NEGÓCIO DE ELFOS
NEGÓCIO DE ELFOS
Miguel Carqueija e Gabriel Coelho
Pois é. Evite ao máximo negociar com elfos, é o que eu sempre digo.
Para demonstrar que não estou de brincadeiras deixem-me narrar a minha própria experiência pessoal, quando na qualidade de Conselheiro Ducal eu fui enviado, pelo Duque Cornélio Bretão, ao encontro do Rei Elfo Hélios III, o Generoso, para tentar obter certas facilidades territoriais. Eu nutria certa dúvida sobre a eficácia das minhas credenciais já que, mesmo sendo conselheiro do Duque, eu jamais conseguia que ele atendesse aos meus conselhos. O que poderia esperar de um monarca não-humano?
Assim, num belo dia de verão, com nuvens brancas encasteladas em altas montanhas, eu me dirigi lentamente, montado em meu alazão Resfolegante, através do Passo dos Morcegos, em direção à fronteira do reino dos elfos. Acompanhavam-me três secretários, pois não era adequado que um Alto Negociador se encaminhasse sozinho no cumprimento de uma missão diplomática.
O vento soprava forte e frio, fazendo com que as folhas esvoaçassem em redemoinhos e fustigando nossos rostos, o meu felizmente protegido por espessa barba negra. Do outro lado do desfiladeiro apareciam as primeiras torres elficas e eu aproveitava o tempo da ornada tentando premeditar o que iria dizer àquele ilustre cavalheiro de orelhas horizontais e pontudas.
Não posso afirmar que me ajudassem os palpites dos meus acompanhantes.
O Fénelon, por exemplo, queixava-se o tempo todo da dureza da montaria, do calor, do frio, do vento e dos mosquitos.
O Garibaldo fazia comentários do tipo: — Chefe, nós vamos enrolar direitinho aqueles orelhudos, não é mesmo?
— Evite falar essas coisas quando chegarmos mais perto — respondi já meio chateado. — Orelhudos sempre escutam muito bem.
E finalmente tinha o Galvão, que passou a viagem toda brincando com um bilboquê.
O que querem? Eu não escolho os meus auxiliares.
Chegamos pouco antes do crepúsculo no posto aduaneiro, mostramos nossas credenciais a humanos e a elfos e prosseguimos em direção ao castelo Wolf, residência de verão — oportunamente próxima à fronteira — do cabeça coroada que iríamos visitar. Felizmente disporíamos de perto de um dia para nos prepararmos: a audiência estava marcada para as 17 horas do dia seguinte. Pernoitaríamos na ala de hóspedes do palácio real.
Eu estava disposto a dormir pesadamente, pois sentia-me cansado e geralmente ferro no sono. O que eu não contava é que, no quarto amplo porém único que nos disponibilizaram, os meus três ajudantes (que a rigor não me serviam para nada) dormiram rapidamente e executaram pela noite inteira um verdadeiro concerto de roncos, sendo Fénelon o tenor, Garibaldo o baixo e Galvão o barítono. Podem crer que não foi fácil.
Na manhã seguinte eu me levantei tresnoitado, tomei banho e me vesti enquanto meus companheiros de missão prosseguiam curtindo o sono, sem nenhum indício de que iriam retornar ao estado de vigília. Enquanto bochechava com o meu enxaguatório bucal eu tentava inutilmente identificar alguma utilidade para aqueles três dorminhocos. No fim das contas, porém, aquele era o menor dos meus problemas.
Tendo colocado as minhas insígnias de embaixador ducal (uma cruz de setas sobre uma esfera, a indicar que eu estava credenciado a futricar pelo mundo inteiro), saí para o corredor e indaguei a uma garota elfa que passava (provavelmente uma funcionária) onde poderia tomar o meu desjejum.
E seus companheiros, Senhor Conselheiro?
Lembrei-me de que poderia estar incorrendo numa gafe diplomática se fosse comer sozinho, sem o meu séqüito, por mais incômodo que este se me afigurasse.
— Eles estão se aprontando, só me mostre onde é.
A garota elfa, que se identificou como Ísis (camareira do palácio) caminhou pelos corredores, levando-me até um pequeno refeitório onde havia umas poucas pessoas, quase todas élficas, mas vislumbrei um casal de anões. Eu admirava a elegância e a leveza das mulheres elfas. Se não fossem aqueles orelhões...
Retornei ao meu dormitório, cheio de fome, mas ainda precisei de quase meia hora para escorraçar os meus queridos (?) companheiros de seus leitos e obter que se vestissem.
Gostaria tanto que o Duque me facultasse escolher meu próprio séquito!
No refeitório, servido amavelmente pela camareira (os elfos costumam ser bem mais elegantes que os humanos), pude reparar na refeição dos anões — que por sinal já se encontravam lá há um bocado de tempo — um imenso pernil regado a cerveja espumante. Para nós puseram uma torta de avelãs com refrescos e pão com pasta de soja. Nada de muito especial, mas até que estava gostoso. Pelo canto do olho reparei nos hóspedes elfos — provavelmente funcionários administrativos em missão na cidade — que consumiam refeições frugalíssimas, com verduras que pareciam flores de brócolis, cebolinhas e coisas desse jaez, além de uns chás e umas bolachas.
O caso dos anões era assustador. Se no desjejum eles consumiam aquilo, o que seria o almoço? Um assado de dragão?
Uma coisa era certa. A hospitalidade de Hélios III era impecável. Comecei a achar que seria relativamente fácil negociar com um monarca tão generoso (aliás ele se intitulava assim). Os dois anões, que não sabiam conversar em voz baixa, também estavam lá por conta de pretensões territoriais e sua audiência dar-se-ia antes da minha.
Se eu prestasse atenção, poderia conseguir uma idéia do que me esperava.
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Pelas dezesseis horas eu me sentei, com um livro, no corredor que levava á Sala das Audiências Reais. Felizmente havia poltronas e, em caso de dúvida, eu podia alegar que estava aguardando a minha hora. Proibi terminantemente aos três estafermos que me acompanhassem na sessão com o rei; definitivamente só iriam me estorvar. Diplomacia é coisa complexa; não é coisa para cabeças ocas.
Minha expectativa afinal obteve resultados.
Quando o casal passou por mim percebi que os seus olhos brilhavam de contentamento e ainda por cima esfregavam as mãos de entusiasmo. Isso era um bom sinal, do jeito que os anões costumam ser muquiranas.
Ainda consegui captar parte da troca de palavras:
— Esse rei é mesmo um mentecapto...
— É mesmo, querido. Enrolamos ele direitinho...
— Nosso rei é que vai adorar...
E mais não ouvi, mas aquele papo fez subir bastante o meu astral! Se dois anões estúpidos conseguiam engambelar aquele rei elfo, quanto mais um humano sofisticado como eu!
E com esse estado de espírito dirigi-me para a minha entrevista.
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Confesso que, apesar de todas as ironias dos anões, a figura de Hélios III me decepcionou! Usava trajes ricos e anacrônicos, sem dúvida; mas a sua pessoa não era tão impressionante quanto eu esperava. Alto, azulado, de idade indefinível, mas com uma expressão por demais aberta, por demais ingênua, como uma criança grande. E mais magro do que eu supunha. Ergueu-se pressuroso de seu trono e cumprimentou-me com amabilidade, segurando as minhas mãos:
— É um prazer recebe-lo, Senhor Embaixador. É ótimo poder estreitar os laços com os reinos dos humanos, e há muito eu desejava um contato maior com o Ducado...
— Também estou muito satisfeito por estar aqui, em nome do Duque Cornélio — respondi, desejando no íntimo que tudo acabasse depressa.
— Mas sente-se, por favor. Quer tomar um refresco? Sirva-se! — e mostrou uma jarra cheia de uma bebida vermelha, sobre uma mesa com rodinhas, além de copos.
Aceitei aquele refresco de frutas vermelhas e aguardei que o soberano desse prosseguimento ao diálogo, o que não se fez esperar:
— Espero que tenha feito boa viagem e que tudo aqui lhe saiba bem — observou amavelmente.
Teci alguns elogios à hospitalidade dos elfos e à boa qualidade dos leitos e da comida. Estava ansioso para entrar no assunto principal.
— Mas que o traz aqui, Conselheiro Albino? Com certeza, algo importante para os nossos dois estados...
— É claro que sim, Majestade. Sua Alteza, o Duque Cornélio Bretão, encarregou-me de expor o quanto somos amigos há tantas gerações e como é de grande interesse do Duque estreitar cada vez mais os nossos laços de amizade e nosso intercâmbio turístico, comercial e cultural.
— E como faríamos isso, Conselheiro? — e o rei sorria com franqueza.
— Somos separados por uma poderosa barreira rochosa com poucas e estreitas passagens, Majestade. O Duque acredita que nos tornaríamos mais amigos do que nunca se Vós nos cedêsseis uma faixa territorial em seu reino, onde habitaria uma missão humana, e nossas relações futuras tornar-se-iam mais fáceis e proveitosas...
— Ah, sim, começo a compreender... mas, meu amigo, sabe que o que me pede não é fácil. Abrir mão de um pedaço do próprio território vai contra as nossas veneráveis tradições...
— Bem sei, ó Rei, mas como Embaixador Plenipotenciário de meu país, estou autorizado a oferecer uma faixa do nosso próprio território, de modo a compensar a diminuição do seu...
— Humm... a oferta é tentadora, Conselheiro. O senhor trouxe os mapas da região que nos está oferecendo?
— Ah, claro. Trouxe-os cuidadosamente na minha bagagem. Se me permite, vou puxar aquela mesinha...
— Claro, claro. Esteja à vontade.
Como hábil negociador que eu me julgava, espalhei os mapas espertamente adulterados de maneira a não dar a perceber o quanto a região do Calvário era rebarbativa. Os poucos rios não estavam pontilhados, como normalmente se fazia em tais casos para indicar serem cursos intermitentes, que desapareciam durante a estação seca. As informações sobre os ventos — que sopravam quentes e furiosos — não constavam; a inexistência de povoações humanas, afora uns poucos entrepostos, seria justificada pela incompleta colonização daquela área.
Por outro lado, somente nos interessaria uma faixa de terra contígua a um dos desfiladeiros que conduziam ao reino élfico. As reais intenções do Duque eram para mim obscuras e sinistras; mas eu era apenas o seu preposto e deveria me desempenhar bem da minha missão.
O rei desenvolvera algumas perguntas razoáveis. Uma ou outra pareceu muito ingênua: que flores cresciam na região, se a água dos rios era límpida...
Nós estávamos prontos ate a conduzir observadores elfos a um ou outro oásis da região, para contornar qualquer má impressão; mas eu nutria a esperança de que tal não fosse necessário. A boa fé do Helio III parecia excessiva...
— Talvez possamos ceder a região da Maravilha — disse ele por fim. — É um pouco baixa para o nosso gosto... sabe como é... não gostamos de cultivar hábitos semelhantes aos dos anões, e eles adoram viver nas depressões de terreno, e cavando minas... além disso, o canhão norte desemboca nela uma das suas ramificações, o que facilita o acesso de vocês.
— Eu poderia ver o mapa da região, Majestade?
— Mas é claro, meu amigo. Eu tenho um aqui na gaveta...
Achei estranha aquela história de mapa engavetado, e também me pareceu difícil examinar aquele objeto que era um rolo de papiro. Tentei ler a data de confecção, mas todos os sinais vinham na escrita élfica ancestral, que eu não aprendera.
Em todo o caso o que eu vi me animou bastante. Afinal, a Passagem Norte era de fácil acesso e, se mais não era freqüentada pelos humanos, devia-se á falta de entrepostos comerciais élficos à saída ou nas proximidades. Eu sabia que elfos não apreciam as terras mais baixas, mesmo sendo férteis e na região indicada estavam assinalados bosques tropicais, conforme o rei me explicou. Eu não vi motivos para desconfiar, pois tinha notícias de exploradores humanos que haviam observado pessoalmente uma profusão vegetal por aquelas bandas. Por outro lado eu sabia que o Duque estava sôfrego para se livrar daquela região ventosa, árida, estéril e insalubre que eu estava negociando. Na minuta do tratado que eu portava constavam os nomes de um grande número de plantas, inclusive frutíferas, que por lá vicejavam. E não era mentira, só que na terra seca tudo esturricava, menos as cactáceas e outros vegetais mais rebarbativos.
Hélios III seria facilmente fisgado — pensava eu. E por causa de uma idiossincrasia boba (não quererem adquirir hábitos de anões) eles iriam abrir mão de uma zona sabidamente fértil.
Uma fácil vitória diplomática!
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Passaram-se algumas semanas.
Eufórico com a assinatura do tratado, o Duque Cornélio nomeou-me Administrador Interino do novo território, com a missão de dele tomar posse e instalar o nosso primeiro entreposto. Depois eu retornaria às minhas funções habituais; só tinha de me dirigir à terra que os elfos chamavam de Maravilha, mas cujo nome passaria a ser Corneliolandia, acompanhando um grupo de trinta pessoas. Havia topógrafos, botânicos, marceneiros, pedreiros, médicos; o que iríamos precisar.
Com nossos cavalos e diligências, atravessamos sem grande dificuldade aquela passagem, onde normalmente não seguiam caravanas por ausência de populações locais na região que demandávamos. Íamos aos poucos descendo em altitude, pois, como devem se lembrar, a província de Maravilha situava-se numa depressão geológica.
Fomos ziguezagueando pela passagem natural e, aos poucos, a temperatura ia caindo e um espesso nevoeiro amortalhou o horizonte visual. Parecia um clima de montanha, embora estivéssemos em baixa altitude; pelo meio da tarde afinal desembocamos na saída do desfiladeiro, onde nos aguardava uma comissão de elfos.
Era apenas uma formalidade. Com a cópia do tratado, o Ministro das Relações Exteriores dos elfos, o Senhor Spoker, entregou-me solenemente o diploma de posse e desejou-nos boa sorte. Eu apertei a sua mão e, com oculta ironia, também desejei boa sorte aos irmãos elfos na administração do seu novo território.
Eles montaram nos seus pégasos de asas brancas e se foram, em direção ao sul. E eu, respirando aquele ar puro, fruto da exuberância vegetal que tinha pela frente, e empunhando o mapa enrolado, comandei a entrada na região. A idéia era estabelecer nosso entreposto umas três léguas adentro, para que a posse do território não ficasse ainda na periferia. Aproveitaríamos para explorar o que fosse possível.
Desta vez eu tinha como meu secretário um velhote chamado Pascácio Atanásio, outra figurinha difícil como eu vim a saber, ranheta e cheio de manias. Eu não tinha meio de dispensá-lo: era tio do duque.
— Vamos com cuidado, senhor! — buzinava ele a toda hora. — Lembre-se que eu sou um velho!
Como eu iria esquecer, vendo a cara dele a todo instante? Procurei me concentrar na jornada, enquanto atravessava entre bromeliáceas, cactáceas, grande árvores, até algumas sequóias. Então, a certa altura, me pareceu que as árvores ao redor estavam se tornando cada vez mais altas.
— O que acha, Conde Pascácio? — indaguei. — As árvores estão ficando mais altas...
— Eu acho que não, Embaixador. Nós é que estamos ficando mais baixos.
Por um instante achei que o meu assistente estava bêbado ou delirando; mas logo percebi que ele estava com a razão. Olhei então para baixo: as patas dos nossos cavalos estavam afundando no chão.
— O que está acontecendo? — exclamei, à beira do pânico.
Foi Clavius, o monge que nos acompanhava, quem primeiro atinou com o que ocorria:
— Não estão vendo? Estamos em meio a areia movediça! Temos que dar o alarme!
O que nos salvou foi que aquela areia ocorria em meio a árvores com cipós, e alguns de nós tinham cordas com as quais pudemos laçar galhos. Depois de muito esforço pudemos salvar quase tudo — menos é claro as carruagens com praticamente todos os mantimentos.
Quando pudemos chegar a uma região aberta e de solo rochoso, o inventário das nossas perdas era deprimente. O tio do duque parecia histérico:
— Seu irresponsável! Como você pôde nos levar a uma situação dessas? Não leu no mapa que por aqui tinha areia movediça?
— Olhe aqui...
— Eu vou relatar tudo ao meu sobrinho! Imagine, se poderemos estabelecer legiões guerreiras numa região...
— Como disse? — eu começava a ficar interessado, mas nesse momento várias mulheres começaram a gritar.
Eu logo vi o que estava acontecendo. Uma revoada de mosquitos-agulha, transmissores de febre hipertrofiante, estava investindo em cheio contra o nosso grupo, com as suas picadas agoniantes. O monge, que era um sujeito prevenido, tirou de sua mochila algumas raquetes mata-mosquitos, mas não havia para todo mundo.
Em poucos minutos estavam todos encalombados, inclusive os cavalos. Ainda bem que o nosso cozinheiro teve a boa idéia de acender uma fogueira e fazer fumaça para matar e espantar a nuvem de insetos.
Por fim logramos êxito, e enquanto Pascácio enxugava o suor da testa com um enorme lenço vermelho, Frei Clavius achegou-se a mim e indagou:
— Desculpe, senhor, mas eu poderia dar uma olhada no seu mapa?
Tirei-o da mochila e passei-o para o monge, recomendando que o manuseasse com cuidado.
— Conselheiro Albino — disse ele, após alguns momentos de detido exame — chegou a ler o texto desse mapa?
— Como poderia, Frei Clavius? Eu não entendo essa língua antiga dos elfos...
— Pois então, sou obrigado a alertá-lo de que estamos...
Não pôde terminar; um tremendo rugido calou a sua voz. Olhamos sobressaltados para a direção de onde viera aquele som: um grande lagarto carnívoro acabara de chegar. Esses bichos costumam ser atraídos por luzes (como da fogueira) e panos vermelhos. Aquele avançou logo em cima do Pascácio.
O idiota ainda não largara o seu “lençol” vermelho.
Foi um Deus-nos-acuda. Os membros válidos da expedição, com suas espadas, tiveram de travar um violento combate com a fera. Depois de vários ferimentos, rasgões, braços quebrados etc. nós conseguimos abater o monstro.
Mal estávamos ainda suspirando de alívio quando escutamos um sinistro bater de asas.
Olhamos para cima e constatamos, horrorizados, que um bando de pterodáctilos vinha vindo, atraído pelo cheiro de sangue. Seus bicos eram dentados e suas garras afiadas.
Os minutos que se seguiram foram de pânico e horror. Fugimos espavoridos pela mata, ferindo-nos em espinheiros, sujando-nos em lamaçais, acossados por aqueles ferozes répteis alados. Ainda tivemos de lutar contra cobras, felinos predadores e javalis selvagens e, no final, estávamos reduzidos à quinta parte de nosso número inicial, umas poucas montarias e uma fração de nossos mantimentos e equipamentos.
Foi quando o monge — um dos sobreviventes — chegou-se a mim, ofegante e com o hábito rasgado, e tentou de novo:
— Senhor Conselheiro, posso terminar o que estava tentando lhe dizer?
— Se julga que ainda é importante...
— Este mapa, senhor. Vejam, está tudo escrito aqui, no idioma arcaico dos elfos, que eles utilizavam há mil anos atrás.
— O que está escrito? — rosnou Pascácio Atanásio que, infelizmente, era um dos sobreviventes.
— Vejam aqui — e o monge esticou o mapa e foi indicando os detalhes — esse azul aqui é o Pântano das Epidemias, nas notas de rodapé diz ser uma região pestífera e repleta de todo tipo de inseto venenoso, além de criadouro de serpentes gigantes e monstros diversos. Esses trechos cinzentos são os lençóis de areia movediça. O marrom ao norte é o Deserto da Secura, e esses desenhos representam tempestades de areia de grande intensidade. Já aqui, a poucos quilômetros a leste de onde nos encontramos, consta a existência de uma grande colônia de dragões selvagens cuspidores de fogo, de modo que...
— Chega, frade! — berrou o velhote. — Já estou satisfeito! Conselheiro, o que é que o senhor tem a declarar?
— A expedição acabou — respondi no ato. — A colônia fracassou, vamos voltar.
— O que? É tudo, conselheiro? E a sua responsabilidade? Você nos trouxe a esse atoleiro, a essa armadilha!
— Mas que culpa eu tenho? Também não sabia que as condições locais eram essas...
— Você não pode fugir à sua responsabilidade! — esbravejou ele, à beira de um ataque apoplético. — Você não mandou traduzir esse maldito mapa!
— Meu senhor — atreveu-se a interromper o frade — a não ser alguns monges copistas como eu, quase ninguém mais conhece essa escrita arcaica dos elfos. Até mesmo entre os elfos, poucos atualmente traduziriam...
A discussão ia prosseguir, quando se ouviu um grande estrondo e a terra começou a tremer.
— Meu Deus, o que é isso agora?
— Ah! — suspirou Frei Clavius, desanimado. — Na pressa acabei não passando toda a tradução. Há uma pequena anotação dizendo: “zona sujeita a constantes terremotos”. Acho melhor nós irmos embora, pois esses sismos costumam colocar os dragões em polvorosa...
E esse foi o fim da nossa colônia.
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Escrevo estas memórias nas Montanhas Gélidas, no reino élfico, onde moro atualmente. O tio do duque encarregou-se de fazer a minha caveira e, como precisavam de um bode expiatório, eu fui exilado e acabei pedindo refúgio junto aos elfos. Helio III recebeu-me amavelmente, muito feliz por ter se livrado daquele território problemático e ainda estar desfrutando lucros fabulosos com os diamantes e o ouro encontrados na região cedida pelos homens. É claro, espertos como são os elfos já sabiam das potencialidades da área que o Duque desprezou.
Tenho, como vizinhos, aquele casal de anões. A vida não é má de todo, pois o rei concedeu-me generosas pensões em troca de ficarmos monitorando permanentemente as nevascas e trabalhando nas estatísticas das mesmas. Não seria tão ruim se eu não fosse obrigado a sair sempre super-encapotado e a zelar obsessivamente pelo bom funcionamento da calefação.
Mas já começo a achar que foi uma boa coisa afastar-me do serviço ao Duque Cornélio. Comecei a mudar de idéia quando, no meu regresso ao palácio de Hélios III, reencontrei a camareira Ísis e ela se alegrou ao saber que agora eu moraria com os elfos. Desde então, de vez em quando a gente se vê.
Acho que vou ter que me acostumar com mulheres de orelhas grandes...
(imagem do google)
NEGÓCIO DE ELFOS
Miguel Carqueija e Gabriel Coelho
Pois é. Evite ao máximo negociar com elfos, é o que eu sempre digo.
Para demonstrar que não estou de brincadeiras deixem-me narrar a minha própria experiência pessoal, quando na qualidade de Conselheiro Ducal eu fui enviado, pelo Duque Cornélio Bretão, ao encontro do Rei Elfo Hélios III, o Generoso, para tentar obter certas facilidades territoriais. Eu nutria certa dúvida sobre a eficácia das minhas credenciais já que, mesmo sendo conselheiro do Duque, eu jamais conseguia que ele atendesse aos meus conselhos. O que poderia esperar de um monarca não-humano?
Assim, num belo dia de verão, com nuvens brancas encasteladas em altas montanhas, eu me dirigi lentamente, montado em meu alazão Resfolegante, através do Passo dos Morcegos, em direção à fronteira do reino dos elfos. Acompanhavam-me três secretários, pois não era adequado que um Alto Negociador se encaminhasse sozinho no cumprimento de uma missão diplomática.
O vento soprava forte e frio, fazendo com que as folhas esvoaçassem em redemoinhos e fustigando nossos rostos, o meu felizmente protegido por espessa barba negra. Do outro lado do desfiladeiro apareciam as primeiras torres elficas e eu aproveitava o tempo da ornada tentando premeditar o que iria dizer àquele ilustre cavalheiro de orelhas horizontais e pontudas.
Não posso afirmar que me ajudassem os palpites dos meus acompanhantes.
O Fénelon, por exemplo, queixava-se o tempo todo da dureza da montaria, do calor, do frio, do vento e dos mosquitos.
O Garibaldo fazia comentários do tipo: — Chefe, nós vamos enrolar direitinho aqueles orelhudos, não é mesmo?
— Evite falar essas coisas quando chegarmos mais perto — respondi já meio chateado. — Orelhudos sempre escutam muito bem.
E finalmente tinha o Galvão, que passou a viagem toda brincando com um bilboquê.
O que querem? Eu não escolho os meus auxiliares.
Chegamos pouco antes do crepúsculo no posto aduaneiro, mostramos nossas credenciais a humanos e a elfos e prosseguimos em direção ao castelo Wolf, residência de verão — oportunamente próxima à fronteira — do cabeça coroada que iríamos visitar. Felizmente disporíamos de perto de um dia para nos prepararmos: a audiência estava marcada para as 17 horas do dia seguinte. Pernoitaríamos na ala de hóspedes do palácio real.
Eu estava disposto a dormir pesadamente, pois sentia-me cansado e geralmente ferro no sono. O que eu não contava é que, no quarto amplo porém único que nos disponibilizaram, os meus três ajudantes (que a rigor não me serviam para nada) dormiram rapidamente e executaram pela noite inteira um verdadeiro concerto de roncos, sendo Fénelon o tenor, Garibaldo o baixo e Galvão o barítono. Podem crer que não foi fácil.
Na manhã seguinte eu me levantei tresnoitado, tomei banho e me vesti enquanto meus companheiros de missão prosseguiam curtindo o sono, sem nenhum indício de que iriam retornar ao estado de vigília. Enquanto bochechava com o meu enxaguatório bucal eu tentava inutilmente identificar alguma utilidade para aqueles três dorminhocos. No fim das contas, porém, aquele era o menor dos meus problemas.
Tendo colocado as minhas insígnias de embaixador ducal (uma cruz de setas sobre uma esfera, a indicar que eu estava credenciado a futricar pelo mundo inteiro), saí para o corredor e indaguei a uma garota elfa que passava (provavelmente uma funcionária) onde poderia tomar o meu desjejum.
E seus companheiros, Senhor Conselheiro?
Lembrei-me de que poderia estar incorrendo numa gafe diplomática se fosse comer sozinho, sem o meu séqüito, por mais incômodo que este se me afigurasse.
— Eles estão se aprontando, só me mostre onde é.
A garota elfa, que se identificou como Ísis (camareira do palácio) caminhou pelos corredores, levando-me até um pequeno refeitório onde havia umas poucas pessoas, quase todas élficas, mas vislumbrei um casal de anões. Eu admirava a elegância e a leveza das mulheres elfas. Se não fossem aqueles orelhões...
Retornei ao meu dormitório, cheio de fome, mas ainda precisei de quase meia hora para escorraçar os meus queridos (?) companheiros de seus leitos e obter que se vestissem.
Gostaria tanto que o Duque me facultasse escolher meu próprio séquito!
No refeitório, servido amavelmente pela camareira (os elfos costumam ser bem mais elegantes que os humanos), pude reparar na refeição dos anões — que por sinal já se encontravam lá há um bocado de tempo — um imenso pernil regado a cerveja espumante. Para nós puseram uma torta de avelãs com refrescos e pão com pasta de soja. Nada de muito especial, mas até que estava gostoso. Pelo canto do olho reparei nos hóspedes elfos — provavelmente funcionários administrativos em missão na cidade — que consumiam refeições frugalíssimas, com verduras que pareciam flores de brócolis, cebolinhas e coisas desse jaez, além de uns chás e umas bolachas.
O caso dos anões era assustador. Se no desjejum eles consumiam aquilo, o que seria o almoço? Um assado de dragão?
Uma coisa era certa. A hospitalidade de Hélios III era impecável. Comecei a achar que seria relativamente fácil negociar com um monarca tão generoso (aliás ele se intitulava assim). Os dois anões, que não sabiam conversar em voz baixa, também estavam lá por conta de pretensões territoriais e sua audiência dar-se-ia antes da minha.
Se eu prestasse atenção, poderia conseguir uma idéia do que me esperava.
............................................................................
Pelas dezesseis horas eu me sentei, com um livro, no corredor que levava á Sala das Audiências Reais. Felizmente havia poltronas e, em caso de dúvida, eu podia alegar que estava aguardando a minha hora. Proibi terminantemente aos três estafermos que me acompanhassem na sessão com o rei; definitivamente só iriam me estorvar. Diplomacia é coisa complexa; não é coisa para cabeças ocas.
Minha expectativa afinal obteve resultados.
Quando o casal passou por mim percebi que os seus olhos brilhavam de contentamento e ainda por cima esfregavam as mãos de entusiasmo. Isso era um bom sinal, do jeito que os anões costumam ser muquiranas.
Ainda consegui captar parte da troca de palavras:
— Esse rei é mesmo um mentecapto...
— É mesmo, querido. Enrolamos ele direitinho...
— Nosso rei é que vai adorar...
E mais não ouvi, mas aquele papo fez subir bastante o meu astral! Se dois anões estúpidos conseguiam engambelar aquele rei elfo, quanto mais um humano sofisticado como eu!
E com esse estado de espírito dirigi-me para a minha entrevista.
..............................................................................
Confesso que, apesar de todas as ironias dos anões, a figura de Hélios III me decepcionou! Usava trajes ricos e anacrônicos, sem dúvida; mas a sua pessoa não era tão impressionante quanto eu esperava. Alto, azulado, de idade indefinível, mas com uma expressão por demais aberta, por demais ingênua, como uma criança grande. E mais magro do que eu supunha. Ergueu-se pressuroso de seu trono e cumprimentou-me com amabilidade, segurando as minhas mãos:
— É um prazer recebe-lo, Senhor Embaixador. É ótimo poder estreitar os laços com os reinos dos humanos, e há muito eu desejava um contato maior com o Ducado...
— Também estou muito satisfeito por estar aqui, em nome do Duque Cornélio — respondi, desejando no íntimo que tudo acabasse depressa.
— Mas sente-se, por favor. Quer tomar um refresco? Sirva-se! — e mostrou uma jarra cheia de uma bebida vermelha, sobre uma mesa com rodinhas, além de copos.
Aceitei aquele refresco de frutas vermelhas e aguardei que o soberano desse prosseguimento ao diálogo, o que não se fez esperar:
— Espero que tenha feito boa viagem e que tudo aqui lhe saiba bem — observou amavelmente.
Teci alguns elogios à hospitalidade dos elfos e à boa qualidade dos leitos e da comida. Estava ansioso para entrar no assunto principal.
— Mas que o traz aqui, Conselheiro Albino? Com certeza, algo importante para os nossos dois estados...
— É claro que sim, Majestade. Sua Alteza, o Duque Cornélio Bretão, encarregou-me de expor o quanto somos amigos há tantas gerações e como é de grande interesse do Duque estreitar cada vez mais os nossos laços de amizade e nosso intercâmbio turístico, comercial e cultural.
— E como faríamos isso, Conselheiro? — e o rei sorria com franqueza.
— Somos separados por uma poderosa barreira rochosa com poucas e estreitas passagens, Majestade. O Duque acredita que nos tornaríamos mais amigos do que nunca se Vós nos cedêsseis uma faixa territorial em seu reino, onde habitaria uma missão humana, e nossas relações futuras tornar-se-iam mais fáceis e proveitosas...
— Ah, sim, começo a compreender... mas, meu amigo, sabe que o que me pede não é fácil. Abrir mão de um pedaço do próprio território vai contra as nossas veneráveis tradições...
— Bem sei, ó Rei, mas como Embaixador Plenipotenciário de meu país, estou autorizado a oferecer uma faixa do nosso próprio território, de modo a compensar a diminuição do seu...
— Humm... a oferta é tentadora, Conselheiro. O senhor trouxe os mapas da região que nos está oferecendo?
— Ah, claro. Trouxe-os cuidadosamente na minha bagagem. Se me permite, vou puxar aquela mesinha...
— Claro, claro. Esteja à vontade.
Como hábil negociador que eu me julgava, espalhei os mapas espertamente adulterados de maneira a não dar a perceber o quanto a região do Calvário era rebarbativa. Os poucos rios não estavam pontilhados, como normalmente se fazia em tais casos para indicar serem cursos intermitentes, que desapareciam durante a estação seca. As informações sobre os ventos — que sopravam quentes e furiosos — não constavam; a inexistência de povoações humanas, afora uns poucos entrepostos, seria justificada pela incompleta colonização daquela área.
Por outro lado, somente nos interessaria uma faixa de terra contígua a um dos desfiladeiros que conduziam ao reino élfico. As reais intenções do Duque eram para mim obscuras e sinistras; mas eu era apenas o seu preposto e deveria me desempenhar bem da minha missão.
O rei desenvolvera algumas perguntas razoáveis. Uma ou outra pareceu muito ingênua: que flores cresciam na região, se a água dos rios era límpida...
Nós estávamos prontos ate a conduzir observadores elfos a um ou outro oásis da região, para contornar qualquer má impressão; mas eu nutria a esperança de que tal não fosse necessário. A boa fé do Helio III parecia excessiva...
— Talvez possamos ceder a região da Maravilha — disse ele por fim. — É um pouco baixa para o nosso gosto... sabe como é... não gostamos de cultivar hábitos semelhantes aos dos anões, e eles adoram viver nas depressões de terreno, e cavando minas... além disso, o canhão norte desemboca nela uma das suas ramificações, o que facilita o acesso de vocês.
— Eu poderia ver o mapa da região, Majestade?
— Mas é claro, meu amigo. Eu tenho um aqui na gaveta...
Achei estranha aquela história de mapa engavetado, e também me pareceu difícil examinar aquele objeto que era um rolo de papiro. Tentei ler a data de confecção, mas todos os sinais vinham na escrita élfica ancestral, que eu não aprendera.
Em todo o caso o que eu vi me animou bastante. Afinal, a Passagem Norte era de fácil acesso e, se mais não era freqüentada pelos humanos, devia-se á falta de entrepostos comerciais élficos à saída ou nas proximidades. Eu sabia que elfos não apreciam as terras mais baixas, mesmo sendo férteis e na região indicada estavam assinalados bosques tropicais, conforme o rei me explicou. Eu não vi motivos para desconfiar, pois tinha notícias de exploradores humanos que haviam observado pessoalmente uma profusão vegetal por aquelas bandas. Por outro lado eu sabia que o Duque estava sôfrego para se livrar daquela região ventosa, árida, estéril e insalubre que eu estava negociando. Na minuta do tratado que eu portava constavam os nomes de um grande número de plantas, inclusive frutíferas, que por lá vicejavam. E não era mentira, só que na terra seca tudo esturricava, menos as cactáceas e outros vegetais mais rebarbativos.
Hélios III seria facilmente fisgado — pensava eu. E por causa de uma idiossincrasia boba (não quererem adquirir hábitos de anões) eles iriam abrir mão de uma zona sabidamente fértil.
Uma fácil vitória diplomática!
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Passaram-se algumas semanas.
Eufórico com a assinatura do tratado, o Duque Cornélio nomeou-me Administrador Interino do novo território, com a missão de dele tomar posse e instalar o nosso primeiro entreposto. Depois eu retornaria às minhas funções habituais; só tinha de me dirigir à terra que os elfos chamavam de Maravilha, mas cujo nome passaria a ser Corneliolandia, acompanhando um grupo de trinta pessoas. Havia topógrafos, botânicos, marceneiros, pedreiros, médicos; o que iríamos precisar.
Com nossos cavalos e diligências, atravessamos sem grande dificuldade aquela passagem, onde normalmente não seguiam caravanas por ausência de populações locais na região que demandávamos. Íamos aos poucos descendo em altitude, pois, como devem se lembrar, a província de Maravilha situava-se numa depressão geológica.
Fomos ziguezagueando pela passagem natural e, aos poucos, a temperatura ia caindo e um espesso nevoeiro amortalhou o horizonte visual. Parecia um clima de montanha, embora estivéssemos em baixa altitude; pelo meio da tarde afinal desembocamos na saída do desfiladeiro, onde nos aguardava uma comissão de elfos.
Era apenas uma formalidade. Com a cópia do tratado, o Ministro das Relações Exteriores dos elfos, o Senhor Spoker, entregou-me solenemente o diploma de posse e desejou-nos boa sorte. Eu apertei a sua mão e, com oculta ironia, também desejei boa sorte aos irmãos elfos na administração do seu novo território.
Eles montaram nos seus pégasos de asas brancas e se foram, em direção ao sul. E eu, respirando aquele ar puro, fruto da exuberância vegetal que tinha pela frente, e empunhando o mapa enrolado, comandei a entrada na região. A idéia era estabelecer nosso entreposto umas três léguas adentro, para que a posse do território não ficasse ainda na periferia. Aproveitaríamos para explorar o que fosse possível.
Desta vez eu tinha como meu secretário um velhote chamado Pascácio Atanásio, outra figurinha difícil como eu vim a saber, ranheta e cheio de manias. Eu não tinha meio de dispensá-lo: era tio do duque.
— Vamos com cuidado, senhor! — buzinava ele a toda hora. — Lembre-se que eu sou um velho!
Como eu iria esquecer, vendo a cara dele a todo instante? Procurei me concentrar na jornada, enquanto atravessava entre bromeliáceas, cactáceas, grande árvores, até algumas sequóias. Então, a certa altura, me pareceu que as árvores ao redor estavam se tornando cada vez mais altas.
— O que acha, Conde Pascácio? — indaguei. — As árvores estão ficando mais altas...
— Eu acho que não, Embaixador. Nós é que estamos ficando mais baixos.
Por um instante achei que o meu assistente estava bêbado ou delirando; mas logo percebi que ele estava com a razão. Olhei então para baixo: as patas dos nossos cavalos estavam afundando no chão.
— O que está acontecendo? — exclamei, à beira do pânico.
Foi Clavius, o monge que nos acompanhava, quem primeiro atinou com o que ocorria:
— Não estão vendo? Estamos em meio a areia movediça! Temos que dar o alarme!
O que nos salvou foi que aquela areia ocorria em meio a árvores com cipós, e alguns de nós tinham cordas com as quais pudemos laçar galhos. Depois de muito esforço pudemos salvar quase tudo — menos é claro as carruagens com praticamente todos os mantimentos.
Quando pudemos chegar a uma região aberta e de solo rochoso, o inventário das nossas perdas era deprimente. O tio do duque parecia histérico:
— Seu irresponsável! Como você pôde nos levar a uma situação dessas? Não leu no mapa que por aqui tinha areia movediça?
— Olhe aqui...
— Eu vou relatar tudo ao meu sobrinho! Imagine, se poderemos estabelecer legiões guerreiras numa região...
— Como disse? — eu começava a ficar interessado, mas nesse momento várias mulheres começaram a gritar.
Eu logo vi o que estava acontecendo. Uma revoada de mosquitos-agulha, transmissores de febre hipertrofiante, estava investindo em cheio contra o nosso grupo, com as suas picadas agoniantes. O monge, que era um sujeito prevenido, tirou de sua mochila algumas raquetes mata-mosquitos, mas não havia para todo mundo.
Em poucos minutos estavam todos encalombados, inclusive os cavalos. Ainda bem que o nosso cozinheiro teve a boa idéia de acender uma fogueira e fazer fumaça para matar e espantar a nuvem de insetos.
Por fim logramos êxito, e enquanto Pascácio enxugava o suor da testa com um enorme lenço vermelho, Frei Clavius achegou-se a mim e indagou:
— Desculpe, senhor, mas eu poderia dar uma olhada no seu mapa?
Tirei-o da mochila e passei-o para o monge, recomendando que o manuseasse com cuidado.
— Conselheiro Albino — disse ele, após alguns momentos de detido exame — chegou a ler o texto desse mapa?
— Como poderia, Frei Clavius? Eu não entendo essa língua antiga dos elfos...
— Pois então, sou obrigado a alertá-lo de que estamos...
Não pôde terminar; um tremendo rugido calou a sua voz. Olhamos sobressaltados para a direção de onde viera aquele som: um grande lagarto carnívoro acabara de chegar. Esses bichos costumam ser atraídos por luzes (como da fogueira) e panos vermelhos. Aquele avançou logo em cima do Pascácio.
O idiota ainda não largara o seu “lençol” vermelho.
Foi um Deus-nos-acuda. Os membros válidos da expedição, com suas espadas, tiveram de travar um violento combate com a fera. Depois de vários ferimentos, rasgões, braços quebrados etc. nós conseguimos abater o monstro.
Mal estávamos ainda suspirando de alívio quando escutamos um sinistro bater de asas.
Olhamos para cima e constatamos, horrorizados, que um bando de pterodáctilos vinha vindo, atraído pelo cheiro de sangue. Seus bicos eram dentados e suas garras afiadas.
Os minutos que se seguiram foram de pânico e horror. Fugimos espavoridos pela mata, ferindo-nos em espinheiros, sujando-nos em lamaçais, acossados por aqueles ferozes répteis alados. Ainda tivemos de lutar contra cobras, felinos predadores e javalis selvagens e, no final, estávamos reduzidos à quinta parte de nosso número inicial, umas poucas montarias e uma fração de nossos mantimentos e equipamentos.
Foi quando o monge — um dos sobreviventes — chegou-se a mim, ofegante e com o hábito rasgado, e tentou de novo:
— Senhor Conselheiro, posso terminar o que estava tentando lhe dizer?
— Se julga que ainda é importante...
— Este mapa, senhor. Vejam, está tudo escrito aqui, no idioma arcaico dos elfos, que eles utilizavam há mil anos atrás.
— O que está escrito? — rosnou Pascácio Atanásio que, infelizmente, era um dos sobreviventes.
— Vejam aqui — e o monge esticou o mapa e foi indicando os detalhes — esse azul aqui é o Pântano das Epidemias, nas notas de rodapé diz ser uma região pestífera e repleta de todo tipo de inseto venenoso, além de criadouro de serpentes gigantes e monstros diversos. Esses trechos cinzentos são os lençóis de areia movediça. O marrom ao norte é o Deserto da Secura, e esses desenhos representam tempestades de areia de grande intensidade. Já aqui, a poucos quilômetros a leste de onde nos encontramos, consta a existência de uma grande colônia de dragões selvagens cuspidores de fogo, de modo que...
— Chega, frade! — berrou o velhote. — Já estou satisfeito! Conselheiro, o que é que o senhor tem a declarar?
— A expedição acabou — respondi no ato. — A colônia fracassou, vamos voltar.
— O que? É tudo, conselheiro? E a sua responsabilidade? Você nos trouxe a esse atoleiro, a essa armadilha!
— Mas que culpa eu tenho? Também não sabia que as condições locais eram essas...
— Você não pode fugir à sua responsabilidade! — esbravejou ele, à beira de um ataque apoplético. — Você não mandou traduzir esse maldito mapa!
— Meu senhor — atreveu-se a interromper o frade — a não ser alguns monges copistas como eu, quase ninguém mais conhece essa escrita arcaica dos elfos. Até mesmo entre os elfos, poucos atualmente traduziriam...
A discussão ia prosseguir, quando se ouviu um grande estrondo e a terra começou a tremer.
— Meu Deus, o que é isso agora?
— Ah! — suspirou Frei Clavius, desanimado. — Na pressa acabei não passando toda a tradução. Há uma pequena anotação dizendo: “zona sujeita a constantes terremotos”. Acho melhor nós irmos embora, pois esses sismos costumam colocar os dragões em polvorosa...
E esse foi o fim da nossa colônia.
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Escrevo estas memórias nas Montanhas Gélidas, no reino élfico, onde moro atualmente. O tio do duque encarregou-se de fazer a minha caveira e, como precisavam de um bode expiatório, eu fui exilado e acabei pedindo refúgio junto aos elfos. Helio III recebeu-me amavelmente, muito feliz por ter se livrado daquele território problemático e ainda estar desfrutando lucros fabulosos com os diamantes e o ouro encontrados na região cedida pelos homens. É claro, espertos como são os elfos já sabiam das potencialidades da área que o Duque desprezou.
Tenho, como vizinhos, aquele casal de anões. A vida não é má de todo, pois o rei concedeu-me generosas pensões em troca de ficarmos monitorando permanentemente as nevascas e trabalhando nas estatísticas das mesmas. Não seria tão ruim se eu não fosse obrigado a sair sempre super-encapotado e a zelar obsessivamente pelo bom funcionamento da calefação.
Mas já começo a achar que foi uma boa coisa afastar-me do serviço ao Duque Cornélio. Comecei a mudar de idéia quando, no meu regresso ao palácio de Hélios III, reencontrei a camareira Ísis e ela se alegrou ao saber que agora eu moraria com os elfos. Desde então, de vez em quando a gente se vê.
Acho que vou ter que me acostumar com mulheres de orelhas grandes...
(imagem do google)