A estação dos sonhos
Esse era um dia especial para Julinha - a fada amarela do Outono - pois finalmente chegara a sua hora naquele ano de poder compartilhar sua história com suas três irmãs: Marcinha - a rabugenta do Inverno, com sua roupinha azul e seu enorme gosto por travessuras -. Seguida de Rafinha - com seu vestidinho vermelho e um bronzeado de dar inveja em qualquer uma, verão -. E finalmente Luzinha - primavera, com seu rosa claro estonteante e enorme apreço pelos bichos e vegetações que enchiam o mundo em sua época.
Ao final do ultimo dia de suas respectivas estações, a fadinha que havia ficado fora para acompanhar o andamento e ajudar sua mãe natureza a tomar conta do clima para a época, voltava para casa para entreter suas irmãs com a história mais incrível e espetacular que havia presenciado durante a sua aventura, e nesse dia era a vez de Julinha, um dia antes de sua irmã rabugenta sair de casa e ficar fora durante os próximos três meses.
- Bem minhas queridas, esse ano foi maravilhoso para mim. Vocês sabem como eu amo o cheiro de folhas secas. Durante uma semana eu estava no interior do Paraná, uma cidadezinha pequena e cheia de gente alegre por todos os lados. Mas havia uma garotinha, ela era diferente de todas as outras, seu olhar era triste e sua cabeça estava sempre abaixada mesmo com os ventos suaves que mandei pela sua janela. Senti um pouco de pena daquela menina e resolvi ficar um tempo a mais para poder observa-la. E graças a minha paciência que hoje posso contar para vocês a história dessa menininha, o nome dela era Ana, e ela tinha 12 anos…
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No terceiro dia em que fiquei vagando pelos arredores daquela casa, vendo garotos jogando bola no terreno abandonado ao lado, moças bonitas carregando sacolas de comida para suas casas, homens barbudos fumando cigarrilhas na varanda e senhoras regando suas plantas, eu escutei um barulho vindo da casa de Ana, parecia algo se quebrando e fui voando para ver o que estava acontecendo.
Tinha uma moça alta de cabelos loiros gritando com Ana, e olhando para baixo, perto da pia de lavar louça, eu vi um prato despedaçado no chão. A moça gritava cada vez mais alto e Ana chorava, antes de começar a gritar também e sair correndo para se trancar em seu quarto. Fui para a janela e a vi deitada na cama de bruços, foi uma cena tão triste, senti que sua alma estava sendo espremida até a ultima lágrima secar em seu travesseiro de florzinhas.
Logo escureceu e a moça apagou as luzes da casa, mas a do quarto de Ana continuou acesa. Voltei para lá e a vi colocando algumas peças de roupa em uma bolsa e saindo nas pontas do pé do quarto. Ela passou na cozinha e juntou um pouco de comida, algumas frutas, um pacote de salgadinho e duas garrafinhas de água.
Ela saiu noite a fora e eu a segui.
Havia um caminho na mata atrás de sua casa por onde ela seguiu, eu queria poder avisar a ela que aquilo era perigoso e ela deveria voltar, mas segui as regras de mamãe e não permiti que ela me descobrisse. Ela caminhou por mais ou menos duas horas mata adentro, seu olhar era sério, focado e em momento algum disse algo ou olhou para trás.
Já devíamos ter atravessado o limite da cidade quando ouvimos algumas vozes e risos vindos mais a frente, eu fiquei com muito medo mas Ana não pareceu se importar, andou um pouco mais e começou a subir em uma árvore, e eu fui atrás.
De cima, conseguimos observar uma clareira logo a frente e dois meninos sentados em volta de uma fogueira, eles estavam assando uma batata na ponta de um galho e pareciam estar se divertindo a beça com alguma coisa.
Ana desceu e, como eu imaginava, foi em direção dos garotos.
Ela parou a uma distância em que podia ser vista, mas que ainda tivesse tempo de correr para trás caso eles se mostrassem violentos. O primeiro dos garotos a viu parada lá e cutucou o outro, apontando para a menina. Esse segundo abriu um sorriso e ergueu a mão, balançando em um sinal que poderia ser interpretado como boas vindas. Bem, pelo menos foi isso que Ana deve ter interpretado pois começou a andar em direção deles.
Chegando mais perto reparamos que os meninos eram gêmeos, ambos de boa aparência, cabelos escuros e compridos que batiam no peito e até suas roupas eram iguais, com exceção das meias, um usava preta e o outro branco, eles não calçavam sapatos. Ambos estavam de calça jeans e camiseta amarela, o que gostei muito pois combinava comigo.
Ana deu um ‘oi’ meio tímido e foi logo convidada a se sentar próximo a eles, o que ela fez sem hesitar. O de meias brancas se apresentou como Alan e seu irmão, Ruann. Me escondi ali por perto para ouvir o que eles falavam e tive o privilégio de acompanhar claramente suas conversas:
- Então… é… Ana, certo? - Começou Ruann. - O que você está fazendo andando sozinha por essas bandas tão tarde da noite?
- Eu odeio a minha mãe, desde que meu pai nos deixou ela não larga do meu pé e resolvi fugir, já sou mocinha o suficiente para me virar sozinha.
Nesse ponto os dois irmãos se olharam e caíram novamente na gargalhada, o olhar de Ana vidrado neles sem entender o porquê de tanta graça.
- Tudo bem, tudo bem Ana, você já é uma mocinha então. Mas viver sozinho é uma tarefa ardilosa e muito perigosa, nos dois sobrevivemos porque temos um ao outro, se não fosse por isso acho que já tínhamos nos despedaçado em prantos, não é Alan?
- Verdade irmão, lembra daquele barraco perto do rio? Não consigo imaginar o que seria de mim hoje se eu tivesse que entrar lá sozinho.
- Espera ai - interrompeu Ana - vocês vivem sozinhos? Onde é a casa de vocês? Cadê seus pais? E de que barraco é esse que estão falando?
- Ruann, quer contar para ela?
- Claro irmão. Bem Ana, não temos casa e nem família a algum tempo, nós moramos aqui, tudo o que você pode ver é nosso. Bem, não nosso exatamente, mas como ninguém aparece para tomar posse resolvemos nos apropriar.
- Mas isso é uma floresta, não tem dono! - Disse Ana, com a chama da fogueira refletindo em seus olhos claros.
- Não tem dono? Claro que tem. Cada parte da floresta tem um dono diferente, alguns são monstros, outros são humanos, já vi até uma fada vermelha vagando por ai no verão passado. Tudo é de alguém, até o barraco perto do rio pertence a alguém, alguém que é nosso conhecido a muito tempo.
- Conte pra ela do barraco Ruann!
- Eu já ia chegar lá Alan. Então Ana, tem tempo para uma historinha?
- Claro, tenho todo o tempo do mundo.
- Ainda não minha querida, mas logo você vai ter.
Os meninos começaram a contar a história de como acabaram morando em uma clareira no meio da floresta, eles pareciam saber bastante sobre as coisas que aconteciam por lá. Vou tentar reproduzir a história deles o melhor e da maneira mais resumida que eu puder minhas irmãs, pois a noite é curta para todas nós.
“Não temos um pai, assim como você Ana, mas nunca sequer chegamos a conhecê-lo. Crescemos na casa de nossa avó pois nossa mãe era uma alcoólatra que não podia nem cuidar de si mesma. Eu e o Alan adorávamos uma aventura e explorar coisas, o que fazíamos todo dia depois da escola. Quando voltávamos para casa um pouco antes de escurecer, nossa avó colocava a mesa e jantávamos a melhor comida existente no mundo. Na hora de dormir ela lia uma história para nos e eu, particularmente, sonhava sempre com aventuras fantasiosas de um mundo desconhecido.
Certo dia depois da aula eu resolvi explorar mais longe, Alan ficou meio apreensivo com isso mas resolveu me acompanhar.
Logo ali atrás daquelas árvores Ana, no sentido contrário que você veio, tem um lago muito lindo e refrescante, com uma casinha de madeira do outro lado. A gente estava nadando pelados lá, pois o sol estava escaldante no verão passado, quando eu tive a impressão de que alguém nos observava.
Chamei o Alan e avisei que poderia ter alguém a espreita na floresta, vestimos nossa roupa correndo e resolvemos entrar no pequeno barco para irmos até a casa. Só tinha um desses e estaríamos seguros na casa até que o que quer que estivesse nos olhando tivesse ido embora. Na metade do caminho uma espécie de onda apareceu do nada e quase nos derrubou. Onda em um lago em um dia sem vento algum? Sim, ainda não entendi como isso aconteceu, mas nem nos importamos com isso e chegamos na porta da casinha.
Algo fez o mato ao redor balançar com força e, assustados, abrimos a porta e entramos.
Ainda me lembro do cheiro daquele lugar, flores frescas e banana amassada, era o que parecia. Demos alguns passos a frente e…”
- E o que? O que aconteceu daí? - Perguntou Ana, com os olhos esbugalhados e o corpo inclinado para a frente, apreensiva.
- Nos dois apagamos e acordamos aqui, nessa clareira. A noite havia passado e já estava de manhã novamente. Não sei o que aconteceu naquele barraco, mas quando despertamos estávamos nos sentindo extremamente bem, felizes, com uma sensação de leveza no corpo que nunca havíamos sentido antes.
- E o que aconteceu quando vocês voltaram para a casa de sua avó? Ela brigou por vocês terem demorado tanto?
- Nunca voltamos Ana. Nos sentimos muito melhor perto da floresta do que jamais nos sentimos em nossa vida “normal”. Aqui não temos hora para chegar, não temos hora para dormir e a melhor comida do mundo que a vovó fazia não chega nem perto dessa batata-doce assada.
- Isso mesmo Ana - agora era Alan quem dizia, com seu sorriso acolhedor estampado na cara - O barraco foi a melhor coisa que já aconteceu com a gente desde que nascemos. Quer vir? Entramos junto com você se você quiser, não deve ser muito agradável ficar sozinha lá. Venha.
Os dois garotos se levantaram e foram andando na frente. Eu já tinha descoberto o que estava acontecendo e fiz uma coisa terrível minhas irmãs, eu finalmente apareci para Ana. Pulei na sua frente e quando tive a certeza de que nenhum dos dois irmãos poderiam me ver, sussurrei em seu ouvido “vá para casa”. E ela me ouviu e olhou diretamente para mim antes de pegar a direção que havia vindo e correu… nunca vi alguém correr tão rápido quanto aquela menina. Não sei se mamãe vai me perdoar por ter quebrado sua regra principal, mas simplesmente fiz o que achei que deveria fazer.
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Rafinha, a fada do verão, estava chorando desolada ao final da história de sua irmã. Todas as três olharam para ela em silêncio, sabendo o que estava acontecendo.
- Não foi sua culpa irmã - Disse primeiro a Luzinha da primavera - você tentou espantá-los de lá sem quebrar a regra da mamãe, sua parte foi feita.
- Verdade querida - disse agora Julinha, com os olhos também cheio de lágrimas. - Eu não poderia ter ajudado a Ana se no final do verão passado você não tivesse nos contado como aqueles dois pobres garotos foram assassinados naquela casa, se eu não soubesse o que poderia acontecer nunca que eu iria espantar a Ana daquele lugar amaldiçoado. Você também a salvou minha irmã.
- Ok damas, a noite acabou e agora é minha vez de sair, nos vemos no final do inverno, espero ter algo tão bom para contar para vocês. Beijos.
E assim, mais uma estação começa, e mais uma história termina...