A dama de ferro
Eu me lembro do Dr. Silva dizendo que eu deveria esquecer essa história e que se eu continuasse insistindo, eu jamais seria liberado.
“Se continuar insistindo nessa história, nesse conto de fadas – por que só isso que é, Arturo, um conto de fadas – não terei escolha se não optar por sua internação por mais alguns anos. Eu sei que a morte do seu pai foi terrível – eu entendo, perdi o meu recentemente também – mas se isolar nesse mundo de fantasia não é o melhor para você, muito menos para a sua esposa. Há um mundo lá fora, Arturo.”
É, sim, existe um mundo lá fora e eu não queria voltar para lá. Há algo terrivelmente assustador quando se sabe daquilo que me espera em cada canto escuro desse enorme mundo. Quem disse que o mundo é pequeno não conhece verdadeiramente tudo que ele pode oferecer. Nem eu sei, mesmo vendo tudo aquilo acontecer diante dos meus olhos.
O Dr. Silva podia viver normalmente em sua bela ignorância, aquele hospital não era tão seguro quanto ele imaginava – eu as ouvia a noite, andando pelos corredores, abrindo portas, se deliciando com a minha loucura. Não há nada mais terrivelmente assustador do que saber que elas existem e não conseguir explicar para ninguém. É extremamente solitário. Como explicar para a sua esposa que há mais no mundo do que os olhos podem ver? Como explicar que o meu pai sabia sobre elas, sobre o que elas podiam fazer, mas diferente de mim, ele não deixou aquilo consumi-lo? Como explicar o que eu vi naquele dia?
Eu tentei, mas falhei. Fui internado num sanatório, entupido de remédios e chamado constantemente de louco. Às vezes, eu realmente acho que enlouqueci, que talvez eu realmente seja louco, então as vejo em meus sonhos, vejo aqueles olhos cor de mel brilhando enquanto sua dona gargalhava, deleitada com a situação. Eu via claramente aquela coisa se levantando do caixão, sua forma esquelética e olhos azuis, impossivelmente azuis. Eu sentia uma mão no meu ombro e via aqueles olhos negros.
“Você não está louco” – dizia a dona dos olhos negros.
“Então me tire daqui! Me tire daqui!”.
Naquela hora, a coisa se levantou. A mão deixou meu ombro e a dona dos olhos negros gargalhou.
“Quem sabe, meu querido, um dia.”
E eu acordava. Suado, gritando e com mais certeza do que nunca de que aquilo que eu vira era real e aquelas duas mulheres ainda mais reais.
O Dr. Silva não concordava. Balançava a cabeça, respirava fundo e revirava os olhos. Ele foi meu psiquiatra por três anos... Ou mais ou menos isso. Eu não sei bem. Era o que Marta me dizia.
“Três anos de tratamento. Três longos anos.” – ela suspirava – “Eu e o Dr.Silva tentamos procurar essas mulheres e não há sinal de que pessoas assim existiam”.
“A mansão” – eu argumentava – “Vá até a mansão! Está tudo lá! Está tudo lá!”
Marta sempre foi uma mulher bonita, não magnífica, mas normal. Era professora de escola infantil e as crianças a adoravam. Ela tinha cortado o cabelo recentemente, eu não tinha gostado muito, não por que ficara feio, mas por que significava que ela estava mudando e me deixando para trás. Eu fingia não perceber que ela não mais usava a nossa aliança e que suas visitas tinham ficado mais esporádicas. Muitas vezes, ela implorava para que eu desistisse daquela ideia e voltássemos a nossa vida de antes e por ela, eu gostaria de poder esquecer, mas então vinha o sonho, as gargalhadas e o “você não é louco”.
“A mansão foi abandonada há séculos.” – respondia Marta com os olhos inexpressivos, o que estava se tornando cada vez mais comum. – “A dona atual está viajando pela América do Sul e não vai para a Itália há muito tempo.”
“É ela!” – exclamei. – “Ela estava aqui e ninguém soube!” – falei mais alto. – “Eu estava certo!”
Os lábios dela tremeram e se eu não a conhecesse melhor, diria que ela estava perto de chorar.
“ Ela tem 70 anos.” – respondeu Marta e meu sorriso morreu - “Acabou de vencer a luta contra o câncer de mama e está promovendo eventos para alertar as pessoas sobre o risco da doença. É uma senhora gentil. Não se parece com a mulher que você nos contou.”
“A mansão!”
“Está vazia. Tirando uns poucos móveis velhos e a quantidade imensa de aranhas e ratos, não há ninguém lá há séculos.”
Era magia e disso eu tenho certeza. Ela havia enfeitiçado a casa, assim todos pensariam que era uma mansão abandonada e eu disse isso a minha esposa, mas Marta só balançou a cabeça e suspirou. Depois, ela foi embora. O Dr. Silva também estava estranho, nem sequer me questionara muito quando eu comecei a contar sobre como eu acho que aquela mulher enganou a todos.
Um dia, pela manhã, o Dr. Silva me buscou no meu quarto e isso devia ter me alertado sobre algum problema. Havia algo nos olhos dele quando ele começou a falar sobre outro psiquiatra que queria ouvir minha história. Eu não sabia se eu devia aceitar a conversa com esse outro médico. Nem Marta nem o Dr. Silva acreditavam em mim, por que um outro psiquiatra, que nem me conhecia, iria acreditar? Eu imaginei que seria uma ótima oportunidade para eles me declararem louco e jogarem a chave fora.
O outro psiquiatra já me esperava na sala, o Dr. Silva o cumprimentou e foi até a janela, onde acendeu um cigarro.
- Olá. – disse o rapaz, por que para mim ele era um rapaz. – Meu nome é Sebastião Alade. Fui convidado pelo Dr. Silva para ter uma conversa com você, Arturo. Me interessei por sua história. Se importaria de compartilha-la comigo?
- Eu não sou louco. – respondi – Nem burro. Não fale comigo como se eu fosse. Todos acham que sou louco, mas não sou! A minha história aconteceu! Eu vi! Eu estava lá! Vocês não.
Sebastião sorriu.
- Então, me conte o que você viu. Sou um psiquiatra diferente da maioria. – consertou os óculos grossos que usava. – Eu quero ouvir de você, com as suas palavras e se você me convencer, sairá daqui amanhã.
Eu pensei que seria uma boa coisa sair daquele lugar. Eu poderia ir até a mansão, quebrar o feitiço e mostrar para todos que eu estava certo. Imaginei Marta chorando nos meus braços e o Dr. Silva implorando por perdão.
Eu não sou louco, portanto concordei e comecei a contar a minha história.
E claro, foi um grande erro.
-
Meu nome é Arturo Avim. Minha mãe era descendente de italianos e se orgulhava desse fato, embora não soubesse falar uma palavra no idioma ou sequer tenha visitado sua “pátria-mãe” em vida, por isso ela me nomeou Arturo, não Arthur, mas Arturo. Avim veio do meu pai e ele dizia com muito orgulho que no passado, nossa família provavelmente veio de um ramo bastardo de algum nobre da família Avis, os monarcas portugueses.
Nasci em Lisboa, numa manhã chuvosa, depois de três dias de parto. Minha mãe era caixa num mercado e meu pai era taxista. Não passávamos fome e eu ganhava presentes no natal, mas não era, nem de longe, a vida que meus pais queriam. Mesmo assim, eu cresci num ambiente tranquilo, brinquei muito na rua, tive amigos, namoradinhas e tomei muitos xingos dos meus professores.
Desde criança, eu nunca gostei muito de estudar e não me via perseguindo o mundo acadêmico. Disse isso para mamãe uma vez e nunca mais repeti esse erro. Se eu fechar os olhos ainda me lembro da dor daquele beliscão.
Quando eu tinha doze anos, meu pai arranjou outro emprego e pensando nisso agora, eu vejo que tudo começou ali. Na época, só sabíamos da felicidade e do alívio. Ainda me lembro do meu velho arrumado para o primeiro dia de serviço, com um terno preto brilhante, sapatos sociais lustrados e uma boina de motorista particular. Eu lembro que mamãe o elogiou.
“Você está lindo, Marco!”
E ele, todo orgulhoso, pois mesmo vindo de baixo, mesmo não tendo estudo e sendo tão simples quanto era, conseguira um ótimo trabalho. Eu sabia que ele estava feliz e o sorriso, embora tivesse vacilado ao longo do tempo, jamais sumira. Meu pai tinha muitas falhas, mas deslealdade não era uma delas, tanto que levou para o túmulo o segredo que seus chefes guardavam.
O que? Ah, ele trabalhava como motorista de luxo para uma empresa grande aí. Eles eram novos no país e precisavam de gente para trabalhar, meu pai deu sorte ou talvez, não. Na noite do primeiro dia, comemos pizza na cozinha apertada do nosso apartamento de três cômodos, tinha sido um presente do pai como comemoração ao trabalho novo e até hoje nenhuma pizza teve um gosto tão bom.
“Vou dirigir ricaços para onde eles quiserem ir.” – me lembro dele dizendo. A boca estava manchada de molho de tomate e eu ri dele, embora eu estivesse tão sujo quanto. – “Tava conversando com um cara mais velho de serviço que veio trabalhar aqui e gostei demais do que ele me disse. Sabe, se eu trabalhar bem e um desses ricaços gostar de mim, eu posso ser transferido para qualquer lugar que eles estejam. Podemos morar na Itália, França, Espanha ou até nos Estados Unidos, em qualquer lugar. Vou fazer uma boa impressão!” ele riu e riu.
Meu pai não era um homem bonito, sabe? E ele estava velho depois de muito tempo trabalhando no sol, na chuva, saudável ou doente. Mas, ele era simpático e ria bastante. Todos na rua gostavam dele, todos nos antigos trabalhos também. Os anos como taxista deram ao meu pai uma sabedoria a mais para lidar com passageiros.
No começo, ele trabalhou em Lisboa por cerca de seis meses, depois fomos transferidos para a Inglaterra, onde uma herdeira rica de uma grande fortuna ficaria por alguns meses e requisitara meu pai. Todos fomos para Londres.
Mamãe fazia várias perguntas sobre a mulher: se ela era bonita, se ela conversava muito com o meu pai, se ela fazia perguntas suspeitas, se ela era casada, se tinha namorado e meu velho ignorava.
“Para de besteira, mulher! Só você me aguenta mesmo!”
Pai tinha trabalhado como motorista em Londres na adolescência e mesmo assim antes de voltar ao serviço, ele passou dois dias rodando sozinho pela cidade, depois se apresentou na agência.
Eu estava muito fascinado para ligar para quem meu pai trabalhava e minha mãe parecia ter se esquecido disso também. Por três meses vivemos tranquilamente em Londres, depois voltamos para Lisboa. Cinco meses depois, meu pai recebera outro chamado para Itália dessa vez, mas ele fora sozinho e três meses depois, ele voltara. Ainda com aquele sorriso de quem ganhara na loteria. Ele comprara um carro novo, compramos um apartamento grande, vestíamos roupas de marca e eu estava numa das escolas mais caras de Lisboa.
Eu achava tudo um máximo, mas mamãe parecia preocupada o tempo todo e eles brigavam com maior frequência. Pai dizia que estava tudo bem, mas ela insistia que havia algo errado: ninguém ganhava tanto dinheiro trabalhando como motorista. Os colegas do meu pai viviam numa situação boa, mas nada comparado a nossa, nem sequer perto.
Tudo aquilo não durou muito e meu pai parou de trazer tanto dinheiro para casa. Estabilizamos naquela situação de classe média e assim ficamos.
Eu tinha dezoito quando meu pai sumiu numa sexta-feira a tarde e só voltou segunda a noite. Ele jamais disse onde tinha ido ou o que tinha acontecido. O máximo que conseguimos arrancar dele, depois que mamãe ameaçou ir embora foi que uma cliente ligou para ele, precisando urgente de um carro, oferecendo uma quantia a mais por fora e ele aceitara.
Não sabemos para onde ele foi, o que fizera nem para quem. Por sua sanidade, mãe esqueceu-se da situação e eu também. Até poucos anos, eu acreditava que meu pai tinha se envolvido com a máfia ou algo do tipo, que o pagara para ser o motorista que transportava os cadáveres e os jogava no rio.
Eu não estava muito distante da realidade.
De toda forma, duas semanas depois, um colega do meu pai passou lá em casa. Eu não estava lá, só soube quando eu voltara das aulas da faculdade. Minha mãe recebeu o pacote e perguntou de quem era. O homem não respondera, só deixou o baú dentro da nossa casa e foi embora.
Mãe, sendo curiosa como era, tentou abrir o baú sem sucesso. Dois grandes cadeados tinham o objetivo de manter curiosos longe. Eu também tentei abrir até pai chegar e nos mandar deixar o baú quieto.
Ele não nos disse o que era, talvez nem ele mesmo sabia, mas, como eu já disse, meu pai era um homem extremamente leal e guardou o baú lá em casa. Ele pediu que ninguém mexesse naquilo e deixou lá. Com o tempo, eu esqueci. Arrumei uma linda namorada, consegui um emprego, larguei a faculdade e não me arrependi. Mamãe morreu alguns meses antes do meu aniversário de 30 anos e tempo depois, meu pai decidiu viver numa casa de repouso.
O baú foi com ele.
Três anos atrás, recebi uma ligação da Casa da Paz dizendo que meu pai falecera, enquanto lia um livro na varanda. Ele tinha um sorriso no rosto e uma expressão pacífica, como se tivesse cumprido uma missão.
Velho egoísta e maníaco.
Depois de chorar e preparar o funeral, fui até o quarto dele. Tirei todas as roupas do guarda-roupa e as embrulhei com cuidado, ainda tinham o cheiro dele. Lá também achei alguns vestidos da minha mãe e ainda tinham o cheiro dela. Havia fotos, muitas, dele e dos irmãos, dos meus avôs, da minha mãe, dos dois juntos, minha quando criança, fotos em família e algumas fotos que ele tirara enquanto viajava. Nada demais.
Guardei todas.
Só depois de guardar tudo e de revirar todo o quarto, foi que dei falta do baú. Perguntei para os médicos e para as enfermeiras, ninguém soube me informar. Optei por procurar por Nancy e Zebedias, dois amigos que meu pai fizera na Casa da Paz.
Os dois estavam sentados, um ao lado do outro, aproveitando o sol quente. Nancy tinha os olhos vermelhos de choro e Zebedias estava abatido. Conversamos um pouco, eles exprimiram seus pêsames e eu fiz o mesmo. Falamos sobre o meu pai, eu disse como ele era na minha infância e eles me contaram o que os três aprontavam diariamente naquele lugar. Eu ri e chorei um pouco, eles fizeram o mesmo, então eu perguntei do baú.
Os dois se entreolharam.
“Ele não queria me mencionássemos nada daquele baú, Arturo.” – me disse Zebedias num sussurro – “Não tem nada a ver com a gente. Acabou”.
Eu nem sabia que algo havia sido começado. Expliquei que o baú sumira e que ninguém sabia dele, ainda perguntei se eles sabiam o conteúdo da caixa. Eles negaram.
“Ele não dizia para ninguém. Perguntei várias vezes, mas ele sempre falava: nada que nos diz respeito”. Disse Nancy no mesmo tom de Zebedias, como se estivessem com medo de que alguém os ouvisse. “ Ele estivesse guardando o baú para outra pessoa.”
Zebedias concordou e adicionou: “E ela veio buscar, na manhã que o Marco morreu.”
Nenhum deles soube me falar como ela era. Fui até a secretária e pedi pelo nome da pessoa que visitara meu pai, mas não havia registro de visitas recente para o meu pai, com a minha exceção. Expliquei a situação para o médico e juntos vimos o vídeo de segurança, que também mostrava nada. Pelas próximas semanas fiquei encucado com a situação, mas me convenci que os dois velhos estavam tão loucos quanto vocês acham que eu estou agora.
Graças ao meu pai, eu tinha um emprego na mesma empresa que ele e ganhava o suficiente. Minha esposa também trabalhava numa escola particular, portanto nos mantínhamos estáveis o suficiente. Duas semanas depois da morte do meu pai, eu recebi uma ligação do meu supervisor falando sobre duas herdeiras de “grande fortuna” que precisavam de um bom motorista para acompanha-las. Elas andariam por quatro dias em Lisboa, depois em Londres e por fim, Itália. Seria um trabalho de um mês, no máximo. O dinheiro era muito bom e eu aceitei.
Eu já tinha dirigido em Londres e em Roma por alguns meses. Não me considerava um motorista experiente nos dois lugares, mas eu conseguiria me virar nas duas cidades. Já o fizera antes por menos dinheiro, quem diria por mais! Conversei com minha esposa e dois dias depois, eu as estava esperando no aeroporto internacional da Portela.
Eu não sei bem o que eu esperava. Meus anos de experiência me mostraram que os ricos podem ser bem diferentes entre si. Eu estava esperando algo entre patricinhas, peruas, diabos vestidas em prada ou pessoas extremamente excêntricas, mas me surpreendi.
As duas mulheres pareceram me reconhecer imediatamente. Uma delas estava no celular e falava apressadamente em italiano, mas tinha um forte acento espanhol. A outra me cumprimentou com um português formal e tinha um forte acento britânico. São essas as mulheres que estou pedindo para vocês localizarem, as mesmas que foram até aquela mansão na Itália!
Os nomes? Angelina e Diana.
Diana era a britânica, de pele pálida, olhos negros e um sorriso largo. Tinha longos cabelos negros como piche e quanto ela sorria, as covinhas em sua bochecha ficavam adoráveis. Ela era alta, elegante e muito simpática. E... Ela era professora universitária. Ambas eram. Acho que Diana dava aulas de elétrica ou algo do tipo.
Angelina era porto-riquenha com descendência italiana. Eu sei por que
as ouvi conversando no carro sobre Porto Rico. Tinha estatura mediana, um pouco mais baixa que Diana, tinha a pele morena, os olhos cor de mel e os lábios eram atraentes e vermelhos. Acho que ela mexia com algo relacionado à Biologia, não sei.
Durante quatro dias, eu rodei com ambas em Lisboa. Eu as levei para restaurantes, alguns museus, uma exposição de grafite, teatro, leilão de antiguidades, livrarias, sebos e pequenas lojas de penhor. Ao meu ver, elas procuravam por algo ou por alguém, constantemente.
Medo? Não, não, muito pelo contrário. Diana era muito agradável e tinha um sorriso muito bonito. O sotaque dela deixava qualquer um louco! Ela fazia muitas perguntas e gostava de aprender, aos poucos, o português, embora eu achasse que ela falasse muito bem.
Angelina era difícil de se aproximar, mas me tratou muito bem durante as viagens. Fazia algumas piadinhas negras e em geral, ela e Diana gostavam de discutir. O que? Agressivamente? Não, não, pelo contrário, era obvio que as duas se davam muito bem. Aquele tipo de discussão de amigos que se aguentam há muito tempo.
Elas normalmente conversavam comigo em português ou inglês, mas entre elas, as línguas variavam e os dialetos também. De grego a japonês. Dependia do quanto elas queriam que eu entendesse a conversa. O pouco que eu conseguia entender me fez acreditar que as duas estavam realmente procurando por algo há muito tempo. Na época, eu achei que era apenas uma excentricidade de duas mulheres muito ricas e muito inteligentes. Sabe como tem gente que gosta de colecionar selos? Eu vi um programa em que uma mulher tinha mais de 500 objetos com a cara do Mickey e outra era obcecada com a Barbie!
Então, normal, certo? Ricos excêntricos não são raros e as duas eram obviamente obcecadas com antiguidades e coisas estranhas, especialmente Damas de Ferro. Sim, aqueles terríveis objetos de tortura. Diana tinha um livro que só falava disso e ela o folheava com frequência, quase que obsessivamente.
Eu descobri o porquê! Tudo fez sentido no final! ... Tudo bem, vou ser paciente.
Saímos de Lisboa e fomos para Londres. Fomos de primeira classe e eu nunca vi tanto luxo. As duas sentaram ao lado da outra e foram cochichando durante o trajeto, folheando livros velhos e fazendo anotações: Angelina num caderno e Diana num notebook. Eu fiquei assistindo filmes e dormindo.
Londres não foi muito diferente. Passamos em provavelmente todas as lojas de antiguidades e penhores existentes na cidade. Os leilões e as visitas aos museus ocuparam o resto do tempo. Elas não compraram nada e pareciam conhecer os corredores dos museus melhor do que suas próprias casas. Ficamos num hotel, em quartos separados, portanto não faço ideia do que elas fizeram.
Ficamos um pouco mais de uma semana em Londres, depois fomos a Roma. Foi em Roma que tudo explodiu.
Desembarcamos no Aeroporto Fiumicino e já éramos esperados por uma mulher negra com forte sotaque francês. Ela usava um vestido branco com estampas florais, um chapéu de palha e óculos escuros. Nem Diana nem Angelina pareceram surpresas com a presença da mulher, embora sua presença jamais me fora mencionado.
“Nosso motorista, Arturo.” Disse Diana sorrindo de forma quase galante para a recém chegada. “Arturo, essa é Anastasie.” Eu disse que era um prazer conhece-la.
“Eu sei.” Ela disse em inglês, o sotaque era realmente muito forte, mais até do que o de Diana. “Demoraram.”
As três andavam na frente conversando rapidamente em várias línguas diferentes. Eu me sentia no meio da Torre de Babel. Anastasie falava rápido e em tom agressivo. Angelina falava pouco. Diana tinha o tom mais calmo, embora parecesse alfinetar Anastasie vez ou outra.
Uma limusine nos esperava. Fui direto para o banco do motorista, enquanto as três se acomodavam nos bancos traseiros.
“Quem está para chegar?” perguntou Angelina em inglês.
Anastasie me olhou através do retrovisor do meio e disse algo num francês diferente do que eu era acostumado. Eu conclui que ela não era francesa.
“Iremos para qual hotel?” perguntei em português.
Foi Diana que me respondeu com aquele lindo sorriso.
“Não iremos para hotel. Vamos para a casa de Angelina.” Me estendeu um bilhete “ A propriedade está um pouco fora da cidade, é uma fazenda, na verdade.”
Peguei o bilhete e admiti que embora eu conhecesse a estrada que percorreríamos, eu não sabia exatamente onde ficava a fazenda.
“Eu te aviso quando estivermos perto.” Respondeu Angelina. “Por hora, só saia do centro, por favor.”
Me calei e fiz como pedido. O resto da conversa prosseguiu entre elas e eu relato o mais fielmente que posso.
“Estou animada.” disse Anastasie e de fato parecia. “É a primeira vez que nos reunimos em muitos séculos.”
Angelina digitava algo no celular e torceu os lábios.
“Ah, seja lá o que estiver pensando em falar, não estrague o momento.” Continuou Anastasie soltando uma risada. Diana a acompanhou e
Angelina soltou um “hunf” ofendido.
“É verdade.” Continuou Diana em tom pensativo “E é curioso por que nunca nos damos bem antes.”
“E todas sabemos de quem é a culpa”.
Angelina bufou e tirou os olhos do celular.
“Ahora es mi culpa?” perguntou em espanhol. Eu tinha notado que ela fazia isso quando ficava com raiva: mudava imediatamente para o espanhol. “Quién nos estaba persiguiendo? Quién nos maldijo? Me recuerdo de los gitanos!”
Naquele ponto, eu me convenci de que elas eram realmente muito excêntricas. Provavelmente, pertenciam a estranhas seitas religiosas. Como católico não praticante, achei estranho, fantasioso e até meio estúpido, mas me mantive em silêncio.
“Isso tem muito tempo” continuou Anastasie “Quem vive no passado, não vive o presente.”
Diana riu e eu vi Angelina ficar vermelha. Foi então que a primeira coisa estranha aconteceu: eu perdi o controle do carro.
Não! Eu estava prestando atenção na conversa e no trânsito, senhor. Sou um profissional e bem, o estranho não foi ter perdido o controle, e sim, o que me fez perder o controle: uma corrente de ar.
Sim, senhor, uma corrente de ar, extremamente forte ou talvez fosse um soco de uma criatura grande e invisível. Eu não sei! Mas fez o carro rodar como se fosse de brinquedo, só não batemos por que outra corrente de ar ou mão invisível parou o carro antes que pudéssemos no machucar.
Eu soltei um grito de susto e fiquei pálido como um fantasma. Anastasie soltou uma gargalhada e Diana soltou um “Bloody hell!” bem britânico. Angelina limpou a garganta, se desculpou comigo e pediu para prosseguirmos. Eu tremia, mas fiz como pedido.
“O que diabos foi aquilo?” perguntei. Eu tremia e duvidava da minha própria sanidade naquele momento.
“Tudo bem, querido.” Era Diana. Eu também notei que quando a britânica queria distrair Angelina de uma briga ou de algo que pudesse causar desavenças, ela usava aquele tom, como se acariciasse cada sílaba e quase ronronando. Agora eu sei que era algum tipo de magia, pois parei de tremer no mesmo instante e fui preenchido por uma paz tão grande, que até então, eu achava impossível. “A estrada está molhada, então foi uma distração normal. Não tem problema. Já fiz isso mais vezes do que eu conseguiria admitir”.
No momento, eu achei que o “isso” era perder o controle do carro, mas agora, vejo que estava errado. O “isso” era aquilo que ela fez comigo.
A estrada? Molhada?! Não, nunca. Pode olhar como foi o tempo naquele dia! Dia dezoito de Abril de dois mil e dez! Pode olhar! Não choveu naquele dia, mas a estrada estava completamente molhada. O caminho a frente estava com o asfalto tomado por um barro de terra vermelha – e não havia nada com terra ao redor, como me explicam isso?! – e a estrada atrás estava seca, lisa e limpa.
Quando descemos na fazenda, que era na verdade uma villa, o carro estava todo sujo, mas o táxi que chegou horas depois estava completamente limpo. Elas usaram magia para me fazer acreditar que o carro rodopiara por que eu perdi o controle numa estrada lamacenta, sendo que tinha sido outra coisa. Elas queriam que eu pensasse que estava louco como vocês pensam que eu sou!
Mas eu estou divagando. Bem, chegamos a villa pertencente a Angelina. A mansão era bela, enorme, antiga, de cor branca e grande janelas abertas. Não estava abandonada há séculos como Marta e o Dr. Silva disseram, muito pelo contrário, estava mais bem cuidada que esse escritório. Vocês, com certeza, acharam a mansão errada.
O jardim era belo e muito diversificado. Um jardineiro terminava esculturas em diversas formas nos arbustos na entrada da mansão. A propriedade em si era imensa e eu via as árvores, com frutos enormes e brilhantes, se estendendo até onde eu podia ver. Havia também uma estufa grande e transparente com duas senhoras regando as flores lá dentro, elas conversavam uma com a outra e sorriram quando me viram. Mais tarde, eu soube que havia também um celeiro com cavalos cujos pedigrees valiam mais do que as nossas almas juntas e que eles costumavam pastar no pomar. Sabe o mais interessante? Não havia pessoas tomando conta do pomar. Veja, quando se tem uma propriedade tão grande, com coisas tão valiosas – se alguém roubasse frutos de uma fazenda, o dono ficaria furioso! Quem dirá matar um cachorro ou roubar um cavalo e vice versa! Donos de grandes propriedades evitam o máximo que algum lugar desprotegido seja apropriado por terceiros. – mas Angelina não tinha vigias. Nada. Ninguém.
A governanta, uma senhora alta com curtos cabelos brancos, a pele morena e severos olhos verdes, me guiou para um quarto de hóspedes e me avisou que o jantar era servido às sete horas da noite e atrasos não eram tolerados. Ainda eram um pouco mais de quatro horas da tarde, mesmo assim, eu estava exausto, liguei para a minha esposa, mas ela não atendeu, depois deitei e dormi. Acordei mais ou menos meia hora antes do jantar, tomei um banho rapidamente e fui até a cozinha.
As três já estavam lá, rindo e bebendo vinho. A comida já estava servida na mesa e eu comi fartamente. O tempero era forte e o vinho era doce. Até hoje eu não tive uma refeição tão boa. A conversa também seguia agradável. Anastasie era viajada e conversamos sobre o Brasil. Ela morou alguns anos na Bahia, Pernambuco, Manaus e visitara algumas comunidades indígenas na região mais central do estado, eu só tinha passado quinze dias no Rio durante as férias com Marta, então ouvir as experiências dela era fascinante. Depois do Brasil, ela passou mais alguns anos viajando pelo interior da América do Sul e eu me perguntei se havia algum lugar que ela não conhecia.
Anastasie e Diana se uniram contra Angelina, que começou a bradar em espanhol. As duas a provocavam sem dó sobre algo que aconteceu alguns anos antes – e eu não soube o que era – mas, na hora não me importava. Eu estava numa mansão enorme, com lindas e agradáveis mulheres, com muita comida e eu estava recebendo muito bem. Eu não tinha do que reclamar. O quase acidente não passou pela minha mente durante toda a semana.
Não viajamos por Roma como fizemos em Londres e Lisboa, só ficamos na imensa mansão aproveitando o luxo e descansando. Eu ficava rodando a propriedade. Andei pelo pomar montado numa égua branca cujo valor nem sequer começo a imaginar, comi algumas das frutas e como tudo até agora, jamais voltei a experimentar frutos tão doces e suculentos. Fui sozinho, mas não me atrevi a afastar muito da mansão. Depois, fui com Angelina e cavalgamos a tarde inteira. A égua que ela montava tinha os pelos marrons e brilhantes, um losango branco se destacava em sua testa, a crista era comprida e muito lisa. Angelina se orgulhava de declarar que já tinha ganhado cinco concursos com Esperanza. Não era um animal novo, mas tinha um porte orgulhoso e os músculos fortes.
Anastasie nos acompanhou no segundo dia. Ela estava entediada e não fazia disso um segredo. Só Diana ficou. Eu a vi pouco durante os três dias que ficamos naquela imensa mansão. Eu dormi muito, comecei a ler alguns livros e cavalguei, mas Diana só ficava na imensa biblioteca no piso inferior da mansão. Os empregados levavam o jantar para ela e quando perguntei só me responderam que ela estava terminando uma pesquisa muito importante e a faculdade estava exigindo alguns relatórios que ela ainda não tinha terminado. Achei estranho, mas não me intrometi. Fiquei longe da biblioteca e me distrai com outras coisas.
Angelina tinha preferência pela estufa e pessoalmente, regava todas as plantas espalhadas pela mansão. Se ela não estava na estufa, estava ou no pomar ou no celeiro junto com o cuidador de cavalos, um senhor de idade que só falava espanhol – não era da Espanha, então supus que era talvez da Argentina ou outro país da América Latina.
Anastasie sumia a maior parte do tempo. Eu a vi poucas vezes também, a noite no jantar e no dia que ela cavalgou comigo e com Angelina.
Algumas vezes eu a ouvia nos corredores sussurrando aquele francês carregado como se tentasse acalmar alguém, mas quando eu tentava achar sua localização, eu só encontrava corredores vazios.
Aquilo devia ter me alertado, mas foi só na noite do terceiro dia que eu comecei a perceber no que tinha me metido. Mikail foi o primeiro a chegar. Tinha o mesmo sotaque francês de Anastasie e pelo beijo que partilharam, eram amantes. Annie foi a segunda, seguida por Hanyu e Shakti, depois mais pessoas cujos nomes não me lembro. Eram muitos.
Até aí, eu só tinha chegado a conclusão de que era realmente uma seita religiosa estranha e comecei a me despedir das minhas patroas. Diana estava no meio do salão, com olheiras e o rosto muito cansado. Uma mulher morena, como Angelina, com longos e cacheados cabelos negros a guiou para um sofá. A britânica parecia ainda mais pálida.
Angelina, a anfitriã, pediu a palavra e o salão de festas se virou para ela. Eu, por curiosidade e medo, me isolei no canto do salão, esperando um bom momento para falar com ela.
“Iremos começar o ritual.” Ela disse em inglês, o sotaque espanhol ficou mais acentuado. “Por muitos anos esperamos por esse momento e finalmente, o tempo chegou”.
Palmas eclodiram ao redor salão. Diana começou a tossir e Anastasie se aproximou, pareceu medir a temperatura dela e sorriu, acenando para a outra morena, que exclamou alto em espanhol.
“Rápido!”
Algo me disse para correr. Para correr o mais rápido que eu pudesse, pegasse o primeiro avião e voltasse para Lisboa, mas quando olhei para o rosto de Angelina e ela abriu aquele sorriso confiante, foi como se eu tivesse enfeitiçado. Corri até Diana e a peguei no meu colo. Um rubro vermelho se espalhava pelo pescoço dela e subia para o seu rosto.
Eu gritei que ela estava queimando de febre, mas todos só me olharam. Eu nunca vou me esquecer de todos aqueles olhos focados em mim, muito menos do sorriso vermelho de Angelina e como aqueles olhos cor de mel se avermelharem. Eu sentia Diana morrendo nos meus braços.
“Que comience la cerimônia.” Declarou Angelina.
As portas foram trancadas, eu não vi acontecendo, mas eu soube, assim como uma gazela sabe que a leoa está lá, mesmo não a vendo. É um instinto de sobrevivência. Eu estava preso e por segundos, que se estenderam por séculos, eu pensei que morreria, eu e Diana.
O grupo formou um círculo ao nosso redor e Diana foi ficando cada vez mais quente e mais vermelha.
“Se ficar aí, vai morrer.” Disse Anastasie em português. O sorriso ainda estava fixo em seus lábios.
Antes que eu conseguisse pensar em responder – toda aquela situação era louca para mim, eu não conseguia pensar, nada daquilo entrava na minha cabeça embora acontecesse perante meus olhos!- Mikail me puxou pelos ombros, mas Diana ficou lá.
Eu me lembro de ter gritado para deixa-la em paz, me lembro de ter socado e chutado todos que tentavam me tirar do centro do ciclo. Só Anastasie me acalmou com aquele tom ríspido.
“Fique quieto, rapaz. Mau algum afligira Diana.” – riu – “como se Angelina fosse permitir”. Ela se virou para alguém – “segure-o”.
Foi o jardineiro, Pedro, que me segurou. Eu nem tinha percebido que todos os empregados da casa estavam lá. Pedro era mais alto do que eu e muito mais forte. Não sou um rapaz miúdo e os anos na academia me proveram com alguns músculos, mas ele me segurou como se eu fosse uma criança magricela.
“Por muitos anos procuramos pela chave do nosso enigma. Procuramos por sítios arqueológicos, cavernas, cidades perdidas, outras dimensões, no fundo do oceano, nas cidades que se escondem nas nuvens. Procuramos em lojas, em sonhos, em delírios, em mentes, em almas e em mentiras. Procuramos nos museus, nas artes, perguntamos para as pinturas e rezamos para a Mãe-Terra. Séculos se passaram. Alguns desistiram, só para depois voltarem com maior clamor. Mas achamos. Graças a nossa Anastasie, conseguimos!”
Todos começaram a aplaudir.
Uma das portas se abriu e três grandes homens entraram empurrando uma grande dama de ferro, velha, enferrujada, com musgos verdes escuros no ferroe escuro,e rodeada de correntes Seguidos os três homens, um quarto entrou... Com o baú do meu pai.
Eu me lembraria daquela caixa em qualquer lugar, com a forma retangular, aparência da época vitoriana, muito bem enfeitada e com os dois cadeados enferrujados. Estava tão limpa e preservada quanto eu me lembrava.
“Arturo”. Angelina me olhava agora. “Seu pai, Marco, cuidou do meu baú por muitos anos. Se não fosse por ele, creio que pessoas mal intencionadas teriam se apropriado dos segredos que escondi. Por isso, eu te escolhi, como retribuição pela lealdade de Marco.”
Os homens depositaram a dama de ferro no chão, deitada. As correntes fizeram barulho quando se chocaram com o chão. O baú foi depositado em frente a Angelina, que fez um simples movimento com as mãos e os dois cadeados caíram no chão, abertos. Ela abriu o baú e dele retirou um livro muito grosso com capas duras e negras.
O mesmo rapaz pegou o baú e o empurrou para fora do círculo. Só Diana, Angelina e a dama de ferro estavam no núcleo.
Ela se virou para mim novamente.
“Seu pai queria estar aqui quando esse ritual acontecesse. Infelizmente, demorou mais do que a vida de um humano normalmente dura.”
Eu balbuciei uma pergunta: “O que vocês são?”
Ela riu. Todos riram. E não me responderam.
As pessoas ao redor do círculo deram as mãos e começaram a sussurrar palavras estranhas em línguas diferentes. Algumas me pareceram similar ao espanhol e francês, como o que Anastasie falava, mas Mikail sussurrava algo mais forte, com os érres puxados e tom agressivo, como uma mistura de alemão, russo e algo de inglês. A sala foi envolvida numa cacofonia ensurdecedora, com sussurros desconexos e agressivos. A própria Angelina sussurrava algo similar ao italiano misturado com espanhol e português. O livro estava aberto suas mãos.
Logo, todos se calaram ao mesmo tempo, tão de repente quanto começaram. Foi Angelina que quebrou o novo silêncio.
“Liberta-te.” E fechou o livro ao mesmo tempo em que a dama de ferro começou a se debater.
Diana se esticou no chão. Os olhos fechados e a face muito vermelha. A dama se mexia e o corpo de Diana acompanhava os movimentos, como se estivessem em sintonia.
O que? Não, Pedro já tinha me soltado e eu estava sentado no chão muito atordoado para fazer qualquer coisa. Não é como se vocês fossem reagir de forma diferente. De toda forma, o jardineiro já estava em pé só olhando o ritual com um sorriso no rosto e olhos brilhantes. Ele também participara da cacofonia, mas ao contrário dos outros, eu consegui entender algumas palavras dele. Ahn? É que eu suspeito que ele era novato por isso ainda não tinha contato com línguas superiores e eu entendi o que ele dizia por que ele sussurrava em português. Não de Lisboa como eu, e sim do Brasil, provavelmente.
Eu não lembro exatamente o que ele dizia. Na hora, com tudo aquilo acontecendo, Pedro era nada comparada a Angelina e a Diana... E depois àquela coisa.
Que coisa? Ahh, aquilo que se levantou da dama de ferro. Mas, vou explicar com calma, doutor.
Diana se sentou no chão. Seu corpo estava mole, como se fosse uma boneca de pano e não possuísse vontade própria.
“Você está no corpo dela.” Angelina disse com a expressão séria. Ela parou como se estivesse analisando o que falar. “Tome cuidado, por favor.”
“Eu sei”. Respondeu a Diana que na verdade não era Diana. “O meu ainda está dormindo.”
Eu não usaria a palavra “dormindo” para descrever o estado do da coisa dentro da dama.
“Diga” continuou ‘Diana’. “Diga”.
Angelina assentiu. Abriu o livro novamente e o folheou por alguns segundos.
“Eu começarei, depois, Anastasie, puxe o coro, por favor.”
Ela começou a falar naquela estranha língua italiana/portuguesa/espanhola, numa mistura de palavras estranhas e sons ainda mais estranhos. Eu nem conseguiria tentar reproduzir aqueles sons.
Anastasie fez como pedido e puxou o “coro”, que consistia na repetição dos mesmos sons, algo como: “liberare” seguido por um estranho som glotal. O resto do ciclo começou a repetir o coro, logo Angelina bradava algo no centro e a roda repetia em sincronia: “liberare”.
Diana começou a respirar com mais dificuldade e num movimento desengonçado e mole, ela se levantou. Os braços pendiam nos lados e a cabeça pendia para frente, mas isso não a impediu de cambalear até a dama de ferro e se debruçar sobre ela. Estendeu as mãos e começou a acariciar o objeto enferrujado, eu notei que seus lábios se mexiam como se sussurrasse algo. Angelina falava mais rapidamente e Anastasie puxou o coro com maior intensidade.
Eu engatinhei até mais perto do círculo e vi os rastros de sangue na tampa da dama de ferro, foi só então que percebi que Diana não acariciava o objeto, ela estava rasgando a própria pele e banhando o ferro enferrujado no líquido quente e escuro.
O coro ficava mais alto, a voz de Angelina sumia no meio do barulho até que Diana gritou. O grito envolveu toda mansão e calou a todos. Eu nunca ouvi nem ouvirei um grito tão terrível em toda a minha vida e talvez, nem depois dela.
Diana desfaleceu em cima da dama de ferro e um silêncio incômodo se instalou.
- Deu certo? – ouvi Pedro sussurrar para ninguém em particular.
O corpo de Diana se contorceu e sua cabeça pendeu para trás. Eu vi a garganta dela se mexendo. Como no quase acidente, um tipo de mão invisível a empurrou e o corpo dela rolou pelo chão, como se fosse uma boneca.
Angelina largou o livro no chão e correu para ajudar a amiga. Eu não sei se Diana estava consciente ou não. Naquele momento, com a exceção de Angelina, acho que todos olhavam para a mesma coisa que eu: a dama de ferro. As correntes arrebentaram e os trincos estouraram. A dama balançou algumas vezes, então a tampa se levantou e foi empurrada para o lado.
A coisa que se levantou ainda me causa pesadelos.
Eu não sei bem descrever aparência daquilo sem usar a palavra ‘maligno’. A coisa só tinha ossos e pele, não havia músculos ou qualquer tipo de gordura. O crânio ainda possuía o glóbulo ocular, cujas íris azuis brilhavam, e os restos de cabelos negros e brancos ainda pendiam na cabeça. O resto do corpo era envolvido por trapos, que um dia foram brancos e a arcada dentária era completamente visível. Os dedos esqueléticos apertavam os lados da dama de ferro com força.
A coisa olhou para Angelina que ajudava Diana a ficar em pé. As duas olharam para a criatura recém-desperta, que sussurrou algum som quebrado e gutural.
- De nada. – respondeu Diana com dificuldade.
Nesse momento, o círculo se rompeu. Anastasie correu para o centro, onde a coisa estava sentava confusa e começou a bradar ordens:
“Pegue o lençol! Você, prepare um banho de pétalas de Iris e sangue de bezoar! Você, cadê a cadeira? Já está tudo preparado? Por que ninguém está cumprindo as minhas ordens?”
Eu fui esquecido, mas não me importava. Eu estava apavorado, confuso e meus músculos não se mexiam. Antes de desmaiar, eu vi Angelina guiando Diana para fora da sala.
Acordei no dia seguinte com Mikail abrindo a porta. Ele tinha um sorriso galante e vestia um terno branco com uma flor amarela no bolso do paletó.
“Achei que dormiria o resto da semana.”
Sentei na cama e não respondi. Ele pareceu compreensivo e riu.
“Você dormiu o dia inteiro.” continuou Mikail “Já anoiteceu de novo.”
“Aquilo foi um sonho?” eu perguntei. Parecia que tudo tinha sido uma ilusão causada por muita comida e muita bebida. Não era uma lógica muito boa, mas nada daquilo era muito lógico, na verdade.
“Não.” Respondeu Mikail. “Foi tudo verdade. Você viu a volta da nossa irmã, creio que a emoção foi muita.”
“Aquela abominação ainda está viva? O que vocês acham que estão fazendo? Brincando com a morte? Vocês são loucos!”
“Oh, se somos.” – ele riu – “O jantar está servido. Maria não gosta de atrasos.”
E então, ele me deixou sozinho no quarto.
Não havia muito que eu pudesse fazer naquela situação. Meu primeiro impulso foi procurar a polícia, mas eu estava no meio do nada com um bando de loucos. Eu já tinha visto filmes o suficiente para saber que sair correndo no meio da noite com uma trupe de loucos e monstros atrás de mim era uma péssima ideia.
Eu sai do quarto e fui, com cuidado, até a sala de estar, onde todos jantavam. Recebi alguns olhares rápidos quando entrei na sala e Mikail, que estava na ponta da mesa, abriu um sorriso e me chamou para o lugar vazio ao seu lado.
Eu fui.
A grande mesa retangular estava cheia, a comida já havia sido servida, mas ninguém comia. A cadeira do anfitrião estava vazia e todos conversavam animadamente entre si. Eu estava em silêncio e fiquei olhando ao redor, esperando alguém, de repente, me atacar, mas eles não se importavam com a minha presença.
“Por que eu estou aqui?” perguntei “Eu não pertenço a esse mundo”.
Mikail concordou.
“Seu pai era um homem leal. Fez vários trabalhos para um dos meus homens em Portugal, sempre silencioso, não fazia perguntas tolas e era um ótimo parceiro de bebida. Ele queria muito estar aqui para ver o que você viu.”
“Tudo isso é por causa do meu pai?”
“Você não é especial, Arturo. Seu pai era. Queríamos dar essa honra ao
filho de Marco.”
“Não é honra. É uma maldição. Uma loucura.”
“Você não é nada como seu pai.” Ele tomou um gole de vinho “Não que
isso seja uma coisa ruim, mas esperávamos mais.”
Eu fiquei em silêncio, apreensivo e receoso e só observei a conversa ao
redor. Realmente, ninguém se importava com a minha presença, com o meu conhecimento. Eu tinha visto algo que não era desse mundo e carregava comigo a arma para delatá-los ao mundo.
Foi então que me ocorreu que não era bem assim. Eu estava sentado com Mikail, que normalmente preferia a presença de Anastasie. Mikail parecia ser poderoso, ainda assim ele estava sentado na ponta contrária onde a cadeira do anfitrião ficava, perto de mim. Até mesmo Pedro, que eu notei ser um novato, sentava-se mais ao meio da mesa. Mas, Mikail estava do meu lado.
Vocês percebem?! Ele estava lá para me vigiar! Ele estava lá para ter certeza de que eu não correria e espalharia o segredo deles para todos! Eu era sim importante e estava sendo vigiado por um dos seres mais poderosos naquela casa. A realização daquilo me deixou extasiado, por que eu poderia impedi-los de destruir o mundo.
Aquela coisa era muito feia, muito nojenta para ser boa, senhores.
Comecei a me sentir confiante e com muita vontade de sair correndo dali o mais rápido possível. Eu tinha que salvar o mundo!
Poucos minutos se passaram na sala barulhenta até Mikail ficar em pé. Todos se calaram e fizeram o mesmo. Eu fui o último a me levantar e fiquei olhando ao redor, tentando ver o motivo que levou todos ao silêncio e, pensando nisso agora, era obvio o que tinha feito aquilo.
Anastasie entrou na sala de jantar e aquela coisa entrou junto, se apoiando nela. A coisa estava coberta por um lençol branco com renda de seda nas laterais e seu rosto tenebroso não estava a vista, ainda sim era possível ver seus pés esqueléticos, que mal tinham força o suficiente para sustentar o corpo. Duas mulheres no topo da mesa ajudaram Anastasie a sentar a coisa na cadeira do anfitrião, que era grande, com um enorme travesseiro de veludo vermelho no assento e um encosto do mesmo material.
A coisa olhou ao redor e produziu um som ainda indistinguível e gutural. Eu fiquei feliz de ver que ela ainda não conseguia falar, embora o som tivesse sido mais forte do que me lembrava da noite passada.
“Estão vindo.” – disse Anastasie se ocupando de uma das cadeiras vazias ao lado da cadeira do anfitrião. O resto da mesa também se sentou. – “Angelina sabe o que faz.”
Eu sabia que falavam de Diana e perguntei para Mikail num sussurro sobre a britânica.
“Você verá.” Foi a resposta dele.
E ver, eu fiz.
Angelina apareceu momentos depois com uma Diana ainda pálida ao seu lado. As duas pareciam cansadas, mas havia algo nelas... Eu não sei explicar em palavras o que era. Só que era obvio que mesmo com Diana ainda fraca e tão pálida, nenhuma das duas se arrependia da coisa monstruosa a mesa.
Angelina guiou Diana até uma cadeira do lado da coisa e de frente para Anastasie. Eu vi a garra esquelética e amarelada da coisa se estendendo para tocar a pele branca e macia de Diana, que sorriu com o contato. Aquele mesmo sorriso com covinhas que me fazia derreter.
“O que estão esperando?” questionou Angelina abrindo um meio sorriso
“A comida vai esfriar.”
E assim o jantar prosseguiu. Eu não comi naquela noite nem sequer bebi. Eu só observava a Coisa e as três mulheres do outro lado da mesa. Anastasie bebia um vinho tinto, muito escuro e discutia algo com Angelina em francês. Diana ciscava o prato, dando pequenas mordidas na comida só depois de forçada por Angelina. A Coisa não comia, não havia sequer um prato a sua frente, mas havia uma taça de vinho com um líquido azulado dentro. Ela bebia constantemente e quando o liquido acabava, Anastasie saia da sala com a taça e voltava com ela novamente cheia.
Angelina me olhou algumas vezes durante a noite até que se levantou e me chamou. A conversa não diminuiu, Mikail não me disse nada, nem Anastasie nem Diana me olharam, só a Coisa pareceu notar minha presença.
Eu a segui para fora da sala de jantar. Subimos a escada e fomos até um dos quartos, que era um escritório. Eu nunca tinha ido até aquele cômodo, mas era obvio que ele pertencia a Angelina. As estantes cobriam as duas paredes paralelas e eram feitas de uma madeira muito clara e brilhante, estavam cheias de livros, velhos e novos e algumas estátuas feitas de bronze e madeira negra. A mesa, feita da mesma madeira clara, estava virada em direção a porta e estava lotada de papeis, um notebook branco e um porta-retrato. Duas cadeiras estavam viradas para a mesa e ela pediu que eu sentasse.
Olhei para a porta e ela me prometeu que ninguém entraria por lá. Por via das dúvidas, eu a tranquei, só depois me sentei. Angelina sentou-se virada para mim e me olhou em silêncio. A mesa nos separava como um limite que jamais deveria ser cruzado. A janela aberta e coberta de grades, atrás de Angelina, permitia uma brisa gostosa rodar pelo cômodo pequeno. Um gato preto e cego de um olho estava deitado nas grandes na parte interna do escritório.
Eu nunca o tinha visto rodeando a mansão antes.
“O que está achando de tudo isso?” ela perguntou. O rosto bonito e aristocrático estava sério, mas algo naqueles olhos me incomodava.
“O que eu acho?” repeti a pergunta “acho tudo isso uma loucura. O que é aquela coisa?! Aquele demônio não deveria andar livremente.”
Ela nem sequer piscou, só torceu os lábios e prosseguiu num tom calmo.
“Ela não é um demônio.” Lambeu os lábios. “Eu prometi ao seu pai que o mostraria o despertar de Katrina, mas ele se foi antes que Anastasie achasse a dama de ferro correta.”
“Você foi a última pessoa que viu o meu pai.”
“Sim. Eu sabia que ele iria morrer naquele dia, portanto lhe fiz uma última
visita e peguei de volta o baú que me pertencia por direito.”
“Você sabia? Simplesmente sabia? Eu acho que você o matou para que ele não revelasse o seu segredo.”
Ela abriu um sorriso debochado.
“É isso o que você acha?” ela perguntou. “Então, por que eu não o matei antes? Por que esperei até que ele fosse um velho quase morrendo?”
Eu não respondi e ela prosseguiu.
“Os homens de Mikail me indicaram seu pai por ele ser discreto, silencioso e muito prestativo. Não gosto de dirigir, então achar um homem como seu pai foi um golpe de sorte muito grande. No decorrer dos anos, eu precisei muito dos serviços dele.”
“Há quanto tempo isso aconteceu?”
“Você era apenas uma criança. Ele me falava com você de frequência.”
“Se eu era uma criança, então você também era. Não devemos ter uma diferença grande de idade.”
Ela sorriu.
“Eu sou muito mais velha do que você acredita.” O celular dela soou, ela olhou a tela, abriu um sorrisinho e voltou o celular para a mesa. “Naquela manhã, o seu pai me pediu para te apresentar a esse mundo, eu prometi e cumpri com a minha palavra. Diana foi contra e Anastasie foi veementemente contra. Elas argumentaram que tudo isso te levaria a loucura. Eu disse isso para Marco também, mas ele confiava muito em você, acreditando piamente que você seria como ele.”
“Mas você fez.”
“Desde criança, minha avó costumava me diz que a palavra é a coisa mais sagrada que uma pessoa tem. Eu adotei esse dizer com tudo que eu tinha. Era a única coisa que eu tinha, na verdade. Eu prometi que nada te aconteceria enquanto nos acompanhasse em busca da dama de ferro, nada te aconteceu; eu prometi que te apresentaria ao meu mundo, eu o fiz.”
“Então, eu posso ir embora? Sem nada me acontecer? Sem aquela coisa tentar me machucar?”
Ela assentiu.
“Como eu já disse: minha palavra é sagrada. Você tem uma escolha: pode sair dessa mansão e tentar esquecer tudo que viu ou pode continuar aqui, trabalhando para todos nós, como o seu pai fez durante muitos anos.”
“E se eu decidir ir embora? Não tem medo que eu conte para outras pessoas sobre o que vi aqui?”
“Se quiser ir, é só ir. Pode pegar as suas malas, o carro e o avião de volta a Portugal. O pagamento estará na sua conta e tudo voltará ao normal. Mas, nunca iremos te contatar de novo nem haverá sinais desse acontecimento aqui.”
“Eles vão acreditar em mim.”
“Qual a sua decisão, Arturo?”
-
- Então, você voltou? – perguntou o médico me olhando com atenção.
- É obvio. Eu voltei para Portugal, disse tudo para a Marta e para o doutor Silva, daí eu comecei a pesquisar sobre Angelina e Diana.
- Depois, você veio para cá?
- Injustamente. Eu não sou louco. Só quero avisar as pessoas sobre o perigo. Há mais coisas aqui do que imaginamos, muito mais! Eu sei a verdade! Eu vi aquela coisa e eu tenho que avisar as pessoas sobre o perigo!
- Entendo.
O Dr. Silva se aproximou do Dr. Alade e os dois me olharam.
- Bem, o que acha, Sebastião?
O mais novo sorriu para mim.
- Acho que eu e Arturo nos daremos muito bem. Eu o aceito como
paciente na minha clinica, é claro.
- Eu achei que você ia me liberar daqui!
- E vou. Você irá comigo para Madri.
E foi assim que cheguei aqui. Declarado como louco num país diferente, sem quem me conhecesse ou que me quisesse bem.
Repito para mim mesmo todos os dias: não sou louco, não sou louco. Mas estou começando a duvidar de mim mesmo. Será que aquilo realmente aconteceu? Será que eu realmente vi aquilo que vi?
Ontem, juro que vi aquela coisa me olhando pela janela. Gritei, gritei e gritei. Mas todos me ignoraram. Quando eu forcei uma enfermeira a olhar pela janela, fui atacado e drogado. Ninguém vê a verdade, ninguém consegue perceber o que está acontecendo bem debaixo do nosso nariz. Ninguém entende que o mundo irá acabar e o responsável será aquela coisa maligna e não humana.
Eu não sou louco. Não sou louco. Loucos são aqueles que não veem aquilo que eu vejo, que não entendem aquilo que eu entendo, que não escutam a música, nem a risada e nem veem os olhos terrivelmente azuis.
Não sou louco. Não sou.
Sou?