A Garra
Quando cheguei, a festa tinha terminado. No Largo da Igreja ainda havia restos do tronco de cedro que ardeu durante o serão e muitas cascas de maçã a dar cor às cinzas. Um só candeeiro, saia da parede da casa paroquial e lançava uma luz tão mortiça que acanhava o espaço. Pousei a concertina no único banco de pedra, aconcheguei a samarra ao corpo e sentei-me para comer da broa que sobrara e beber um gole de tinto. Quando me acostumei à luz, vi o homem caído, de borco, imóvel. Parecia morto. Rodei-lhe o corpo mas não o reconheci como um dos nossos. Estava vivo, afinal. Amparados um no outro, arrastamo-nos para a loja onde há pouco tinha recolhido as ovelhas. Ajeitei um fardo de palha, estendi o cobertor de lã e fiz deitar o homem com o conforto possível. Encolhi-me noutro canto do estábulo e vi as estrelas, nítidas, flutuando num negro profundo enquanto o sono não chegou. Depois ouvi vozes ao longe, o ladrar dos cães, o uivo dos lobos e, a seguir, iluminado por uma misteriosa luz azul, senti que o homem se erguia, se esticava, se enchia de barba e urrava como uma verdadeira fera. Misturei-me às ovelhas e ali fiquei, apavorado, a ver crescer-lhe as garras e os chifres, a perceber que a nudez da criatura se cobria de cerda negra e rija, pelos que se dobravam para cima à altura dos olhos. Espumava raspando o chão de terra batida e, debaixo de grande algazarra, correu pela encosta até desaparecer no meio das silvas. Acordei no fardo da palha tapado com a coberta de lã. Do homem nem sinal. Quando me convenci que tudo não passara de um sonho, reparei que havia, caída no chão rasgado pelas garras, uma unha sangrenta e enorme. Ei-la. Uso-a sempre como amuleto.