A MÚSICA
A casa estava vazia, acabavam de se mudar, era agora um cenário melancólico e de cores preto e branco. O novo morador era músico, tocava piano, mas com aquele ar angustiante passeava pela casa. Deslisando o dedo nos móveis velhos via a poeira acumulada e aquilo era agonizante.
A casa estava praticamente arruinada, devastada, morta. Mas o músico sentia que aquela era sua casa e não lhe convinha derrubá-la. Ele então aconchegou-se ao piano e começou a tocar uma melodia consolável. Quando a música tocava o dó a poeira dos móveis escorriam pelo ar, tocar o ré fazia cores novas surgirem e destacar a casa, fá faz-se sol lá si e dó e surgia de dentro d'um quadro um moço pintado que sentou-se próximo ao músico. Assim que a canção ganhava novas notas o moço pintado ganhava vida, dó ré mi e ele começava batendo a ponta do pé no chão, fá sol lá si e batia os dedos na mesa, dó ré mi fá sol lá si cantava o músico e dançava o moço.
A casa ganhou uma fachada amarela, o sofá da sala com almofadas de diversas cores, o abaju acendia e apagava no pé da letra. O quadro torto na parede endireitou-se e os livros na estante repassava as folhas ao pé da letra. O jardim ganhou novas flores,dó ré mi e eram jasmins, fá sol lá si fez-se assim, no pé da letra.
Os dedos do músico, já doloridos, mas ele não descansou até que as cores subissem pela escada, dobrassem os corredores, manchassem os lençóis e chegassem ao sótão. E ao cair da noite já ao som de Fur Elise de Beethoven, o músico adormeceu os dedos, e o moço pintado, antes de voltar ao quadro, lhe fez um pedido:
-Tornas à tocar para enriquecer aqueles desvalidos pintados por Portinari.