Por onde virá o Kraken

POR ONDE VIRÁ O KRAKEN

Miguel Carqueija


No grande campo gramado um grupo numeroso, incluindo guerreiros com archotes, mantinha-se em semicírculo diante da mulher amarrada a um poste. Ingigerd, a feiticeira, forcejava com as cordas, presa de grande cólera, embora soubesse ser impossível lutar com os guerreiros ali reunidos. Drott Angartyr, o Rei Viking, diante dela, e buscando conservar o sangue frio, falou:
— E então, bruxa? Tem alguma coisa a declarar, suas últimas palavras?
A mulher, que tinha uns 45 anos presumíveis e grandes olhos arregalados, olhou com áscua o seu algoz:
— Sim, miserável, eu tenho algo a dizer! Trouxe-me para longe do mar, para que eu não pudesse chamar auxílio. Eu, porém, chamei o Kraken assim mesmo, e ele será o meu vingador. Quando menos você esperar, traidor, o Kraken virá para destruí-lo, e as muralhas do seu odioso castelo não poderão protegê-lo. Você conhecerá o poder do Kraken!
— Basta, infame feiticeira! Teu poder sobre o monstro acaba com a tua morte! Ateiem fogo!
E a execução teve lugar. As chamas se ergueram na pira funerária e sacudiram ao frio vento, envolvendo a vítima que ainda estertorava as suas maldições. Ela gritava de dor e algumas das pessoas presentes se afastavam ou desviavam os olhos da cena dantesca que, porém, não demorou muito tempo.
O monarca, sentindo-se abalado mas não desejando reconhecê-lo, evitou olhar o que restava da feiticeira. Deu as costas à cena hedionda e se afastou vagarosamente. Tjosni, seu conselheiro principal, acompanhou-o.
— Majestade, não se preocupe com a ameaça da nicromante. Mesmo que o Kraken venha, nós saberemos detê-lo.
— Se ao menos o palácio não estivesse tão próximo à praia...
Drott estacou um pouco, meditabundo. Sua silhueta, em meio ao jogo de luzes e sombras resultante da interação entre o sol e as árvores, parecia a silhueta de um duende gigante, detalhe agravado pela roupa espalhafatosa, a sua magreza anormal e o nariz do tipo bicanca. Parecia estar com medo, mas jamais poderia admitir isso; era um rei.
— Alteza — insistiu Tjosni — reforçaremos as defesas em redor das muralhas. Dispomos das novas catapultas desenvolvidas pelo inventor Thorin; elas podem disparar lanças envolvidas com pez ardente; se penetrarem entre os olhos do monstro, o Kraken morrerá.
— Com certeza, conselheiro, matar o monstro é a melhor solução.
O pensamento do rei voltou para alguns meses atrás, quando os drakars da armada real atacavam as costas da Alemanha. Após uma séria derrota inicial e diante da aproximação da armada inimiga, sedenta de vingança, a feiticeira oferecera-se para acompanhar a marinha viking, conjurando o Kraken para a nova batalha.
Esta se dera no mar entre a Germânia e a Escandinávia, e nela a vitória sorrira aos vikings, graças à intervenção terrível do Kraken; com seus imensos tentáculos ele arrebentara bujarronas, gáveas, escotas, mastaréus, e jogara marujos no oceano; no entanto, em meio às comemorações do triunfo, a serpente da desconfiança e do medo fizera seu ninho no coração do soberano. Sua própria esposa, Totra, o insuflara contra a maga que, assim lhe dizia, “agora governava o reino e o rei”.
O poder imenso de Ingigerd afigurava-se uma latente ameaça ao poder realengo, que não se firmava em magia. Tjosni e os demais conselheiros, com uma única exceção, foram favoráveis à eliminação sumária da mulher e, um belo dia, ela foi detida e levada a julgamento justamente pelas práticas de feitiçaria que até então davam cobertura ao reino.
O Conselheiro Ylfing ainda esboçou uma objeção:
— Majestade, pense bem. A bruxa será condenada á morte por bruxaria; parece justo, mas esta Coroa pediu o seu auxílio e, ao fazê-lo, legitimou a bruxaria.
— Palavras, Ylfing, palavras! Sabes de certo que um rei tem sempre razão; o que antes admiti, porque serviu à nossa vitória militar, hoje eu repudio como blasfêmia, e isso também no interesse do reino! Por que haveríamos de ficar às mercê de uma feiticeira?
— Majestade, eu temo pelas consequências dessa decisão.
Mas o rei manteve-se inflexível e a bruxa foi queimada.


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— Alteza — disse Ragbar, o capitão da guarda palaciana — estamos preparando tudo para recepcionar o Kraken.
— As coisas estão indo bem? Preciso de defesas sólidas!
— A besta não perde por esperar, senhor. Nas muralhas, nas ameias, nas seteiras, está tudo sendo reforçado. Temos plantonistas 24 horas por dia; reservei, em pontos estratégicos, caldeirões que serão rapidamente cheios de óleo fervente de baleia ou morsa e outras substâncias; além disso nossas catapultas foram adaptadas para disparar as lanças ardentes. Providenciei também “claymores” capazes de decepar os tentáculos do monstro. As paredes são sólidas e ele não conseguirá derrubá-las.
— Isso me tranqüiliza o espírito, Capitão. Você, os conselheiros e o inventor fizeram, sem dúvida, um bom trabalho.
Naquela noite o Kraken atacou. O monstro abissal lançou-se em fúria sobre as muralhas do castelo, na entrada do fijorde; o rei e a rainha, assustados, correram para a sacada da torre mais alta e assistiram, transidos pelo medo do desconhecido, ao fantástico embate. O bicho derrubou a ponte e buscou introduzir os ciclópicos tentáculos pelas janelas, acertando de algum modo com a do quarto real, mas o exército de Drott reagiu energicamente; uma chuva de setas envenenadas e lanças inflamadas partiu da fortificação, dos entrincheiramentos organizados pelo Capitão Ragbar; seriamente atingido e com alguns tentáculos mutilados, a fera do mar recuou e afundou-se, deixando após si uma repelente mancha de sangue.
Drott e Totra abraçaram-se. A maldição de Ingigerd frustrara-se; o seu instrumento recuara, derrotado.


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Na noite seguinte o rei deu uma festa em palácio, comemorando o triunfo. Sabia que o Kraken poderia voltar, mas também sabia que a guarnição tinha como repeli-lo; a vigilância continuava. Drott até desejava que o calamar retornasse pois, enfraquecido e com menos tentáculos, poderia ser morto.
— Pena que os nossos príncipes Skalk e Nauma estejam no norte do país — observou Totra, ufana. — Queria que eles tivessem visto como o reino se livrou da bruxa e seu ajudante!
— Há tempo para contar a eles — respondeu o rei, servindo-se de um pernil de carneiro.
— Majestade — disse Tjosni, que sentava á direita do rei — que tal um brinde? E depois trocamos a guarnição para outro brinde, para que os soldados agora de plantão possam também se alegrar conosco!
— É uma ótima idéia, conselheiro. Magnífica mesmo!
Drott se ergueu, empunhando pela aba um canecão de vinho espumante, fez um galeio para circunscrever todos os presentes em seu campo visual e propôs o brinde;
— Brindemos à grande vitória obtida, à vitória tripla! Sobre os nossos inimigos guerreiros, sobre a infame bruxa e o seu monstro!
Ali perto Ylfing, preocupado, perguntou a Tjosni:
— Não quero parecer um paranóico, mas é certo que todos os acessos possíveis do Kraken encontram-se bloqueados?
— Meu amigo — respondeu Tjosni, mal escondendo o enfado que lhe causavam as angústias do outro conselheiro — pense bem: o castelo encontra-se sobre um pequeno promontório rochoso, cercado pelo mar em três lados. Pelos fundos a lula não poderá vir, pois não caminha em terra. Os outros três lados estão fortificados e a dez metros da superfície, o penhasco é duro demais e nem mesmo um monstro gigantesco pode esboroá-lo. Qualquer tentativa de penetrar com os tentáculos será impedida pela guarnição. Não tem como, Ylfing!
— O Rei descumpriu o compromisso com uma bruxa. Isso é muito perigoso...
— Eu acho melhor nem falar mais nisso; é perigoso, sim, mas para você. Hoje é uma noite de gala de festa, homem! Nem pense em estragar a alegria do rei!
Ylfing achou melhor enrustir os seus temores, mas no foro íntimo eles continuavam a existir.

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Lá pelas tantas o soberano viking resolveu deixar a festa, vencido pelo cansaço. Separou-se da rainha e se dirigiu, meio trôpego em consequência do álcool, em direção ao banheiro real. Lá chegando encheu a banheira com água quente, graças ao moderníssimo sistema de calefação desenvolvido pelo genial Thorin. Aí, despiu-se e refastelou-se, satisfeito, na água acolhedora.

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Aqueles que acudiram aos seus gritos desesperados tiveram dificuldade em penetrar no aposento. Como a maioria das pessoas, Drott se trancava para tomar banho. Ylfing, Thorin, Ragbar, Tjosni, a Rainha Totra e demais pessoas apenas puderam encontrar a banheira em pedaços e, lá embaixo, sem mais nenhuma água, o cano principal de escoamento, por onde chegara o fatídico tentáculo do Kraken.
Desde então, circula entre o povo viking o dístico: “Nunca traia uma feiticeira”.

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O estigma do feiticeiro negro (história de uma elfa nobre e sua cruzada pela Justiça) é um romance de alta fantasia escrito por Miguel Carqueija e Melanie Evarino e publicado pela Editora Ornitorrinco, de Petrópolis. Até agora todas as resenhas críticas na internet foram favoráveis.


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