UM CONTO QUASE REAL (PARTE 1)

Eu cresci muito com as perdas que passei. É certo que muitas pessoas passaram por perdas irreparáveis, por perdas que trouxeram consequências terríveis. Mas eu consegui superar boa parte de minhas perdas. Eu disse ‘boa parte’, e não ‘todas as perdas’.

Em um ano terrível, eu perdi aquela que havia me gerado por nove meses e cuidado de mim por treze anos. Eu perdi a mantenedora de meu lar, perdi aquela que eu chamava de mãe. De forma trágica, de forma terrível, fiquei sabendo que não poderia vê-la no outro dia. Ninguém me contou... Eu ouvi pela janela de meu quarto, pois havia despertado ao ouvir meu pai chorar. Na época do acontecido, eles estavam divorciados, e eu levantava todas as noites para esperar mamãe chegar da faculdade; mas, desta vez, mesmo com toda minha inocência e incredulidade, eu tive um sonho que me revelou tudo o que havia acontecido pouco depois dela ter se despedido de mim, às 18:00, para ir até Campinas. Saiba que você terá o privilégio de saber o que me foi relatado em sonho, no dia do fatal acidente que me marcou a vida.

O SONHO DA MENINA MOSTROU A ELA QUE A MATURIDADE HAVIA ACABADO DE INVADIR A SUA VIDA.

Havia ido para a cama no mesmo horário de costume, por volta das 21:00. Sabia que precisaria levantar às 23:00, então sempre cochilava por volta deste horário.

Eu e minha irmã, dormíamos em uma beliche, ela na cama de cima e eu na cama de baixo. Quando fui me deitar, lembro com clareza que ela já estava dormindo.

Eu estava com o espírito perturbado, devido a alguns sonhos que havia tendo há algum tempo; demorei de dormir neste dia, e, quando adormeci...

"FOGO! Uma grande explosão, uma van colidindo com um caminhão, pneus para todos os lados... minha mãe, cadê ela? Alguém faça alguma coisa!

E então, eu estou parada atrás da van, em chamas. Há muitos corpos, muito fedor de fumaça. Eu estou parada, atrás da van, e pareço ser um fantasma. Ninguém me vê, mas eu vejo tudo o que está acontecendo. Caminho entre as pessoas, caminho entre a fumaça e dentro do fogo, e continuo sendo invisível para todos. Vejo um aglomerado de pessoas próximo à uma grande mancha preta no asfalto, ouço o barulho das sirenes, o grito de desespero e de dor vindo de dentro da vã. Ninguém faz nada, e eu não posso ajudar. Os corpos estão amontoados, como uma pilha de bruxas que foram queimadas na fogueira santa. Dentre os corpos, vejo ainda algumas pessoas vivas, morrendo carbonizada, aos poucos; vejo também umas poucas tendo partes de seu corpo consumidas pelo fogo. Eu sentia a dor de cada uma, sentia o desespero e a aflição de cada mulher que perdia sua vida ali, naquele acidente. Então, percebi que a minha mãe não estava ali atrás... e caminhei mais um pouco. Quando cheguei na frente da perua, vi o corpo dela todo destruído. Suas pernas já haviam sido consumidas pelo fogo, seus braços estavam inchados... Mas a sua cara não era de dor, não era de desespero. Ela parecia dormir, parecia ter adormecido! Caminhei até ela e passei a mão no seu rosto, dei um beijo na sua testa e disse: ‘Nos veremos no céu, mamãe’. Então, me voltei para trás e vi uma pomba e um dragão brigando... A pomba, mesmo pequena e frágil, venceu do dragão, depois voou em minha direção, parou na minha frente por alguns segundos e voou até desaparecer. Caminhei até o motorista do caminhão, que ainda estava acordado e sendo consumido pelo fogo e pela fumaça, e o olhei por alguns segundos. Caminhei mais alguns metros, e, de longe, apenas observei toda a desgraça. Bombeiros apagavam a fumaça, enquanto jornalistas chegavam fotografando tudo. Visualizei uma guerra, uma guerra onde a pomba ganhara, e, embora meu coração sangrasse e se encontrasse em pleno desespero, a paz me dominava de forma inédita, estranha, incomum. Um homem apareceu ao meu lado, e, me puxando para a ‘realidade’, me disse: ‘Eu estarei sempre com você, menina. Agora, vá. Seja forte, Eu nunca abandonarei você, como nunca abandonei a sua mãe. A levei para um lugar melhor, mas ainda não é chegada a tua hora. Agora acorde, menina, acorde... ’. E então, eu despertei, com o choro de meu pai.

Ele gritava o nome dela, em desespero... Como se chamar por ela fosse trazer de volta a vida que a havia sucumbido. Eu fiquei estática diante da janela, ninguém me via senão somente o homem que havia falado comigo no sonho, se bem que já não me lembrara de nada que ele havia me dito, tampouco de meus passos; a única coisa que ficara em minha memoria fora a pomba e o dragão, os símbolos, que por um acaso, duraram anos.

Mas, voltando ao meu quarto naquele mesmo dia; eu era apenas um a criança, não havia atingido, ainda, a maturidade e o conhecimento de uma mulher adulta. Mas, ainda assim, a aceitação de que mamãe não chegaria mais em casa, e de que meu sonho foi uma despedida, vieram como uma explosão interior. Senti seu impacto nas minhas veias e em todo o corpo. Senti uma mudança repentina de organismo, de força, de espiritualidade. Não sei dizer exatamente o que mudou a partir daquele dia, mas sei que houve grande mudança dentro e fora do meu corpo, antes frágil, antes sensível, antes tão amoroso.

Lentamente e silenciosamente, eu voltei para a minha cama, mas antes de deitar, me certifiquei de que minha irmã estava dormindo. Ela roncava, e seu sono era tão puro! Logo depois, me deitei, mas não consegui dormir muito facilmente. Fiquei com medo de dormir e sonhar novamente, ao mesmo tempo em que procurava associar a realidade, uma vez que não queria aceitar o fato de ter perdido a minha mãe tão fatalmente. Mas, após quase meia hora acordada, percebi: minha mãe não voltaria para casa, nunca mais; e meu pai, bem, ele estava afogando seu desespero em meio litro de cachaça. Por fim, consegui adormecer, quando já era 04:36 da madrugada.

Pela manhã, acordei com o grito de minha irmã. Primeiro é meu pai, depois a minha irmã... eles poderiam ter respeito pelos que ainda dormem! Mas, enfim, entendi o motivo dos gritos e me levantei, meio sonâmbula, preambulei até a sala, onde, para minha vergonha, estavam reunidas algumas pessoas e me viram no estado ‘caí da cama’; observei tudo, por alguns segundos, e logo após voltei para o meu quarto, onde fiz a minha higiene matinal, troquei de roupa e fui direto para a cozinha. Lá, uma de minhas tias estava com uma xícara de café, e, quando me viu, disse:

- Pobre garotinha; vai ficar tudo bem, viu?

Eu balancei afirmativamente a cabeça, e pedi uma xícara com café sem açúcar (desde cedo me drogando com cafeína); com a xicara na mão, fui até a sala, onde meu pai estava sentado, rodeado por algumas pessoas que conhecia, outras que nunca havia visto, e minha irmã, coitada, parecendo um bebezinho no colo dele... Me deu tanta pena, uma vontade tão grande de roubá-la dali e fingir que mamãe iria chegar só mais tarde! Mas não, eu sabia que ela nunca mais iria voltar, eu sabia que ela estava, naquele momento, dentro de um saco preto... E me doía muito o coração, só de pensar.

Então, meu pai a colocou no sofá e veio na minha direção; disse-me:

- Mamãe foi descansar nos pastos de Jesus.

Eu entendi as suas palavras, mas, ainda assim, olhei bem fundo nos seus olhos por alguns segundos. De meus olhos, não saíram lagrimas, o meu coração não acelerou, a xicara de café não caiu no chão, eu não tremi, não esbocei nenhuma reação. Já sabia que ela não voltaria mais para casa, e quis dizer a ele tudo o que sonhei, quis dizer que o ouvi chorar, na madrugada... Mas tudo se prendeu na minha garganta como se fossem pequenas agulhas. Eu simplesmente o abracei, com toda minha sinceridade. Não havia o que dizer, o que fazer, aonde ir. Eu tinha treze anos, mas o meu cérebro havia se desenvolvido (uma parte dele, ao menos) uns dez anos, naquela madrugada. Quando acordei, pela manha, já me sentia diferente, me sentia uma criança no corpo de um adulto, meus pensamentos borbulhavam e me confundiam, me transtornavam à medida que iam surgindo dentro do meu cérebro conturbado. E então, me sentindo como se tivessem se passado mais de 30 minutos de desespero e de dor com os meus pensamentos, percebo que o relógio não adiantou nem mesmo cinco minutos... Logo, eu desmaiei.

Anita Ferraz
Enviado por Anita Ferraz em 26/09/2013
Reeditado em 26/09/2013
Código do texto: T4499912
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