024-NO SÍTIO DO PICAPAU AMARELO

Na tarde mormacenta, o torpor subindo pela cabeça, após a deliciosa feijoada, Zé Bento deixa-se ficar sentado na confortável cadeira de braços , usufruindo a brisa que sopra vindo do rio, lá bem abaixo, no fundo do vale.

Era uma rotina de todos os domingos. Após o almoço, desfrutado com toda a família, aquele cabecear preguiçoso era um ritual. Deixava as idéias fluírem livres. Muita inspiração obtivera o escritor naqueles momentos de banzo causado pela boa comida, antecedida de uma generosa dose de cachaça feita ali mesmo, no engenho da fazenda.

— Papai, vem com a gente. Vamos andar um pouco pela estrada .

Afável, Zé Bento deixa sua comodidade e acompanha as crianças, seus filhos Marta e Edgar , mãos dadas com a suave menina de seus olhos.

— Por onde vamos? — indaga, fazendo-se de desorientado.

— A gente vai pra beira do rio. O Timóteo armou um balancinho no velho pé de jatobá, vamos brincar no balanço. .

As crianças correm, serelepes, não esperam pelo pai. Ao chegar numa bifurcação da estrada, viram na direção do rio. Zé Bento, entretanto, toma caminho pelo outro braço da estrada , seguindo no rumo do nariz, como ele mesmo gosta de dizer.

Sem pressa, sem destino, eis que, sem se dar conta do quanto caminhara, aproxima-se do sítio de sua vizinha Dona Benta , com a tabuleta em letras românicas, anunciando :

=== SÍTIO DO PICAPAU AMARELO ===

Intrigado e surpreso, Zé Bento chega-se à porteira.

— Ô de casa ! — grita, ao mesmo tempo em que bate palmas. Em seguida, vê o sino e puxa o cordão, provocando badaladas que quebram a quietude da tarde.

Lá de dentro vem a resposta costumeira :.

— Já vai, espera um instantinho !

A casa está mais acima da porteira, no final de curto caminho ladeado de flores silvestres. Uma casa simples, de alvenaria, com telhas coloniais e largo alpendre fronteiriço. Nas janelas, jardineiras com gerânios vermelho e salmão dão ao ambiente um toque de alegria e ao mesmo tempo, de simplicidade. No alpendre, além das cadeiras e bancos, usuais em toda casa de sítio ou de fazenda por aquelas bandas, vêem-se vasos de samambaias choronas e dessa planta chamada jibóia, trepadeira que lança seus tentáculos pelo beiral do telhado. Tanto verde e sombra dão ao local a impressão de total frescor .

Em seguida, desce pelas escadas da casa uma enorme preta, lenço vermelho amarrado na cabeça, alvo avental sobre ampla saia que lhe vai aos tornozelos. Os pés grandes mal cabem nas chinelas surradas. Dado o tamanho, é notável a destreza com ela caminha em direção à porteira.

— Boa Tarde, Doutor ! — um misto de surpresa e curiosidade nos olhos brilhantes da negra.

— Boa Tarde! Sou vizinho de vocês, ali da fazenda Buquira, ia passando, resolvi visitar.

— Ah, pois, vamos adentrando! — A enorme boca abrindo-se num sorriso, expondo grandes dentes, gengivas, a língua, tudo enorme. Abre o cadeado e escancara a porteira.

Zé Bento adianta-se, estende a mão para a mulher, que aperta a com força.

— Dona Benta está lá na sala. Entra, fica à vontade.

Mas Dona Benta se adianta, vem até à varanda, e vai logo abraçando o recém-chegado, com a cordialidade de velhos amigos.

— Mas que surpresa, doutor Lobato ! Há quanto tempo...

— É verdade. E a gente mora tão perto.

Tomam assento ali mesmo, entre as verdes folhagens. E começam o bate-papo, cada qual desejando saber das novidades do outro. Dona Benta determina à empregada:

— Nastácia, vai passar um cafezinho pro Doutor.

Lá se foi Anastácia para a cozinha, de bom humor, mas querendo ficar para escutar a conversa de Dona Benta e Zé Bento : o Doutor Lobato, como ela insiste em chamá-lo. Falam sobre problemas com a administração das terras, falam do tempo, das colheitas.

Chega Anastácia com o café e uma grande bandeja repleta de quitandas e doces: ela sabe agradar as visitas da patroa.

A conversa pende para outros assuntos.

— Sabe, Doutor Lobato, estou recebendo da Capital uma coleção completa de obras clássicas de autores de todo o mundo. Quem me mandou foi meu genro Gusmão, pai do Pedrinho . Ele trabalha no jornal e está sempre atualizando minha biblioteca.

— Prezo muito o Doutor Gusmão — afirma Lobato — Leio seus artigos no "Estado de S. Paulo". Ele é raçudo e corajoso para escrever.

— Pois é. Mas, sabe, Doutor, a coleção é muito bonita, porém é editada em Portugal. Comprei para recontar aquelas histórias maravilhosas para os meus netinhos. — Dona Benta se referia a Pedrinho e Lúcia, que moravam no sítio, com ela e Anastácia.

— Realmente, nossos editores estão muito atrasados. Só editam livros escolares, e assim mesmo, olhe lá ! Minha maior dificuldade com as traduções que fiz de livros infantis e juvenis, foi justamente em encontrar editores. Não querem se arriscar a publicar nada que não seja de uso obrigatório, como as cartilhas e livros para escolas. Daí que os escritores não têm incentivo, não vale a pena escrever. Os escritores de livros morrem à míngua aqui no Brasil.

— Ah, que bom se tivéssemos escritores brasileiros que escrevessem sobre nossas coisas...— Suspira a velha senhora, voraz leitora de livros.

— Tenho cá comigo umas idéias, uns sonhos. A senhora sabe, administrar fazenda não é minha vocação, eu tenho minhas pretensões literárias, além de traduzir essas aventuras de Peter Pan, Robin Hood e Robinson Crusué.

— Ah, que bom é saber disso, doutor Lobato. Tenho certeza de que quando o senhor começar a escrever, não vai parar mais.

— Mas vou mais além, na minha imaginação: quando escrever, quero ter minha própria editora, eu mesmo vou produzir meus livros. E vou produzir muito, pois aumentando o número de volumes por edição, o preço cai e assim é que se populariza o livro. — Zé Bento se entusiasma, levanta-se da cadeira, e encosta-se no pilar do alpendre.

— E tem mais. Não temos nem produção de papel aqui no Brasil. Penso que pode ser uma boa idéia encher a fazenda de pinheiros, milhões de pinheiros, para produzir a polpa, fazer papel, editar os livros. Penso em fazer livros na mais completa acepção da palavra: escrever, imprimir, distribuir, vender. Milhares, milhões de livros. Quero produzir livros como Henry Ford fabrica automóveis: uma linha de produção completa, da árvore ao livro impresso ! A senhora sabe, um país se faz com homens e livros !

— E o que pretende escrever, Doutor. ?

— Bem, pra começar, quero escrever para as crianças e os jovens. Já imagino uma situação em que um garoto e uma menina "entram" pelos livros adentro, vão vivendo as aventuras clássicas, tudo numa narrativa bem nossa, coisa para os brasileirinhos lerem e vibrarem com as peripécias dos dois . Penso também em popularizar a matemática, a história, a ciência, a nossa língua portuguesa, através de histórias infantis e juvenis que possam até ajudar os professores a meter na cabeça dos alunos os conhecimentos de assuntos chatos, monótonos.

— Mas é uma idéia maravilhosa, Doutor Lobato ! Vou torcer para que o senhor consiga realizar isso tudo que está imaginando.

— E vou além: imagino grandes séries, coleções de livros traduzidos e adaptados para nossa gente. A senhora já imaginou as grandes aventuras, as epopéias clássicas, em versões populares? Penso até nos nomes das coleções: Coleção Terramarear para aventuras ao redor do mundo todo; Coleção Paratodos com histórias adultas, de terror, romances policiais, novelas criminais, esta série para os adultos, homens e mulheres...

— Mas as mulheres só gostam de romance do tipo água-com-açúcar...

— Isto é o que os escritores românticos meteram nas cabeça delas. Na verdade, as mulheres também apreciam bons livros, sejam amenos, sejam profundos.

Entusiasmados com a conversa, nem percebem a chegada de uma garota e de um menino, adolescentes de doze, catorze anos. Chegam esbaforidos, rostos queimados pelo sol, cabelos desalinhados.

— Oi, vó! - e passam correndo pela avó e Zé Bento.

— Esperem aí, garotos. Venham aqui, conhecer um escritor de histórias.

Voltando-se, colocam-se ao lado da avó.

— Vamos,cumprimentem o Doutor Lobato,o grande contador de histórias do Brasil !

Zé Bento não sabe se a jovial avó está falando sério ou se é uma brincadeira com as crianças... ou com ele, Zé Bento.

— Espera aí, Dona Benta, estamos apenas divagando.

— Divagando, divagando, é que se vai realizando ! -- brinca com as palavras a esperta leitora de clássicos.

Zé Bento cumprimenta os garotos, que, cumprida a formalidade imposta pela avó, disparam para dentro da casa.

— Essas crianças... Sabe, Doutor Lobato...

— Me chame de Zé Bento, por favor.!

— Tá bom. Sabe, Seu Zé Bento, eu até que gostaria de participar dessa sua idéia. Penso que todas as histórias do mundo podem ser passadas para nossa gente, e que isto pode até dar lucro para quem resolver enveredar por esse negócio.

— Claro que dá lucro. Mas envolve uma grande organização, será uma verdadeira indústria.

— Só a imaginação de um homem inteligente como o senhor é que pode ver todos os detalhes deste grande negócio cultural.

— Tenho mais idéias. Por exemplo: colocar um contador de histórias no topo da mais alta montanha dos Andes, e de lá, ir contando a História das Américas e, depois, as lendas, os contos, as histórias mais interessantes, tudo sobre todas as Américas.

— Mas como seria esse contador de histórias no alto do ... qual é mesmo o nome do lugar?

— É o topo do vulcão Aconcágua, que tem 7.040 metros e fica no norte do Chile. Este contador de histórias seria, ele mesmo, um mito, um ser encarregado de registrar todas as histórias do Novo Mundo. Esta obra seria tão vasta quanto as "Mil e Uma Noites".

— Que idéia fantástica !

E conversa foi por aí, durante horas. O sol já estava tombando por trás da serra de Bocaina quando Zé Bento se deu conta do adiantado da hora.

— Bem, Dona Benta, tenho de ir.

Mas não teve tempo de se despedir. De longe veio o chamado de Purezinha, sua mulher, chamando-o insistentemente:

— Zé Bento, acorda, vem jantar....

O fazendeiro sonhador abre os olhos, espreguiça-se, um bocejo tardio acabando com seu encanto de uma tarde de primavera.

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Argos = Antonio Roque Gobbo - Belo Horizonte - 18 de Março de 2000

Conto # 24 da série Milistórias.-Publicado em “A Loucura do Cristal”, vol. 1 da Coleção Milistórias.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 02/03/2014
Reeditado em 08/09/2014
Código do texto: T4712162
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