vista grossa para as bandalheiras internas, as votações arranjadas, permitir ser manipulado pelos donos efetivos do poder, pelos lobbies. Enfim, tem de inserir-se no sistema. Uma maçã sadia não consegue ficar muito tempo entre as podres. Ou sai ou apodrece também. A contaminação política é geral.
— Mas temos bons governantes que foram bons políticos.
— Me diga cinco, só cinco, neste Brasil inteiro.
— O atual presidente, por exemplo.
— Rá-rá-rá! Logo quem! FHC? O homem que traiu suas próprias idéias. Pois não foi ele quem disse recentemente “Esqueçam o que escrevi?” . Pois é como digo, se não é desonesto nem bandido, é vil traidor de seu ideal — se é que teve algum, em qualquer momento de sua vida pública.
A manhã avança, o sol bate em cheio nos toldos sobre as portas. O calor aumenta lá fora, e dentro os ânimos também esquentam. Os clientes aumentam. Seu Mário anda de lá pra cá, atendendo os fregueses entre as estantes. Alguns fregueses se dirigem para o trabalho, passam apressadamente para pegar os jornais.
Dentre os habituais, eis o Juvenal Santos, radialista e jornalista, que aprecia aqueles papos dos aposentados. São pessoas com experiência de vida, mas, no geral, intolerantes com as novidades, as mudanças sociais. Aferrados às suas idéias, aos seus partidos políticos e times de futebol, cada qual defende com unhas e dentes suas opiniões.
Juvenal ouve, lança uma pergunta capciosa, nem espera a resposta (já sabe todas, de cor e salteadas), sai com seus jornais e revistas sob o braço, que joga no banco do carro e parte para o trabalho.
Na manhã em que RR desancava com os políticos, Juvenal achou graça no pouco que ouviu e perguntou, como que desafiando Roberval Rezende:
— E quem vai ficar no lugar dos políticos profissionais?
— Homens escolhidos por sua capacidade e honestidade — respondeu rápido RR.
Juvenal surprendeu-se com a resposta e com as possibilidades de desenvolvimento do assunto.
— Como? Quem vai escolher quem?
— É simples. Uma prova nacional, seis meses antes das eleições. A prova para os candidatos a candidatos.
— Prova?
— Sim, prova, exame, dê o nome que quiser. Já temos o “provão” para médicos, engenheiros, advogados e outros liberais profissionais. Isto, depois de cursarem a universidade. Por que não submeter os que pleiteiam cargos eletivos a um teste que demonstre, pelo menos, conhecimento mínimo para a condução dos negócios dos municípios, dos estados e do país?
— Mas isto não afasta os mal-intencionados, os infiéis aos partidos, os traidores de idéias, os fazedores de promessas. — Juvenal prolongou um pouco mais sua permanência na loja de revistas para ouvir a resposta.
— Acabar com essa raça de víboras, não acaba, mas diminui muito. Quem quer que queira ser candidato, tem de se submeter à prova. Nem precisaria ter partido. Acabaria de vez com essa hipocrisia que é a fidelidade partidária. Uma pontuação de 1 a 100 iria colocar os mais cultos — ou os menos ignorantes — no topo da classificação. O certificado com as notas teria de ser registrado junto com a candidatura e exibido em qualquer propaganda. Isto iria coibir, sim, uma porção de aventureiros e seria incentivo para os cidadãos capazes.
Juvenal sentiu aquele arrepio profissional. Ali tinha coisa. Seu faro de jornalista estava sentindo. A idéia, revolucionária, sem dúvida, era uma dessas coisas que raramente apareciam na mídia. Podia ser algo para ser aproveitado em seu programa semanal de entrevistas. Se apresentada, poderia ser taxada de bizarra, porém chamaria a atenção, iria dar IBOPE. Saiu de fininho, deixou RR falando para a platéia de diversos “cabeças brancas”.
Na manhã seguinte, Juvenal passou, como de costume, pela loja de revistas, e lá já estava Juvenal fazendo apologia — de outra idéia revolucionária. Chamou-o de lado, cochichou-lhe algo e ambos entraram no carro do radialista.
Roberval olha fixamente para o papel em branco à sua frente. As idéias se amontoam em sua cabeça, está difícil ordenar tudo, como Juvenal sugeriu. A conversa que ambos tiveram foi surpreendente. RR jamais pensou que suas idéias pudessem merecer a atenção — logo de quem! — de um radialista com programa de grande audiência. Falar era uma coisa, escrever e colocar as idéias em ordem era outra bem diferente.
— Vou levá-lo para meu programa de entrevistas de sábado próximo. — Juvenal fora incisivo. — Mas quero, antes, um resumo (usara a palavra report, que RR mal compreendera) das idéias, por escrito. Vou usar este report como lead das perguntas que vou formular.
No primeiro momento, RR empolgou-se, mas agora estava ansioso. Por onde começar?
A entrevista foi um sucesso. Roberval Rezende teve seus quinze minutos de glória no programa “Entrevistas Inteligentes”, aos quais se seguiram outros minutos concedidos para responder às perguntas dos ouvintes.
— O assunto é polêmico, vai render muito questionamento. Prepare-se para satisfazer a curiosidade dos ouvintes. — Avisou Juvenal logo depois de terminar o programa.
E assim aconteceu. A idéia aparentemente estapafúrdia de RR (como já estava sendo tratado sempre que voltava aos programas de rádio) foi tomando corpo, formatada e ordenada. Aperfeiçoada à medida que RR respondia às perguntas dos ouvintes.
— Qual entidade seria responsável pela aplicação do “provão político?” — Pergunta do ouvinte Manoel Mascarenhas, de Goiânia.
Juvenal interpunha-se entre a pergunta do ouvinte e a resposta de Roberval Ramos.
— Atenção para os esclarecimentos de Roberval Rezende, o nosso cientista social que quer revolucionar a política nacional!
Roberval entrava com sua voz um tanto quanto titubeante. no início, mas crescendo em timbre e clareza à medida que ia respondendo.
— Não haverá de ser atribuição dos partidos políticos. Será tarefa para os tribunais eleitorais. Cada estado teria o seu nível. Evidentemente não seria justo aplicar a mesma prova para candidatos a vereador de cidades como São Paulo ou Rio e os candidatos de Cabrobró ou Sopé da Serra. Também aos tribunais eleitorais competirá a emissão dos certificados, com as notas obtidas pelos candidatos. Claro que não haveria a reprovação, mas numa escala de 1 a 100, é óbvio que notas menores de 60, ou, digamos, de 50, excluiriam automaticamente o candidato do páreo da eleição.
Outra pergunta, em carta de Maria Inez Sobral, de Condenópolis: “Haverá exigência de graus de escolaridade para os candidatos?”.
— Claro que sim. Para candidatos a vereador, a conclusão do curso básico é obrigatória. Para cargos mais elevados, mais exigências. Você sabe quais são as exigências mínimas para candidatar-se a presidente da república? Que seja brasileiro e que tenha, no mínimo, 35 anos de idade. É muito pouco, não é mesmo? Do jeito que está, qualquer analfabeto, maluco ou aventureiro que seja brasileiro e que tenha 35 anos, pode ser presidente.
— Como cercear o acesso de cidadãos desonestos, que estejam em débito com os cofres públicos ou condenados pela justiça, ou, até mesmo, respondendo a processos judiciais? Como evitar o retorno de pessoas com os direitos políticos cassados? — Perguntou Olavo Ramos, do Rio.
— Bem, uma vez aprovado no teste, e obtida nota necessária para fazer sua campanha, estas situações seriam colocadas aos eleitores, os quais, em última instância, votariam ou não no candidato.
RR melhorava constantemente o seu tema. Burilava as respostas e tornava-se cada dia mais convincente. Mas essa idéia trazia no seu bojo, na sua origem, o gene da autodestruição. Juvenal sabia disso desde o início, mas relutou em alertar RR.
— Sei que minha idéia é perigosa e revolucionária. — Concordou Roberval, quando o jornalista o alertou sobre esse aspecto. — Sei que depende dos próprios deputados federais e dos senadores, para sua aplicação. É, no mínimo, uma sugestão de extinção dos partidos políticos. Uma lei que criar o provão para candidatos será a lei da falência dos políticos profissionais.
“Tudo o que um homem imaginar, outros homens realizarão”, escreveu Julio Verne. Enfim, apareceu um deputado que se propôs levar a idéia de RR à tribuna da câmara dos deputados. Pelo jeito, era o primeiro candidato ao suicídio político: barbudo, dono de uma voz esganiçada e agressiva, disparando as palavras como balas de metralhadora. Um deputado tão infactível quanto a proposta que apresentou ao plenário.
Houve um auê danado, uma convulsão coletiva-coorporativa de todos os seus parceiros. A proposta não foi sequer discutida. O presidente da câmara, um baiano de poucas palavras, propôs e obteve arquivamento sumário da bizarra proposta de lei.
Roberval Rezende não desiste. Continua sendo cada vez mais ouvido e questionado. Mais e mais pessoas escrevem, telefonam, mandam faxes e e-mails. Todos são respondidos. O horário de RR é ampliado. Consegue um patrocínio importante, uma cadeia de supermercados dá apoio. Seis meses após o lançamento da idéia, RR vai à televisão. Juvenal mantém-se sempre ao seu lado, mais parece agora um vice de RR, a criatura superando o criador.
Alçado à categoria de “cientista político”, Roberval Rezende esnoba sua idéia, desafia os políticos. A mídia se divide: uma forte corrente de apoio a RR é combatida por muitos jornalistas, escritores. A idéia é polarizada. Juvenal capta o momento:
— Você tem de ir em frente, RR! Tem de se infiltrar no sistema, agir como guerrilheiro e espião ao mesmo tempo.
— O que quer dizer com isso? — Ofuscado pelo sucesso, RR não percebe o exato sentido, a extensão do significado das palavras de Juvenal.
— Você tem de entrar no sistema para destruí-lo. Como um vírus entra num computador. Tem de defender suas idéias dentro da arena dos políticos.
Foi então que Roberval Rezende compreendeu. Naquele mesmo dia filiou-se ao Partido Ecológico, Seção do Estado do Paraná. Na semana seguinte, visitou o deputado Caio Lino, presidente do PE, com uma proposta:
— Quero ser deputado estadual, pelo Partido Ecológico.
Foi o primeiro ato para a morte do ideário antipolítico de Roberval Rezende.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 5.10.2000- Conto # 52 da Série Milistórias