O Trono Tomado – Cap. 2
Aquilo que o dono da casa tinha por cozinha era um pequeno cômodo limitado por paredes de troncos de árvores e um teto de uma camada espessa de folhas secas e trançadas. Quando se aperceberam dos detalhes, os dois jovens de repente se viram em uma casa completamente extraída da natureza. Não havia reparado quando chegaram, mas agora que já tinham conhecimento, admiraram-se.
Os dois estavam sentados à mesa e comiam uma massa branca com gosto de raiz. À princípio recusaram o prato, e o garoto apenas imitava a irmã, mas depois de algumas olhadas de rabo de olho a fome os venceu definitivamente. Agora comiam e até gostavam.
O velho estava a uns três passos de distância e os observava diligentemente levando as pequenas mãos à boca. Vez ou outra se detinha no vão do que seria a janela, entregando-se ao longe por entre as árvores, e se ensimesmava com indagações ainda sem respostas. Não sabia o que se passava com aquelas pobres crianças, mas estava disposto a enfrenta-las novamente com suas perguntas, porem tudo seria a seu tempo e com cuidado.
Entretanto aquela hora lhe pareceu propícia a uma mera curiosidade. Depois do nome, faltava-lhe saber quantos anos tinham. A menina então respondeu, ainda com a boca cheia.
— Eu tenho 15, e o Élian tem 5.
Sah já estava mais calma. Conseguia olhar coisas ao seu redor, assim como também mirar o velho ali parado a sua frente, sem o receio de antes. De fato lhe ocorria alguns reflexos e de repente um arrepio, mas já não era de todo aquela garota aflita de a pouco tempo atrás. Porem, em contrapartida a sua serenidade, Élian não partilhava o mesmo estado de espírito da irmã. Desde que chegara não desgrudara sequer por um segundo o braço de Sah. Até ali, na hora da refeição, com uma das mãos comia e com a outra cravava fortemente o membro alheio. Sah era seu porto seguro.
A cena era interessante de se ver, e acabou por chamar a distinta atenção do velho, que a depositou toda no menor. Persistiu assim por alguns minutos, com ar pensativo, até que foi descoberto.
— O que foi? — Sah empurrou o prato já vazio para longe de si, ou aquilo que representava um, e fixou-se no velho, esperando uma resposta sua.
— Não foi nada — Disse ele, para a insatisfação da garota. Mas depois acrescentou. — Estava apenas pensando...Já quer falar sobre o acontecido? — Sah ficou em silêncio. Élian ainda comia. O velho então tentou. — Quem são vocês, e por que estão fugindo?
O semblante de Sah de repente mudou. Aquelas palavras pareceram, num instante, reviver o medo da garota. Élian percebeu e apertou ainda mais o braço da irmã.
— Esse lugar tem que ser seguro! Eles estão vindo — Levantou-se de súbito.
— Calma, calma! Quem são eles?
— Eu não sei. Eles tomaram o reino após o nascer do sol de ontem. Nós fugimos. — Viu toda a cena repetir em sua mente. — Estávamos com os sábios no templo quando tudo aconteceu. De repente o Conselheiro disse para a gente fugir. Eu não sabia para onde ir. Estava com medo de entrar na floresta, mas eles estavam logo atrás e nós não tivemos escolha. Élian grudou no meu braço. Eu o arrastei. — O velho viu um reflexo negro nos olhos de Sah. — Nos perdemos varias vezes, acho que isso os despistaram. Mas não sei se aqui é seguro. Eles pegaram nossos pais...
Élien se escondeu debaixo dos braços da irmã. O velho de repente se comoveu.
— Não fiquem assim. — Aproximou-se dos dois, mas depois se curvou e direcionou suas próximas palavras ao garoto: — Agora você está seguro, você e sua irmã.
Sah lhe agradeceu com um sorriso pouco expressivo e lhe disse, num tom de lamento.
— Ele não pode ouvir.
De repente o fato estava explicado; todo o medo do garoto agora estava justificado pelo que Sah lhe revelou. Élian, tão jovem, não poderia ter compreendido a menor das más palavras que possivelmente todos ouviram, mas infelizmente a pior das marcas havia sido talhada em sua mente. O que viu e sentiu naquele momento jamais poderia ser apagado. E agora qualquer gesto brusco poderia representar-lhe uma ameaça. "Pobre garoto. Não deveria crescer com esse peso..."
De súbito o velho segurou a mão do menino e lhe direcionou um olhar constrangido.
— Você agora está seguro. — Disse mais uma vez, e não se importou se ele não poderia ouvir.
Inconscientemente Sah cortou o clima.
— Mas até quando estaremos seguros? Eles são muitos...Eles são...O senhor tem que nos ajudar. Eles vieram atrás de nós porque somos filhos do Rei. O reino de Mírul foi tomado, assim como toda minha família. Só sobraram eu e Élian. Por favor, senhor...
"Filhos do Rei", disse a si mesmo.
O velho não se importou com o sangue, ateve-se simplesmente às vidas que a ele clamavam. Então tomou a primeira providência. Pondo-se frente a janela disse algumas palavras, que a Sah lhe soaram confusas.
— Ac-rô, Vântida, vigiem a casa. Sobrevoem um grande círculo em torno dela. Casra, Galra, Glors, corram pela floresta dia e noite. Não deixe ninguém se aproximar. Vão! — Por fim virou-se para os dois. — Orrariona, venha ver nossos novos amigos.
Sah deixou transparecer algumas rugas de desentendida. O velho as discerniu mas não se explicou, limitou-se a fazer o que antes deixara de lado.
— Podem me chamar de Oruna.