*A BRIGA*
* texto baseado livremente em lendas, causos e folclore do norte do país.
Depois do terceiro copo de tarubá já se sentia embriagado. A bebida mais vendida no bar era feita por ali mesmo e tinha esse poder sobre ele. Assim, meio zonzo, foi até a mesa mais escondida. Sentou e ficou observando o ambiente. O dono da espelunca, seu Ribamar, corria de um lado para outro pra dar conta de atender a clientela. Última noite de lua cheia, o vai e vem era grande. Pegou mais um cigarro, e com as roupas amarrotadas e inteiramente molhadas de suor, o lobisomem não passou despercebido. Quase todo o mundo que passava lançava um olhar de curiosidade.
– Quem é? Perguntou o famoso senhor Boto Pink Dolphin, também conhecido por Botinho.
– Detetive do sul, respondeu Ribamar entre dentes.
Botinho andava mal de saúde. A idade estava chegando, com ela muitas dores nas costas e nas pernas. O olhar cansado denunciava um mal ainda pior: estava apaixonado. As noitadas de festa e conquistas, cada vez mais escassas. Ele só pensava na amada. O dia amanhecia e nem queria voltar para casa. Naquela noite tomava uma bebida quente, coçava as tatuagens e esperava o tempo passar, meio encostado no balcão.
– Seu Botinho hoje tem festa na casa de Iaiá, vai não?
– Vou não Ribamar, vou ficar aqui mais um tantinho pensando nos cabelos de Iara, aquela ingrata. E assim passava mais uma noite a lamentar o amor não correspondido.
Já o tal lobisomem, o detetive do sul, continuava registrando o movimento. O lugar estava cheio de fumaça, dos cigarros, das comidas e das assombrações que davam o ar da graça sem se preocupar com a bagunça que causavam.
Neste momento chega o Bôita. Apelido que Boitatá ganhou dos mais íntimos. Bôita já entrou furioso com os primos.
– Eu já falei pra tia Zelina que ela tem que dar um jeito no Honorato e na Maria Caninana. Estão lá os dois brincando de “sou-maior-que-você” de novo. Conclusão: está o maior reboliço na praça, tem gente correndo pra tudo quanto é lado pensando que o mundo vai acabar, que o terremoto chegou. Já avisei. Não adianta. Ela mima demais aqueles dois e é nisso que dá.
Ribamar nem respondeu aos resmungos de Bôita. Estava ele próprio com problemas suficientes para resolver depois que o Saci sumiu com o estoque de petiscos do bar. Logo os clientes estariam famintos e pra comer? Nada. O Saci tinha feito das suas. Só não desapareceu com a bebida porque metade do bar ouviu aquela risadinha infame. Acabou então se entregando, mas antes quase ateou fogo na cozinha quando saiu pulando feito doido de lá de dentro. Ainda perdeu o gorro pelo caminho.
Gritos histéricos saíram da mesa próxima ao banheiro. É que o Caipora acabara de descobrir que a montaria dele era na verdade Matinta Perera. A velha tinha pregado novamente uma peça nele. Ficou furioso. A feiticeira fingira ser o porco que levou o indiozinho até o bar. Ele quase morreu de susto quando ela se revelou. Pior foi saber que tinha perdido o transporte de volta pra casa.
– Sua velha nojenta. Ainda faço você e seu assobio se perderem para sempre na floresta.
E lançou o olhar em brasas pra cima dela, tão violento que o vestido preto e já muito sujo de Matinta chegou a dar uma chamuscada, mas nada que tirasse o bom humor da bruxa. Caipora logo pediu uma cachaça e mais cigarros. Ficou num canto amuado.
Enquanto isso, o detetive pediu outra bebida. E já olhava o relógio desconfiado quando entra ela, deslumbrante, de vestido branco quase transparente, cabelos loiros longuíssimos, andar lânguido. Uma tristeza embelezava o rosto daquela mulher. Foi andando vagarosamente em direção a ele.
– Boa noite detetive, falou numa voz de tirar o fôlego. Ah esse sotaque espanhol caliente, pensou o detetive.
– Boa noite. Achei que tivesse desistido do encontro, comentou o detetive entornando o copo , já com ar de insatisfeito.
– Imagina, é claro que eu não isso por nada, seduzia a mulher.
Maria Chorona. La Llorona, a bela da meia-noite. Vinha direto do México para dar notícias desastrosas:
– O pessoal da neve me garantiu que é verdade a vinda de Big, comentou a loira já comendo algumas frutas que Ribamar achou escondidas longe do alcance do Saci.
– E quando será? Perguntou o lobisomem.
– Em breve. Assim que a última colheita de açaí terminar, respondeu. O velho Itaki já está informado e vai adiar ao máximo o fim do trabalho.
Curupira vai ficar furioso, pensou o detetive. Vamos ter que segurar o chefe à força, quase falou em voz alta.
– Está aqui, como o prometido, disse o lobisomem. E pagou a informação com o mais lindo colar de jade já feito naquelas bandas. - Veio direto do cofre de Muiraquitã. O safado do batráquio exigiu doze donzelas ao chefe, no ano passado, confidenciou.
Deslumbrada, a mulher deixou a mesa e foi embora.
Bem ali ao lado, Jurupari Júnior falava com uma moça tímida. Gritava, na verdade.
– Dona, eu já falei mais de um milhão de vezes, eu preciso falar com Tupã. Questão de vida ou morte. E um trovão cortou a noite.
O detetive não ficou para ouvir o final da conversa. A notícia de que Big estava chegando o deixou muito preocupado, afinal o gringo não brincava em serviço. Pé-Grande em pessoa estaria por ali em poucos dias. Viria para brigar por mais terra. Queria invadir as florestas do Curupira pelo simples prazer de ter mais e mais. Estava na cara que aquilo não ai dar certo. Vai dar confusão, pensou.
O lobisomem saiu do bar apressado para dar as notícias ao chefe. Sem nem prestar atenção à lua que saia brilhante de trás das nuvens, atravessou a mata correndo. Com receio de se perder foi marcando as árvores por onde passava. Tinha medo da ira do patrão. A sorte foi que após dar a notícia da vinda do Pé- Grande, Curupira não prestou atenção em mais nada. Ficou nervoso, endiabrado. Seus cabelos mudaram imediatamente para um tom mais intenso que seus olhos de fogo. O duende caminhava de um lado para o outro, quase tropeçou nos pés virados. Arrancava os pelos de todo o corpo. O detetive nunca antes vira o chefe tão furioso.
– O que pensa aquele sasquatch? O que quer fazer nas minhas matas? Não está satisfeito em conquistar os territórios gelados e quer invadir meu lar? Vem pra cá infestar tudo com aquele cheiro horroroso insuportável? Praguejava. - Não. Nunca, nunca, gritava com ódio o Curupira.
O detetive perguntou ao chefe se precisava de algo mais. Foi dispensado. Achou o caminho de casa e foi descansar, apesar dos sussurros e assobios que o acompanharam durante toda a noite.
Na manhã seguinte, tudo parecia normal. Parecia. A floresta tremia todinha. Logo se pensou em briga na família Cobra Grande novamente. Mas Maria, Honorato e a tia Zelina foram os primeiros a surgir sem entender o que estava acontecendo. Eis que Big chegou antes do previsto. Veio derrubando árvores, pisando em tudo, deixando marcas pelo caminho.
Curupira logo chamou o exército que havia formado. Desde Tupã até ao Uirapuru, todos juntaram forças para defender a floresta. Big estava sozinho. Finalmente quando ficaram frente a frente, a Mula Sem Cabeça chegou correndo. Com ela vieram os pirilampos, as fadas, os hobbits, os elfos, até os trolls e as crianças estrangeiras de Avalon. Sem fôlego, a Mula gritava:
– Parem tudo. A Árvore da Vida está em perigo. Os homens brancos estão chegando.
O silêncio tomou conta da floresta. Deuses, semideuses, duendes, cobras, lobisomem, mulas, animais, todos, todos congelaram. Ninguém sequer piscava. Esqueceram imediatamente as diferenças, as muitas línguas que falavam e olharam ao mesmo tempo para Curupira. Até o sasquatch recém-chegado ficou apavorado.
Foi assim que todos se uniram. Saíram em marcha em direção à clareira que abrigava a Árvore da Vida. A briga estava apenas começando.
FIM