O ENÍGMA DA ESTÁTUA
Era uma casa grande. Casa grande não; era mansão, era quase um castelo, era indescritível. Seus altos muros encimados por pontiagudas hastes de ferro conferiam-lhe um aspecto austero de fortaleza medieval inexpugnável. Um portão largo, primorosamente trabalhado em ferro fundido, constantemente fechado barrava o acesso à porta principal.
Eu morara muito próximo, na mesma rua.
Olhando por entre as grades do portão, via-se um jardim muito bem cuidado, e uma rampa de relva como se fosse um tapete natural que terminava no início de escada de mármore branco de uns trinta degraus mais ou menos, que conduzia a porta principal da mansão.
Havia quatro estátuas par em par na escadaria. As duas primeiras eram leões de bronze e estavam localizados no sopé da escada. Quanto as duas últimas que ficavam no topo, uma era mulher com semblante jovial, e trajando um esvoaçante vestido longo e clássico. No seu pedestal havia uma inscrição que não se conseguia ler da rua. A outra, em razão da árvore que havia ao lado da escadaria ter espalhado sua ramagem sobre ela, não se podia distinguir olhando pelas grades do portão. Apenas o seu pedestal, também em mármore branco, era visível. Não se divisava qualquer inscrição que a identificasse.
A mulher de mármore ficava sempre ali, imóvel, por segundos, minutos, horas, dias, meses, anos e talvez séculos, fitando a rua e às vezes, quem sabe, corava interiormente ante os maldosos pensamentos dos transeuntes mais audaciosos. Quem teria sido a inspiradora daquela obra? Seria virgem? Qual a sua história? Indiferente a tudo isso ali, sempre no mesmo lugar, no alto do pedestal.
Todos dias, pela manhã, quando saía de casa para o trabalho, tinha que passar em frente a mansão. Então, invariavelmente, olhava por entre as grossas grades de ferro do portão para a escadaria. Lá no alto, no seu pedestal, via a virgem, eu a imaginava virgem, linda - linda cada vez mais - fitando a rua pelo canto dos olhos, olhos marotos, olhos vivos de estátua de mármore.
Mas apesar da virgem, o que mais despertava a minha curiosidade era o pedestal que a ramagem encobria, impedindo a visão para qualquer observador da rua. Então, me questionava: quem estaria ali? Seria o guardião da virgem? O zelador da casa? De quem seria aquela estátua?
Os leões de bronze, guardiões da escada, olhavam-me de forma ameaçadora, fulminando-me com os seus ferozes olhos de metal.
Diariamente, entretanto, eu estava ali para olhar pelo portão. A escadaria de mármore sempre limpa, sempre a mesma, sempre cheia de mistérios, conduzia meus olhares e meus pensamentos ao topo onde estava a virgem, o pedestal onde ficava a estátua que a ramagem ocultava e a porta principal da mansão sempre fechada.
Muitas vezes, ao chegar em frente a mansão, encontrava o tempo olhando entre as grades de ferro do portão para a rampa de relva verde, os ferozes e imóveis leões de bronze, a escadaria, a porta da casa, a virgem e a estátua – será que era estátua? – desconhecida.
Certa feita resolvi inquirir o tempo. Descobri que também ele fazia as minhas mesmas indagações e, como eu, nutria secretamente o desejo de ultrapassar o portão de ferro para, desafiando a ferocidade imóvel dos leões de bronze, subir a rampa de relva, vencer os degraus da escadaria de mármore, beijar a estátua da virgem e, levantando a ramagem, descobrir finalmente quem estava no outro pedestal, dissolvendo assim o mistério objeto principal das nossas divagações. Esse era um desejo meu ou do tempo? Quem tinha chegado primeiro ali, o tempo ou eu? Será que o tempo e eu não éramos a mesma pessoa?
Daquele dia em diante comecei a sentir ciúmes do tempo. Era demais, tanto gente a reclamar a falta dele; uns dizendo: – não tenho tempo!, outros: - me falta tempo!, e ele ali, como eu, parado em frente ao portão, olhando por entre as grades de ferro sonhando como o momento de poder caminhar pela rampa de relva e, desafiando a ferocidade dos leões de bronze, subir a escadaria de mármore, beijar a virgem e descobrir por fim o que havia no outro pedestal que, por causa da ramagem, não podia ser visto da rua.
Não. Não podia ser. Pela menos eu ficava ali, mas era antes de ir para o meu trabalho, mas por quanto tempo? Ou será que tentar ver o que havia no pedestal do alto da escada em frente a virgem de mármore, que se mantinha bela uma vez que o tempo não a atingia, (a não ser como eu – olhando por entre as grades de ferro do portão), já não era o meu trabalho, minha razão de viver?
Curiosamente descobri que não me sentia velho...
Certa manhã, quando o tempo não estava presente, descobri que estava do outro lado do portão já na rampa de relva verde. O portão estava aberto ou fechado quando passei? Não sei, não lembro. Com botes imóveis os leões de bronze tentaram impedir a minha subida. Ouvi os seus fortes rugidos, mas apenas rugiram e fulminaram-me com os seus ferozes olhos felinos, mas escapei deles e iniciei a minha caminhada.
Olhos fixos na ramagem que encobria o pedestal em frente à virgem, ia a passos largos, degrau por degrau. O primeiro, o segundo, o terceiro, o quito, o décimo e lá do alto, olhando-me fixamente com os seus brancos olhos de mármore, a virgem encorajava-me a subir. Do outro lado, o pedestal ainda permanecia encoberto pela ramagem.
Continuei a subida, pois, tendo transposto o portão de ferro, enfrentado e ultrapassado os leões de bronze, não me cabia mais voltar, desistir. O décimo primeiro, o vigésimo, o centésimo, o milionésimo degrau e lá no alto, um pouco mais acima, estava a virgem a derramar sobre mim seus olhares, como que ansiosos, como que aguardando a minha chegada.
Suava por todos os poros. Já não pensava noutra coisa que não fosse o misterioso ser, (ser ou estátua?) que no pedestal ao lado da virgem vivia (vivia?) encoberto pela ramagem.
- Meu Deus, quantos degraus!, exclamei.
No milionésimo primeiro degrau (talvez) tombei ofegante. Exausto, por mais que tentasse não tinha mais forças para continuar. Tinha dores por todo o corpo e minhas pernas já não mais obedeciam à minha vontade. Então, um profundo desânimo envolveu-me. Tateando descobri ter chegado ao topo da escada, já não havia outros degraus.
Levantei lentamente os olhos. A virgem já não mais me olhava, mas sim para o pedestal à sua frente. Também olhei na mesma direção e, de repente, soprou uma brisa suave levantando a ramagem que ocultava o misterioso ser do pedestal de mármore. Surpreso, vi então que lá estava a minha alma de olhos vendados. Lá estivera o tempo todo.
Nesse momento, uma gargalhada imensa cortou o ar da manhã e foi se chocar contra as paredes da mansão e também contra os meus tímpanos. Pesadamente movi a cabeça para o lado da virgem e vi o tempo, o irônico tempo ao seu lado, a debochar de mim. Em silêncio, abaixei a minha cabeça, enquanto o tempo zombeteiro, entre gargalhadas, fazia vir ao chão a estátua da virgem, onde se lia na sua base a inscrição vida. Então, fechei os olhos e morri definitivamente.