A Menina que Chorava Ouro

 
Aurelice não queria aquele bebê. Odiava-o desde que o soube. Odiou-o mais quando ele sobreviveu às duas tentativas de aborto e viu seu ódio aumentar, na mesma proporção em que a barriga lhe crescia, por mais que ela tentasse escondê-la.
Todo esse rancor não passaria despercebido para o feto que desejou escapar logo daquele ambiente cáustico e antes de completado o oitavo mês, achou de nascer.
Aurelice sentiu medo às primeiras contrações. Pensou em procurar um hospital mas entendeu que seria a oportunidade de se livrar de vez daquele encosto. Pariu no banheiro do quartinho de fundos que dividia com três outras moças de vida-fácil-que-de-fácil-nada-tinha. Por sorte, nenhuma delas estava lá, naquela madrugada. Olhou o bebê, ainda envolto em placenta e sangue e viu tratar-se de uma menina:
- Seria mais uma para sofrer neste mundo de merda… - pensou, convencendo-se de vez de que estava fazendo a coisa correta.
A criança não emitira um único som. Nem mesmo quando ela a enfiou numa sacola ecológica com um lindo gatinho branco estampado, cobriu com o velho lençol ensanguentado, caminhou trôpega e vacilante até o córrego-mais-esgoto-do-que-água que passava no final da rua e jogou-a o mais distante da margem possível. Por um momento, arrependeu-se. Adorava aquela sacola. Depois, deu de ombros. Arrumaria outra. Virou as costas e foi cuidar da vida. Fácil.
Naquela noite, o noticiário falava da sacola resgatada a uns dois quilômetros dali, com seu conteúdo precioso, que milagrosamente ainda respirava. Levada ao hospital, a pequenina tinha poucas chances de sobrevivência, mas já recebia o nome clichê de Vitória.
Na semana seguinte, vários casais procuraram o hospital, interessados na adoção da garota, que permaneceu internada ainda algumas semanas, tempo em que se recuperou surpreendentemente. Neste intervalo, o Conselho Tutelar selecionou sua nova família, um casal que esperava há anos por uma menininha.
O assunto teria caído no esquecimento, seguindo seu curso natural como todos os semelhantes, exceto por um detalhe: na primeira vez que a menina chorou, enfermeiros e médicos do hospital observaram surpresos, que as lágrimas que escorriam pelo rostinho ainda muito miúdo eram douradas. Bastaram alguns exames para que se comprovasse. Eram lágrimas de ouro.
Logo olhares ambiciosos lançaram-se sobre a criança que já apresentava pequenos hematomas decorrentes de beliscões furtivos, dados por médicos e enfermeiros que se aproveitavam de instantes à sós com ela para iniciar o “garimpo”.
Porém, sem ter mais como manter a menina saudável no hospital, foram obrigados a dar-lhe alta e ela foi entregue aos pais adotivos. Quando Nicanor e sua esposa, Nair, observaram o fenômeno pela primeira vez, ficaram horrorizados e iniciaram uma verdadeira cruzada na esperança de curar o bebê daquilo que entendiam como um mal terrível. Não apenas por não ser natural chorar ouro, mas também por imaginarem o perigo que isto significava para a sua criança. O que não esperavam é que o caso chegasse aos jornais. Pior: que Aurelice, ao tomar conhecimento da "dádiva" que Vitória significava, resolvesse aparecer, exigindo a guarda da filha biológica.
Para sorte de Vitória, Nair e Nicanor, Aurelice foi condenada a cinco anos de prisão, por abandono de incapaz e tentativa de assassinato. Uma pena branda, graças ao batido argumento da depressão pós-parto, aliada ao quadro de extrema pobreza em que a mulher vivia. Com bom comportamento, ela estaria livre em dez meses.
O processo sobre a guarda da menina correu durante este período e, na audiência decisiva, Nair e Nicanor entregaram-lhe um potinho cheio de gotas de ouro.
- O que é isso? – perguntou ela.
- São as lágrimas de sua filha. Nós a colhemos para você. – disse Nicanor.
Nair completou, com os olhos cheios de água:
- De cólica a dor de ouvido, cada lágrima derramada está aqui.
- E colheremos sempre que ela chorar. Vamos ensiná-la a fazer o mesmo, quando ela for capaz. Você fica com o ouro. Nós só queremos nossa menininha. – prometeu o pai.
Aurelice tomou o copo com desprezo:
- Só isso? Comigo ela ia produzir bem mais!
- Produzir!? Pelo amor de Deus! Estamos falando do choro de uma criança! – exasperou-se o pai.
A mulher, mesquinha, encerrou o assunto enfadada.
- Eu sei, eu sei. Vamos ver o que o juiz dirá.
Por um desses descaminhos que a lei brasileira passa, Aurelice ganhou.
Ganhou, mas não levou. Enquanto estivesse presa, a criança permaneceria onde estava. E, onde estava, era estudada pelos melhores médicos e cientistas do mundo, atraídos pelo inusitado da situação. E tanto estudo sobre a menina enfim, deu resultado. Quando Aurelice saiu da prisão, correu para buscar sua pata-dos-ovos-de-ouro, e descobriu que a menina se igualara a todas as outras fedelhas da nossa espécie, chorando apenas água salgada. Enfurecida, ameaçou a todos, iria processá-los, onde já se viu!?
Nenhum advogado, porém, concordou em assumir tal campanha e ela, inconformada, assinou um documento abrindo mão da guarda de Vitória definitivamente.
- Não quer despedir-se dela? – Nair perguntou, ingênua.
Aurelice não respondeu, perdida em seus pensamentos. Apenas murmurou, frustrada:
- Justo na hora dos dentes nascerem... Criança chora tanto nessa época...
Nicanor abraçou a esposa e a afastou daquela víbora, antes que ela aceitasse dar uma última olhada na filha. Se o fizesse, talvez percebesse que os dentes já estavam mesmo nascendo e, para desespero dos dois, eram feitos do mais puro diamante.

 

Este texto faz parte do Exercício Criativo - Lágrimas de Ouro
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