O Trono Tomado – Cap. 6
Oruna estava sentado à mesa da cozinha quando de repente enrijeceu ainda mais seu semblante já sério. Ficou tão concentrado em um ponto que sequer ouviu as palavras de Sah, que agora, em vão, subiam de tom.
– O que vamos fazer, Oruna?
Ainda que ignorando tais palavras da garota, essa indagação não estava tão longe na cabeça do velho. A cada minuto que passava ele mesmo se questionava sobre o que deveria fazer. Porem, simplesmente enchia sua cabeça de perguntas cujas respostas eram apenas o silêncio e como consequência era esmagado pela aflição.
"Eles estão vindo!"
Oruna de repente se recordou de uma garota lhe contando uma história improvável. A menina dizia que estava sendo perseguida, ela e o garoto que estava consigo, por homens que haviam invadido o reino onde viviam. Ela não se preocupava em contar uma história aceitável, pelo contrário, sustentava com uma ostensiva expressividade e resignação cada palavra do seu causo insólito. E isso chamou a atenção do velho. Como uma simples garota poderia inventar e narrar com tanta interpretação uma história daquela? Depois de pesar o desespero dos dois garotos perdidos a sua frente, que não era pouco, na cabeça de Oruna aquela história tomou um rumo diferente. Talvez fosse mesmo verdade as palavras da garota.
E agora, para aumentar a aflição do velho, a situação havia se concretizado e consequentemente se agravado. Aquilo que inicialmente era apenas uma possibilidade, que era apenas uma frase sem tanto peso, Eles podem mesmo estar perseguindo os dois, havia se vertido num fato real e inevitável, Eles estão mesmo vindo! O que suscitava outra questão lamentável na cabeça de Oruna: Por que não fiz nada enquanto pude?
O velho de repente mirou Sah com um olhar desacreditado. Suas palavras não saíram. Sabia que a garota não havia percebido sua aflição, o seu receio, estavam bem dissimulados numa seriedade compacta. Mas era evidente que ela havia entendido a mensagem da águia, não que tivesse entendido em palavras concretas, mas ele mesmo tinha permitido-lhe a desconfiança quando perguntara "quantos". Uma simples palavra. Sah não era mais tão criança e deveria ter captado a mensagem. Mas o que deveria dizer a ela? Continuou calado.
Então Sah tornou a inquirir-lhe com as mesmas palavras e o mesmo tom.
— O que vamos fazer?
Oruna continuou um instante em silêncio. Pensou em algo adequado e menos assustador e por fim disse.
— Estamos protegidos, menina. Ac-rô e os outros estão vindo...
De súbito uma explosão.
— O que? Eles são só bichos. E os homens são muitos, e maus. O que uma aranha pode fazer? O que uma águia pode fazer? — Estava exaltada. Havia amarrado Élian com os braços numa atitude já conhecida e nesse momento apertou o garoto ainda mais. Élian fez força e afrouxou o aperto. Sah soltou os braços e de repente mudou de expressão, saltou de desesperada a amedrontada num instante. — Nós vamos morrer. Eles estão vindo e vão matar eu e o Élian...
Oruna logo tomou frente.
— Não, não vão, garota. — As palavras saíram com peso de convicção. Mas não foram o bastante.
— Vão, sim. O que podemos fazer? Não podemos lutar. — Fitou o irmão. — E o Élian, meu Deus? — Voltou seu desespero. — Temos que fugir.
Oruna de repente se estremeceu. Seu olhar mudou e sua face ficou pálida. Desta vez Sah conseguiu distinguir suas expressões, "o que foi?", mas não se deteve o tempo necessário para descobrir a resposta. Tomou o irmão pelo braço e o puxou seguindo em direção à porta da frente. Estava apressada. Mas antes de sair se voltou ao velho.
— Vamos, Oruna, temos que ir.
— Ir para onde, menina? Você nem sabe onde está. — Disse secamente.
— Mas você deve conhecer essa floresta. Vamos...
Silêncio.
"O mal habita o lado de fora da casa, lembre-se. E é cruel e perverso. Muito cruel e muito perverso, alias. Dentro da casa você está protegido, fora, se torna uma presa fácil. Por isso, não saia. Nunca, nunca. Fuja do mal se escondendo entre essas paredes. Aqui você está seguro, Oruna. Só aqui."
— Não posso sair. — Disse por fim.
Sah retrocedeu dois passos.
— Como assim?
— O mal habita o lado de fora. Não é prudente quem sai.
A loucura que antes Sah tinha aventado para explicar a excentricidade do velho agora havia se agitado novamente em sua cabeça. Não pode sair? O mal? Coisa estranha.
Sah não sabia como convencer um velho. E também não precisava saber. Deveria ser o contrário, isso seria o natural. Oruna é quem tinha que puxa-la pelo braço e sair daquele lugar. Mas já que não estava sendo assim, que fosse de outro jeito.
— Você não disse que ia nos proteger? — Oruna balançou a cabeça. — Pois bem. Se ficarmos aqui iremos morrer. — O desespero da garota havia se abrandou para dar espaço a essas palavras incisivas, que de fato surtiram um pequeno efeito.
— Eles sempre diziam para eu não sair. Diziam que não havia nada de bom do lado de fora, que era perigoso. — Parecia reflexivo.
— Como eu e o Élian chegamos aqui? —Novamente ferina. — O verdadeiro mal está vindo. É dele que temos que ter medo. — Sah se aproximou mais e puxou o velho pelo braço. Num pequeno instante sentiu-se uma mãe segurando duas crianças. — Vamos. Você tem que nos ajudar, Oruna, por favor.
O velho se levantou e seguiu a garota. Antes de sair, porem, tomou o caderninho de histórias do meio de suas velharias e o meteu num embornal de couro que pegara na cozinha. Chamou por Orrariona uma única vez e num segundo ela já estava assentada em seu ombro. Depois Oruna disse alguma coisa a ela, que Sah imaginou ser algumas palavras de explicação.
Quando enfim saíram, deram de cara com seres que de longe assustaram os garotos. Surpreendentemente, naquele mesmo lugar onde minutos atrás recebera apenas uma águia, agora ostentava, alem da conhecida Ac-rô, uma outra ave, de cor amarelada e grande como a primeira, uma raposa de orelha em pé e dois pequenos tigres de olhos vorazes. Orrariona, no ombro, era apenas um ornamento a mais naquela cena já saturada de belas e audaciosas espécies.
— Não tenham medo, garotos. – O velho de repente os acalmaram. – Esses são meus outros bons amigos. – Apesar de estarem sob uma pressão indesejável, as palavras de Oruna saíram com ar descontraído.