ILUSÃO

“O escritor pode ser corrompido,

mas não corrompe o leitor”

Lygia Fagundes Telles

Pela manhã, Emma levava suas crianças para passear no lago ainda congelado. O inverno já estava quase no fim, a névoa cobria todo campo baixo. Uma senhora abriu a janela de sua casinha que dá de frente para a estradinha de chão, vendo Emma passar pela esquina dos arbustos junto das crianças e da empregada. Um rapaz acenou para Emma de longe. Ela dirigiu-se a empregada:

-Pode ir na frente com as crianças que eu já vou, tenho negócios a discutir com aquele moço sobre aqueles faisões que encomendamos – olhos fixos no rapaz, escorado numa velha árvore de braços cruzados, atenta a cada movimento dele.

-Mas senhora, o homem dos faisões, pelo que me lembro, aparentava ter mais idade...

A senhora aborreceu-se com o comentário da empregada.

-Vá logo, sem aporrinhações!

A empregada agarrou as duas crianças pelos braços e os levou.

-Vamos queridos, a mamãe irá tratar de uns assuntos – Olhando de soslaio para Emma, percebendo em seus olhos uma certa luz ao ver o rapaz se aproximando lentamente, com um sorrido atrevido nos lábios rosados.

Quando o rapaz chegou-se perto de Emma, a empregada e as crianças já haviam tomado uma boa distância. Eles ficaram ali, imóveis, devorando um ao outro com os olhos. Emma volta-se para trás, observa a empregada brincar com suas crianças que se distanciam cada vez mais pouco a pouco.

Num ato desesperado,Emma tomou o rapaz pela cintura e o abraçou-o, depois levou-o para trás de uma sequóia velha. Beijaram-se loucamente, como se fosse o último beijo de uma longa temporada que acabara.

-Vamos dar continuidade ao plano - Disse ele, desprendendo-se dos lábios dela, e cercando-a com os braços fortes.

-Claro meu amor, faço de tudo para ficar com você. Tudo!

-Você garantiu que nós iríamos hoje, prometa que não irá voltar atrás hoje.

Ela tomou as mãos do rapaz e as beijou.

-Prometo!

-Mesmo?

Ela cruzou os indicadores e os beijou.

-Eu prometo.

Emma deu uma bisbilhotada para ver onde estavam as crianças. Elas estavam quase se aproximando do lago. Uma carroça passou a toda velocidade.

-Bom dia D. Emma!- Disse o homem da carroça, agitando um ramalhete de hortênsias.

Emma não respondeu, pelo contrário, tentou esconder o corpo do rapaz para que o carroceiro vão o visse. Emma e o outro voltaram a beijar-se. O rapaz levantou o vestido de Emma até as coxas, ela o impediu.

-Agora não! – Fez ela com os dentes cerrados.

-Fazemos rápido, como sempre fizemos - Com a voz sensual.

-Agora não! Já disse, não gosto de ser contrariada – Os olhos voltaram-se para as crianças, rodopiando alegremente em torno da empregada.

-Então vá! Faça o que tem de fazer logo, nossa viagem já está preparada, só falta você.

Emma não respondeu. Seguiu desprendendo-se dos braços fortes do rapaz com ardilosa imponência, como se estivesse possuída por algo muito sinistro, algo que lhe infestara todo o sangue de uma só vez, como um tipo de droga potente que embriaga instantaneamente. Tornou-se fria, a cara pálida, como se estivesse morta. Foi na direção das crianças, aproveitou agora que elas pararam para comer amoras silvestres. Ficou estática ao lado dos três, disse:

-Clarice, você pode ir.

-Mas senhora, o senhor pediu que eu os acompanhasse.

Emma deu de dedos na moça.

-Sem mais, quero que você retorne, eu mesma posso cuidar de minhas crianças. Você duvida que eu possa cuidar delas? Acha mesmo que eu seja tão estúpida assim a ponto de não ter a capacidade de cuidar daquilo que eu mesma fiz?

-“Daquilo”... senhora? – Disse a criada, com os olhos rastejantes, como que vasculhando o chão.

Emma corou magnificamente, como se fosse uma amora, semelhante às que as crianças estouravam entre as mãozinhas redondas.

-O que disse?

-Nada senhora.

-Então vá - Contendo-se.

A empregada passou pela patroa, encarando-a brutalmente, sabendo do que se tratava, e se foi, começou a choramingar, olhando sempre para trás, murmurando:

-Bruxa, bruxa! - Vendo Emma pelas costas, de cabeça baixa, com as crianças gargalhando por entre as árvores.

Emma tratou de dar continuidade ao plano.

-Crianças, vocês não querem brincar no lago congelado?

-Podemos?- Disse menino, extasiado.

Emma tornou-se plácida e altiva, como se estivesse a falar com um vigário:

-Mas é claro, não viemos aqui para isso?

Enquanto as crianças corriam sobre a superfície cristalizada do lago, Emma sussurrava para si mesma:

-Vamos... Brinquem... Será divertido. –Num ritmo melancólico quase maldito.

O som das fissuras se formando podiam ser ouvidas da esquina, onde o amante repousava sentado com as mãos tapando os ouvidos, o rosto ruborizado, pensando nas horas que sucederão. Emma sentou-se num toco, cruzou as mãos sobre o vestido, seu rosto assemelhava-se ao rosto de um ser paralisado, sem expressão alguma, observando o rebuliço dos pequenos sobre o piso de cristal.

Emma respirou fundo e trancou o ar, fechou os olhos e pensou no amante, seu corpo, seus olhos e sua pele. O amante forçou as mãos nos ouvidos e começou a cantarolar uma canção de amor enquanto as águas de agitavam em meio aos gritos das crianças. O vento parara de soprar. Os olhos de Emma fixos na fenda que se formara do meio do lago. As águas se agitaram por mais alguns segundos e depois se acalmaram. Emma levantou-se e foi na direção contrária a do amante.

Bego
Enviado por Bego em 27/01/2014
Código do texto: T4666315
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