O verdadeiro pecado
O vento soprava sobre o cume da montanha, gélido e furioso. Parecia querer punir o ser ali de pé pelo que acabava de fazer. Se não fosse pelo que era, as fortes rajadas já o teriam arrastado até o precipício às suas costas. Suas asas, enormes e brancas como a neve que agora começava a cair, também resistiam a fúria daquele elemento. Seu corpo tremia, mas não era pelo frio. “Isso pode ser um dos sonhos dos humanos que sempre entramos para avisar-lhes algo?” – perguntou ele para si mesmo, sem poder acreditar no que acabava de fazer. “Podemos sonhar assim também?” Não sabia porquê só agora, quando nunca mais poderia ter uma resposta para aquela pergunta, havia pensado nela. “Ou seria um pesadelo, aquilo que os mortais tanto temiam?”
Uma explosão ecoou no alto. Parecia que o céu partia-se em dois. Um raio caiu a poucos metros do ser alado, e o impacto o fez dar um passo para o lado. “Sim, mereço ser açoitado eternamente.” O escuro céu começou a iluminar-se pelos raios que desciam sem parar, caindo dançando entre as negras nuvens. E os trovões rugiam, clamando por vingança. “Por que fiz isso? Por que…?” Ia dizer seu nome, mas do que ia adiantar agora que ele não podia escutar?
Um halo de luz o fez olhar para o céu. Os flocos de neve caiam sobre seu rosto, mas ele não os sentia. A luz da lua parecia iluminá-lo; iluminar apenas aquela cena, esquecendo o resto do mundo.”Não, ela não me ilumina…, ilumina ele.” Pouco a pouco aquele halo de luz foi perdendo força. A lua, branca e brilhante, foi escurecendo, tornando-se vermelha. O anjo sentiu frio, algo que nunca havia sentido antes. Sua mão esquerda perdeu as forças, e a espada de luz que segurava caiu, rolando para longe dele. Sem saber porquê, e sem forças para segurar-se, começou a chorar. As lágrimas desciam por sua face, vermelhas como a lua agora. Caiu de joelhos e as tocou. Eram frias. Tão frias como aquela neve que agora podia sentir como um mortal. “Desde quando podemos chorar?” – pensou ele, surpreso. “A partir do momento que pequei.” respondeu para si mesmo. “Ah, Mikael, o que fará quando descobrir? O que nossos queridos companheiros Camael, Rafael e Grabriel dirão? Ai, temo a fúria do velho Metatron!” As lágrimas não paravam de descer, e já ensopavam a túnica que cobria seu forte peito. “Oh, não sei de onde tirei a força e a coragem para tal ato! Meu amado Haniel, aconselha-me agora, como você sempre fez. Ajude-me, Auriel!” Nenhum dos seus companheiros príncipes lhe responderam. Ninguém quis vir ajudá-lo ou aconselhá-lo.
Levantou-se, cansado. O frio agora parecia querer segurá-lo naquele lugar para sempre. Sentia-o como qualquer mortal, mas doía muito mais. De suas asas as penas começaram a cair uma a uma, camuflando-se na neve aculumada no solo, como provocado por alguma doença. Em sua mente um turbilhão de perguntas e temores chocavam-se e acumulavam-se. Olhou ao redor. Começara a chover e nem havia sentido. O mundo parecia ter parado, não se via nem uma luz humana acesa aonde quer que olhasse em meio a escuridão da noite. “Para onde irei?” Começou a andar. Suas pernas pesavam como se estivessem feitas de ferro. Cada passo era um castigo. Mas o único castigo que ele realmente sentia eram as lágrimas de sangue que não paravam de escorrer. Seriam eternas.
Pisou na sua espada, e quase foi ao chão, desequilibrado. Não havia visto a luz que ela emitia “Oh, agora estou cego!” – queixou-se. Levou as mãos ao rosto, e apenas as sentia. “Só há um lugar para mim agora. E talvez ali tampouco me aceitem. Afinal de contas, ele também já foi um de nós.” Voltou a andar, com passos curtos e encurvados, como se todo o peso do mundo estivesse sobre ele. Das suas costas as últimas penas caíram. Suas belas asas já não existiam mais.
No chão, ele deixou o corpo do seu criador. O criador de todos de sua raça. O único.
A chuva se transformou em neve, e começou a cair com mais força. Toda a paisagem sobre o cume estava coberta por um grosso manto branco, exceto ao redor daquele corpo, como se o respeitasse.