PELO MILAGRE DA VIDA
Ele se desgarrara do bando e vinha sobrevoando os céus.
Não sentia medo, só vontade de voar.
Todavia, tinha ele uma outra incumbência missionária que desconhecia: a de realizar um milagre.
Vinha de asas abertas a amparar sobre elas um mundo que desconhecia.
Lá de cima, naquele seu azul imaginário e infinito que se estendia ao mar lá de baixo, a se iludir de que tudo o demais do derredor era o mesmo céu, ele vinha a admirar o universo silencioso, dum ocultismo desprecavido de evidências controláveis pela vontade de se ser....um voo raso, ao menos.
Mesmo assim, talvez impulsionado pela ignorância dos perigos de voar, ele continuava a vir.
Perfurava com delicadeza as nuvens brancas, seus únicos aparentes obstáculos macios, fazia manobras arrazoadas pelas massas alvas invisivelmente contaminadas pelas chaminés dos homens, esses seres incautos, sem asas, mas que constroem ilusões com a mesma distração com que distroem princípios vitais nos seus planos de voos indecoláveis.
Ele vinha...de asas abertas e aparentemente imune aos perigos dos céus.
De repente , numa manobra inesperada, pelo ar de todos os dias iguais, ele se chocou com uma gaivota que cruzava o seu mesmo oceano.
E de asa fraturada, ele despencou abaixo do seu mesmo céu de sempre, agora um anjo acidentado num incidente sem nenhum milagre aparente.
Então, afundou nas águas oceânicas calmas a procura do pedaço angelical que lhe faltava...e que lhe fazia voar com missionária precisão.
Num milagre somente compreensível aos anjos, então, construiu seu novo céu na terra submersa do oceano alto, e dentre os tantos mistérios dos seres que são sem serem vistos, virou anjo de pedra, sem voo, agora simbioticamente ancorado para sempre no arrecife de corais, antes empedernido de alma numa linda barreira de vida ameaçada mas que agora sobreviveria da sua fatia de asa angelical milagrosa, frente ao infinito percalço do ecossistema devastado pelo Homem sem asas.
Foi quando entendeu o anjo da sua incumbência de ter voado pelo milagre da vida.