Viagem

Da minha enxerga podia ver o fogo, as labaredas vermelhas, cor de laranja, de tijolo, amarelas… Mudavam de altura, torciam-se, misturavam-se e morriam num vibrante ouro líquido para logo, alterosas, renascer. O calor era infernal e não sei explicar a razão mas cabia-me ficar ali como guarda de um fogo que existiria sem mim em qualquer circunstância. Rolava-me o suor pela testa, pela boca e a roupa, pesada, exigia que me libertasse dela. Fiquei nu e espalhado no leito a contemplar, fascinado, o fogo da enorme fornalha. Recordo que quis mexer os pés e não fui capaz. Estavam pesados e ausentes. A sensação de adormecimento cresceu e tomou o resto dos membros, o ventre e progredia, mansamente, para o peito. Respirava lenta e profundamente mas isso não impediu que, aos poucos, parasse tudo e só o trotar poderoso do coração me garantisse que continuava vivo. Mexia a cabeça e via, ainda, um mundo que se revelava para lá da cúpula celeste. Figuras aladas, em voos exaltados, cruzavam-se, agrediam-se e amavam-se numa algazarra inenarrável. Quando o meu pescoço petrificou e quando tudo o que sucedia só poderia interagir com o meu espírito senti, enormes, negras e poderosas, umas asas passarem a fazer parte de mim. Sem sentir o corpo, achei-me leve e apto para o voo. Voava em círculos enormes e podia sentir os sons com a graduação pretendida. Vi-te. Também tu eras uma espécie de anjo negro, de condor, de ave mítica. Temi-te e fugi. Quando, por fim, sobrevoei suavemente os túmulos e me postei, hirto, ao lado de outro anjo de pedra com intensão de me esconder, perdi o movimento e tudo em mim foi tomando a cor, a consistência e o peso do mármore. Restavam-me, vivos, os olhos e ainda pensava mas sabia que o futuro seria ficar ali, preso numa eternidade fria e imóvel, como guardião de um túmulo estranho, tornado cego, mudo, surdo e de coração vazio. Quis gritar e foi quando apelei ao resto da vida que ainda tinha que acordei. A meu lado tu dormias, em carne e sangue, um sono justo.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 26/09/2013
Código do texto: T4499610
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