A FESTA DE SÃO BENEDITO
Ninguém sabia como os dois enriqueceram. Corria a lenda de que teriam encontrado um tesouro enterrado. Onde? Quando? Nenhum habitante da velha cidade de Oleiros atrevia um palpite, já que a história era apenas um amontoado de ouvir-dizer e diz-que-diz.
Por serem irmãos e descendentes de escravos, Benedito e Simão tinham uma história de via em comum. De seus pais, pouco se lembravam: beneficiados pela Lei do Ventre Livre, foram arrancados da senzala, dos braços do pai e do colo da mãe ainda crianças de 4 ou 5 anos e abandonados na periferia da então Vila de Nossa Senhora dos Oleiros.
Misteriosos lá isso eram, pois que além de terem muito dinheiro, eram proprietários de extensa fazenda pelas bandas do Morro Vermelho, distrito das piores terras de todo o município. Mesmo assim, trabalhando dia e noite em suas glebas, conseguiram amealhar considerável patrimônio, resultado de muito esforço e dedicação na lavoura e na criação de gado. Mas a imaginação do povo não compreendia isso e atribuía origens misteriosas, místicas à riqueza dos dois pretos.
Ninguém sabia como a prosperidade havia chegado aos dois irmãos forros. Dizem que começaram cultivando pequeno trato de terra devoluta, à qual foram ajuntando outras pequenas glebas. Compraram também alguns sítios confrontantes. Através dos anos, quietamente e com muito trabalho, formaram um pequeno feudo. Constituíram famílias numerosas. Só empregavam os companheiros e conhecidos negros em suas lides e viviam segregados.
Quando a produção de suas terras começou a ser negociada na vila, criou-se a lenda: como é que filhos de escravos, alforriados e abandonados, conseguiram formar tal patrimônio? A explicação, na imaginação popular, só podia ser fantástica, extraordinária. Tesouro enterrado, ajuda do sobrenatural, contrato com o zarapelho.
A ninguém ocorreu que a prosperidade de Simão e Benedito pudesse advir do trabalho árduo, em secas-e-verdes, plantando arroz, milho, feijão, cana, mandioca e quejandos, e na criação de gado. Prosperaram através dos anos de sáfaras safras, as inundações do Rio Quente, os estios. Enfim, todas as dificuldades, as lutas, esforços, morte e renascimento da vida de trabalhadores do campo, dedicados e competentes.
Devagar, foram chegando ao povoado. Primeiro, com suas produções, queijo, arroz, feijão, milho, fumo, rapadura. Tudo produto de primeira, que Totó Miranda, o esperto comerciante atacadista, tinha preferência na compra, por estar seu estabelecimento na entrada da cidade. Era o primeiro a negociar com Simão e Benedito, que chegavam com o carro-de-bois repleto de mercadorias.
Depois, foi o casamento, no mesmo domingo, de Simão com Rosa, Benedito com Mariana. Já tinham filhos na ocasião e os batizados aconteceram em seguida aos casamentos. A partir de então, atraídos pelo dedicado Monsenhor Onofre, passaram a freqüentar a Igreja todos os domingos.
Alguns anos passados, compraram um terreno na cidade e mandaram construir enorme casa. Continuaram vivendo na roça. Na cidade, passavam apenas os dias mais importantes, de festas de fim-de-ano e da padroeira da pequena cidade e a festa das congadas.
De bem com a vida, alegres e comunicativos, logo se afeiçoaram à festa das congadas. Ou foram os congadeiros que se afeiçoaram aos dois irmãos? De qualquer modo, não passado muito tempo, dois ternos de congadeiros eram patrocinados por Simão e Benedito.
No fim de cada ano, a cidade virava uma festa só. Os congadeiros emendavam o Natal e o Ano Novo com uma semana de coroações dos santos de suas devoções: São Benedito, São Domingos, Santa Ifigênia, Santa Catarina, São Jerônimo. As cerimônias se sucediam: levantamento dos mastros com as bandeiras de cada santo, os desfiles dos ternos multicoloridos pela cidade, todas as tardes, com o barulho cadenciado dos tambores e as cantigas só inteligíveis para os iniciados, as barraquinhas erguidas na praça principal, as chegadas e saídas dos congadeiros na Igreja Matriz, acompanhando os devotos que iam cumprir suas promessas.
A festa reunia todos os habitantes da cidade e muitos oleirenses que residiam fora voltavam para a Semana dos congadas. Monsenhor Onofre era também entusiasmado por essa expressão sincrética dos negros que uniam as tradições africanas ao culto dos santos católicos.
Entusiastas das congadas, os irmãos contribuíam generosamente com donativos e doações diversas para o êxito das festividades. Essas contribuições iam finalmente ficar com a Paróquia. Tudo correndo às mil maravilhas.
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Durante muitos anos a convivência amigável entre os congadeiros, os irmãos e Monsenhor Onofre proporcionou à cidade maravilhosas. Mas um dia . . .
— Simão, acabei de saber, o Monsenhor Onofre foi transferido. Deve partir ainda esta semana. — Benedito chegou a rua com a notícia.
A princípio, foi a tristeza que desceu sobre a cidade. Em seguida, a preocupação:
— Quem será o novo vigário ? A gente já está acostumada com Monsenhor Onofre.
— E pra quê essa transferência depois de mais de 30 anos? Parece até perseguição com nossa gente.
A saída de Monsenhor Onofre e a chegada do Padre Ranzine foram simultâneas. O monsenhor embarcou. deixando a cidade, na tarde do mesmo dia em que chegou o Padre Ranzine. Embora triste pela partida do antigo monsenhor, a população recebeu o novo padre com boa vontade e caridade cristã.
Apenas instalado na velha casa paroquial, o novo padre começou a mostrar que pretendia fazer mudanças na Paróquia de Santo Ildefonso, padroeiro da cidade. Modificados os horários das missas, as novenas de sábado passaram a ser às quartas-feiras. Muitas outras novidades para o gosto dos fiéis, acostumados à rotina, aos sermões e à complacência de Monsenhor Onofre.
No final do ano, revelou-se outra faceta do novo padre: o preconceito contra as congadas e os congadeiros. Reduziu o horário da permanência dos ternos na Igreja Matriz, "solicitou" esmolas de todos os fiéis que iam cumprir suas promessas acompanhando os ternos. Exigiu um pagamento de todos os barraqueiros que se instalassem ao redor da praça da Igreja Matriz durante a festa das congadas. O maior agravo, contudo, ocorreu quando Padre Ranzine ignorou o Rei Congo na celebração da missa do encerramento da festa. O Rei Congo era geralmente o congadeiro mais idoso, a figura central de toda a festividade na última semana do ano, estimado e venerado por seus vassalos.
— Assim não dá. O novo padre está a fim de acabar com as congadas. — Era a reclamação geral dos congadeiros, que se distribuíam por mais de dez terno. Cada bairro se orgulhava de seu grupo e trabalhava para a confecção de roupas, reforma das caixas, acréscimo dos enfeites na bandeira do santo protetor, coisas assim.
No ano seguinte, houve um verdadeiro choque entre os congadeiros e o padre Ranzine. A proibição da entrada dos ternos na Igreja Matriz, sob o pretexto de que "emporcalhavam a igreja com o barro de seus pés sujos"( a maioria ia descalça), conforme disse textualmente em sermão na missa de domingo. Foi a pá-de-cal na festa dos congadeiros, como até então vinha sendo realizada por anos sem conta. A tradição foi literalmente quebrada, os congadeiros se sentiram escorraçados da Igreja Matriz.
— Vamos tomar alguma providência. Desse jeito num vale a pena continuar sendo congadeiro. — Reunidos na casa de Benedito e Simão, os capitães de todos os ternos se queixavam amargamente das restrições impostas.
— Temos de ir com calma, pessoal, não podemos contrariar as determinações do padre Ranzine. Afinal, ele é o pároco, temos de respeitar. — Conciliador, Simão deixava que os capitães se queixassem ali, entre os amigos, antes de tomar qualquer providência.
— A gente podia ter nossa capela, só para a festa dos congadeiros. — Sugeriu o capitão Melquíades, do terno dos Jataiobas.
A idéia ousada e altaneira, eivada de rebeldia, foi aceita, por quase todos. Mas o entusiasmo foi logo apagado, ao verificarem as dificuldades na sua realização.
— Não temos recursos. Com que dinheiro vamos construir essa capela?
— Uai, gente, o Benedito e o Simão bem que podiam começar ajudando a gente. Eles têm aquele terrenão ao lado da casa deles. A gente podia construir uma capelinha ali . . .
A ajuda solicitada aos irmãos de cor e de festas não se limitou à cessão do terreno: transformou-se na construção completa da capelinha, pequena e simples consoante os desejos dos humildes congadeiros .
Quem não gostou da idéia nem da iniciativa foi, claro, o padre Ranzine, que viu seu poder absoluto sobre os fiéis ameaçado por um "bando de gente que não sabe rezar sem bater caixa, não quer obedecer os preceitos da Santa Madre Igreja, são quase hereges. Essa obra é orientada por inimigos da Igreja. Não terá prosseguimento, porque Deus não vê com bons olhos essa rebeldia..."e por aí foi na sua pregação na missa do domingo.
Em seis meses a capela foi construída. Durante a construção, sem que ninguém desse opinião a respeito, a capelinha foi sendo chamada de "Igreja de São Benedito". Ao se aproximar o fim do ano, uma comissão de congadeiros — todos capitães de ternos — visitou o padre Ranzine.
— Vimos solicitar a consagração da Igrejinha de São Benedito. Tá tudo pronto, até a imagem do santo já chegou. Veio de S. Paulo, é uma beleza de estátua.
— Já falei diversas vezes na Igreja, essa capela não é da paróquia, não vou consagrar não. E qualquer culto ou festa que for realizada nesse local, será pagã. Quem tomar parte, será excomungado. — Curto e grosso, o padre Ranzine colocou ( ou pensou que colocara) um ponto final nas pretensões dos congadeiros, que saíram murchos e desconsolados.
No sermão da missa de domingo, o padre Ranzine esconjurou:
— A Igreja não tolera rebelião como essa dos congadeiros. A paróquia não patrocinou essa construção .Não vai ser consagrada. Os fiéis ficam logo avisados: qualquer culto que for realizado na capelinha será pagão. Coisa do demo, e quem participar vai ser automaticamente excomungado.
Estava criado o impasse. O dia de hastear as bandeiras dos santos padroeiros era invariavelmente oito de dezembro. Estava próximo. A capela pronta, o sino recém-instalado balançava-se no alto da estreita torre, a construção de paredes caiadas, todos os nichos dos santos protetores com as respectivas imagens. No altar-mor a imagem de São Benedito, de ébano, caprichosamente entalhada por famoso escultor da capital. Enfim, um templo digno e merecedor do maior respeito.
Mas o padre Ranzine não queria nem saber, qualquer coisa que fosse realizada lá "naquele local"(nem o nome da igreja ele pronunciava) era apenas desobediência e desrespeito. Ele não fora consultado uma vez sequer, não benzia a igreja e pronto ! Todos os domingos, do alto do púlpito, nos sermões que se estendiam por monótona meia hora de insuportável lenga-lenga, desancava os congadeiros, os dois irmãos que patrocinaram aquela "aberração e atentado contra a Igreja". Não media palavras nem tempo para suas imprecações contra a construção pagã.
Os congadeiros — e toda a população dos bairros — sentiam-se magoados e, por conta dessa atitude feroz do padre, foram perdendo o respeito e o temor por suas ameaças.
— Se o padre não quer benzer, vamos fazer a festa na porta da capela. — A sugestão do Capitão Rozendo foi uma centelha no meio da pequena multidão que viu na idéia a solução para o impasse.
— É isso mesmo! Vamos levantar os mastros e fazer tudo na pracinha defronte a "nossa" capela. Assim o padre não pode excomungar, a gente nem abre a capela.
Os mastros com as bandeiras dos cinco santos foram levantados no dia 8 de dezembro, não mais em frente à Igreja Matriz, e sim na pequena área defronte à Capela de São Benedito. Sob o rataplã rítmico e misturado de todos os ternos reunidos, as altas varas de bambu, enfeitadas com fitas multicoloridas de seda e de papel crepom foram erguidas. Cada bandeira, ao ser elevada, era saudada por vivas e palmas da multidão dos devotos: São Domingos, São Benedito, Santa Ifigênia, Nossa Senhora do Rosário, São Jerônimo e Santa Catarina.
— Viva Santa Catarina !
— Vivááááá !
— Viva São Benedito !
— Viváááááááá !
— Viva Seu Simão e seu Benedito !
— Vivááááá ! Vivááááá !
Foi aí que o Pai Salustino, curador de fama, adivinhador e feiticeiro — a seu respeito corriam inúmeros causos e lendas, tão velho que sua carapinha branca estava que era só uma orla ao redor do cocuruto careca — foi então que ele gritou, mais alto que todos:
— Que Simão e Benedito vivam para sempre ! Viva Simão ! Viva Benedito !
— Viváááááááá ! — respondeu a multidão, num alarido crescente e infindável.
Foguetes espocaram numa metralha ensurdecedora. A festa começou. Os ternos foram se dirigindo cada qual para seu bairro, rataplãs ecoando pelas ruas com redobrado vigor. A cidade encheu-se de alegria, de barulho, de animação.
Os barraqueiros se instalam gratuitamente, tomam conta da avenida, pois a pracinha é exígua. No primeiro ano, foram apenas meia dúzia, s barraqueiros não pensavam que a idéia iria pegar e que o movimento seria efetivamente nas adjacências. Entretanto, as barraquinhas armadas na Praça da Matriz amargaram um prejuízo danado. Ninguém apareceu por lá, toda a festa estava na avenida e na pracinha dos congadeiros.
A capela permaneceu fechada só no primeiro ano. A partir do segundo ano foi aberta, mesmo sem estar benzida pelo padre Ranzine ou por qualquer outro padre. Os congadeiros, os devotos cumpridores de promessas e o povo em geral entraram livremente, ignorando completamente as ameaças feitas pelo pároco, que prosseguia nos seus destampatórios verbais.
A visita do bispo às vésperas da festa dos congadeiros, no terceiro ano de sua realização na Igreja de São Benedito, que pretendia ser pomposa e ameaçadora, foi inócua. A ameaça de excomunhão, além de ter sido em vão, parece que incentivou o comparecimento do pessoal à festa.
O movimento comercial das barraquinhas ( livres da "taxa" antes cobrada pela Igreja Matriz) e dos próprios comerciantes da avenida intensificou o interesse pela festa. Para eles era bom uma festa cada vez melhor, mais animada a cada ano.
A afluência de gente das cidades vizinhas, dos oleirenses que residiam fora e vinham passar o Natal e assistir a festa das congadas em Oleiros davam um movimento inusitado á cidade.
O padre continuou esbravejando. Inutilmente. Não mais falava em excomunhão, agora estava de olho no dinheiro das esmolas feitas pelos devotos e no movimento comercial das barracas: mais de 200 no quinto ano após a abertura da Capela de são Benedito, e crescendo cada vez mais.
Livre de qualquer taxa ou licença paroquial, florescia o comércio durante os dias da Festa das Congadas. A cupidez do padre Ranzine imagina e calcula o quanto poderia render à paróquia a cobrança de uma taxa sobre cada barraquinha ou carrinho de pipoca, cachorro-quente, mação do amor, tiro ao alvo e muitas outras.
No sétimo ano após o ato de rebeldia, o padre tomou medidas legais. Através do bispado (para que a situação não se caracterizasse o padre Ranzine contra os congadeiros ) uma ação legal foi aberta. O bispado reivindicou a posse da Capela de São Benedito para a Igreja Católica. Acusou os promotores da festa das congadas de apoderarem-se indevidamente das doações feitas. As doações — generosas e valiosas — eram para os Santos da Igreja Católica e pertenciam, pois, à Paróquia, administradora terrena dos bens dos Santos por ela canonizados.
Foi através deste sofisma, defendido pelo advogado Dr. Olavo Taborda e aceito pelo Dr.Rubens Campos, juiz carola, beija-mão do Bispo, membro da Ordem da Opa, que a Capela de São Benedito passou para a Paróquia de São Ildefonso.
Sem tardança o padre Ranzine toma posse da igrejinha, procede a sua consagração e permite a continuação das festividades, como os congadeiros faziam antigamente na Igreja Matriz. Passa a cobrar a taxa dos barraqueiros. Exige espórtula dos fiéis que vão cumprir suas promessas. Instala, enfim, todo o esquema anteriormente renegado pelos congadeiros.
O que não impede o movimento cada vez maior. A Fessta de São Benedito tornou-se a mais importante da paróquia, superando em movimento, em numeros de devotos e em animação a festa de Santo Ildefonso.
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A festa das congadas continua em Oleiros, sonolenta cidade situada nas faldas do Morro da Canasdtra. Todos os anos pode-se ouvir, a partir de agosto, nas noites das sextas-feiras e dos sábados, o barulho distante dos congadeiros, ensaiando suas cantorias e afinando seus tambore, pandeiros, vilas e violões. Cada congadeiro peleja para ser o destaque da festa. Melhoram os passos, as danças, os malabarismos, repetindo versos e cantigas cujos significados perdem-se na noite dos tempos, evocando rituais da distante África, deonde os sofridos negros escravizados trouxeram para os rincões brasileiros.
Simão e Benedito, os patrocinadores da construção da pequena capela transformada em igreja, aceitaram com benevolência toda a confusão causada pelo padre Ranzine, numa demonstração clara de que praticavam mais o amor de Cristo que o próprio padre.
O tempo passa para todos. Padre Ranzine morreu, morreram os velhos capitães dos ternos mais antigos. Entretanto, lá estão no velho casarão, os dois irmãos: as cabeças cobertas por alvas carapinhas, sobreviventes de muitas gerações. Pouca gente sabe de sua história, alguns ainda se lembram daqueles tempos de devoção e rebeldia. Viraram, eles próprios, a lenda viva dos congadeiros. Pois a lenda conta que, na ocasião em que pela primeira vez foram levantados os mastros com as bandeiras dos santos no terreno da capelinha, o velho Pai Salustiano lançou sobre os dois benfeitores dos congadeiros os desejos de que eles vivessem para sempre.
Assim, Benedito e Simão vão atravessando o tempo, sem contar o tempo vivido.
ARGOS = ANTONIO ROQUE GOBBO - Belo Horizonte = 02.junho.2006
Conto # 27 da Série Milistórias - Publicdo em “A Babel da Torre”, vol. 2 da Coleção Milistórias.