Captare - Queda.

Captare I - Queda.

Seus dias favoritos eram aqueles onde ventava muito e esse era particularmente especial onde o vento agradável soprava do chão todas as folhas secas e era possível perceber as pessoas apertando os casacos para se protegerem do leve frio que começava a se fazer sentir. Uma estranha sensação de conexão com aquelas frágeis criaturas parecia latente, mas solenemente ignorada. A grosseira matéria de que eram constituídos seus corpos não os permitia sentir as energias a fluir em meio ao vento de permeio com a tímida luz solar que radiava naquela manhã. Na praça onde se encontrava abriu seu par de asas e tocando uma dimensão que olhos humanos não podem enxergar, Andiah alçou voo para mais uma de suas missões a serviço do conselho dos céus.

Os poucos quilômetros que separavam seu local de chegada à Terra do seu destino não seriam nada para asas capazes de voar através dos astros. Depois de tanto tempo longe da Terra e agora em uma missão onde ela fora escolhida pessoalmente por um influente líder da cidade prateada, cada momento deveria ser valorizado. Desde seus treinamentos para se tornar uma caçadora de criminosos, emoções não mais faziam parte de seu cotidiano, entretanto, nesta volta a Terra tudo parecia diferente, mais vivo, mais atraente, mais próximo... Era quase como se já tivesse vivido uma vida humana. Seu destino era uma construção afastada do grande centro urbano, não havia movimentação aparente no local, mas um alvo de tamanha importância para o céus não seria deixado desguardado.

A marcação que levaria ao seu alvo pulsava dentro dela, praticamente gritando a direção correta e se tornando mais intensa a cada passo no local. Andiah era uma caçadora com considerável experiência e sabia as adversidades que poderia encontrar no local. Se aproximando da entrada as inscrições poderiam enganá-la, mas diziam se tratar de um hospital. Um hospital astral, mas mesmo assim uma casa de recuperação de doentes. Caminhou calmamente pelos principais corredores enquanto desviava de possiveis esbarroes com aqueles que não podiam vê-la.

Encarava aqueles doentes com surpresa, pois com um simples sopro da energia divina de seus mentores, todos aqueles seres seriam curados de qualquer doença. A surpresa se transformou em resignação no instante em que que se recordara de que os humanos se afundavam nas próprias misérias e em geral buscavam algo para culpar... Contudo, não conseguia deixar de se sentir apiedada daquelas desafortunadas almas.

Em um dos quartos no último andar da construção estava aquele a quem ela viera buscar. Caminhando, Andiah sacara sua lâmina usada para punir mais criminosos do que ela poderia contar nos últimos anos. Um dos enfermeiros no local a encarava fixamente e Andiah podia enxergar cada um de seus músculos, nervos e ossos, podia sentir a batida de seu coração acelerando como quando se está próximo a entrar em desespero... Mas nada ocorreu. Enquanto Andiah o encarava de volta, coberta pelo manto que protege celestiais de terrenos, uma voz fraca ecoava do quarto diretamente em sua mente. "Venha, estou a lhe esperar faz muito tempo". Passando pelo homem que estava a sua frente, agora absorto e perdido em pensamentos, ela encontraria seu alvo.

Dentro do quarto, Andiah se deparava com um homem em mais avançada idade. Seus músculos já haviam definhado há tempos, os olhos já estavam embranquecidos e o aspecto frágil era acentuado pela enorme quantidade de máquinas que pulsavam conectadas a ele. De súbito uma lembrança a atingiu com a velocidade que só o pensamento é capaz. Transportada a outro tempo, outro local, outro corpo, outra vida. Uma vida humana. Andiah era inundada por emoções e sensações, muito mais fortes do que poderia imaginar possíveis para um ser de sua natureza celestial. Era de um mundo superior ao dos homens, tudo aquilo terreno deveria parecer grosseiro aos seus olhos. Mas não era assim que ela se sentia. Tentando manter sua concentração e sair daquela projeção em que se encontrava em outro mundo, outro tempo, a emoção mais forte a atingiu deixando seu corpo trêmulo e o coração palpitando na garganta. Uma mão se agarrava a sua acompanhada por uma voz que dizia "não desistirei de você". Se virando em um rápido movimento para descobrir seu interlocutor, se depara com o mesmo senhor em leito de morte, porém mais jovem, mais saudável.

"quem é você? O que você fez comigo?" Gritava Andiah perdendo sua frieza e compostura característicos. Sua lâmina estava em riste, apontada diretamente para o homem adoentado e envelhecido preso a cama. Com dificuldades de respiração e fazendo grande esforço o homem começara a falar: "A maior parte dos anjos não nasce assim. Você não nasceu assim. Já foi uma humana, como eu... Mesmo que após anos de práticas misticas eu já esteja gasto... Já fui um humano normal... Então nos conhecemos." O homem fez uma longa pausa e uma lágrima solitária escorria de seu rosto. Andiah o encarava impassível, esperando que continuasse. Aguardando o momento de concluir sua missão. O adoentado idoso reuniu suas forças mais uma vez e continuou sua história: "Nós humanos temos uma capacidade invejada... Podemos nos apaixonar e assim o fizemos, nos apaixonamos perdidamente e nosso mundo era praticamente um só. Àquela época já havia iniciado meus estudos nas artes místicas de magia arkana e meus mentores foram rápidos em me avisar que você estava marcada pelos céus. Seu caminho seria nos céus, como um anjo e não havia nada que eu pudesse fazer para impedir esse destino... Eu não me daria por vencido. Busquei as formas mais distantes de magia, as mais perigosas, visando modificar o caminho de seu destino. E nessa busca fui me tornando poderoso. Quando percebi que sua hora chegaria, decidi tomar a mais drástica atitude e realizar o ritual que desenvolvia há tempos. Tudo deu errado e você acabou morta e levada por um emissário da Cidade Prateada chamado Daétrius. Paguei cada dia de minha miserável existência por esse ato, fugindo de caçadores e definhando rapidamente enquanto sentia minha magia ser drenada de mim... Finalmente fui capturado e trazido para este local pelo mesmo Daétrius que levara você de mim anos atrás. E hoje estamos aqui, frente a frente... E tudo que queria era te tocar mais uma vez e me sentir perdoado..." As lágrimas agora escorriam com mais intensidade de seus olhos e Andiah se aproximou dele em um pequeno salto. Segurou a mão direita do homem e a levou de encontro ao seu rosto. Um tímido sorriso começara a se esboçar na face do homem, mas não terminara. Andiah fitava o homem morto a sua frente sabendo que Captares nunca perdoam.

Mesmo assim deixou que o homem morresse e fosse embora, não o aprisionou como fora ordenada e para essa traição ao conselho, a punição era queda dos céus.

Andiah saia do local em passos vacilantes, ainda aturdida por tudo que vira e sentira, ao passo que suas asas astrais secavam e caiam como as folhas no outono que o vento leva.

Pet Rodrigues
Enviado por Pet Rodrigues em 08/11/2013
Código do texto: T4562242
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