Nenhuma Espada é Sagrada… Nenhuma Guerra é Santa.
O corte foi preciso. A espada cruzou o ar em um traçado mortal e em sua trajetória separou carne e tendões como se não encontrasse resistência. O pêndulo agudo teve mais força imposta alimentando de energia a arma tingida de vermelho, que desempenhava excelentemente seu dever, o de ceifar a vida. Essa era a razão de sua existência desde o primeiro momento em que foi sonhada por Derick, o ferreiro. A espada sabia de sua missão e já não contava mais as almas que abandonavam os corpos daqueles que sua lâmina beijava.
Um novo golpe mutilou um pedaço da mão de um oponente, levando também quatro dedos. A espada inimiga caiu no solo, mas ninguém escutou seu lamento, pois os gritos de dor dos feridos sobrepujava o tênue choro do metal comum arremessado ao solo. A espada empunhada por Rorger, o escolhido de Namiezil, ainda teve tempo de ver a queda humilhante da simplória rival e então se colocou novamente em curso de outro golpe.
Muitas dessas investidas encontravam escudos maciços, barreiras odiadas que a impediam de alcançar seu objetivo, o de beber o sangue do outro, expor suas entranhas, macerar sua carne, separar seus ossos e vê-los tombar, mutilados, feridos, mortos, irreconhecíveis, irrecuperáveis.
Ela cantava a canção da batalha e dançava ao sabor do vento da morte. Os doze deuses mortos da terra de Acéllus sabiam seu nome e a reverenciavam nas mansões de seus corpos, pois ela era quem levava até eles as almas dos crentes.
Os guerreiros, e os feiticeiros, e os plebeus e os reis rezavam com mais fé sempre que ela se aproximava, pois ela era o instrumento da divina fúria na mais sagrada missão, dar fim ao mau contido no mundo.
A existência do objeto só é justificada quando ele está em uso. Telus, a espada forjada através do ferro das minas de Dau Gotir e pelos feitiços sussurrados pelos deuses nos ouvidos dos feiticeiros além do rio de Vantéria, tinha sua sede de sangue aplacada apenas quando a batalha terminava e o lado vencedor conhecido. Telus não se lembrava de estar do lado perdedor sequer uma vez, mesmo com a troca de punhos durante um mesmo combate.
Entretanto Telus sabia que naquela batalha não haveria troca de punhos, ela sabia que a mão que a empunhava era a do guerreiro santo de Namiezil, Rorger, e deles seria a vitória naquela grande ópera de carne, músculos, sangue e metal.
Os dias que antecederam aquele momento foram de intensa preparação. O ritual de purificação requereu doze noites inteiras. Os cavaleiros santos dos deuses de Acéllus fizeram seus sacrifícios e queimaram as oferendas para limpar os caminhos da lâmina sagrada da espada Telus. Ela estava apaziguada, estava em ressonância com a mão que a empunharia em sua incessante luta em busca pela justiça e pela honra. Ela estava alinhada com as convicções morais dos homens aos quais ela servia. As palavras rezadas para os senhores supremos dos reinos além da vida permeavam seu aço polido e brilhante, com um fio tão perfeito que apenas o pensamento de ferir abriria cortes na carne dos inimigos.
Então havia mais um inimigo morto, com metade de sua face no solo, distante do resto do corpo ao qual ela pertencia. O suor corria rico pelo corpo de Rorger. Os músculos poderosos do guerreiro santo iniciavam sua música de cansaço, contudo a espada queria mais e em seu desejo de sangue e justiça Telus escutou uma canção de morte oposta à sua, vindo rápida, afiada e mortal.
À frente de Rorger, a não mais de cinquenta passos de distância, encontrava-se Calmaron, o mais temido duque das longínquas terras do fogo, membro da profana ordem da sombra fria. Calmaron, o destruidor, Calmaron, o senhor do fogo. Destruidor de cidades, que torna pútrida toda a terra que pisa. Calmaron, o detentor de Marizan, a espada demônio.
O sangue já havia transformado o solo em um barro vermelho e espesso, de consistência viva, o alimento das entidades místicas. As entidades que vislumbravam, de seus vários lares, alguns a mil planos de distância, a aura belicista que se concentrava mais em mais em um espaço cada vez menor.
Telus sabia que era assistida naquele momento, ela percebia isso em sua lâmina, os olhos do infinito a analisavam e isso a tornou mais letal. Ela sabia que os milhares que ainda se digladiavam próximos dela não eram mais do que apenas coadjuvantes naquele teatro sagrado, pois nenhum corte era tão preciso quanto os seus, nenhum sangue jorrava mais intenso do que com sua mordida, nenhuma cabeça rolava belamente sem que fosse seu santo metal a separa-la do corpo. As outras espadas e corpos eram o cenário, ela era o espetáculo.
Marizan não sorria. O negrume opaco que a revestia era enriquecido pelo sangue dos inimigos caídos que a enfeitavam. A sua forma era imponente, era esguia e robusta, absorvia a luz e mal revelava os escritos na língua dos mortos que possuía acima de seu guarda mão, nos limites de seu ombro. Ela emprestava suas capacidades e experiências ao carniceiro meticuloso que a segurava. Para ela, aquela batalha era apenas mais uma, pois seu ódio ancestral e sua malícia destilada como veneno era fruto de segredos tão antigos e tão profundos que datavam de pouco depois da morte dos deuses. Ela existia desde então, e isso a consumia como criatura. Ela era fúria, caos, sofrimento e dor. Ela era o próprio demônio vestido de metal, contra sua vontade. Seu ódio e desejo de retornar à sua majestade infernal a impelia a jamais ser derrotada em combate.
Os corpos dos desafortunados combatentes que ousavam em algum momento confrontar Rorger ou mesmo Calmaron se amontoavam, esquartejados, mutilados, despidos de suas vidas, jogados na lama formada pelo sangue que coagulava em profusão naquele terreno acidentado.
Quando Telus percorria o ar, silvando com sede de sangue, a carne dos inimigos abria caminho para sua passagem. Quando Marizan entrava no inimigo, sua presença demoníaca cortava não apenas a carne, mas também a alma da vítima e se alimentava dessa essência espiritual. Os cadáveres por ela abatidos nem sempre descansavam em paz no encontro com seus deuses ou nos braços do três apócrifos, havia aqueles que retornavam como escravos de sua vontade e disponíveis a seu portador.
Um dos soldados do exército oposto chegou pelas costas de Rorger e demonstrou capacidade de combate e nesse momento o Duque Calmaron viu o caminho livre até o sagrado guerreiro que roubara tantos servos de seu exército de conquista e vingança.
Calmaron segurou Marizan com ambas as mãos e correu em direção ao inimigo com a intenção de impor maior violência ao golpe que desejava acertar. O barulho que metal negro de sua armadura produzia era assustador e o demônio em suas mãos desejava beber o sangue e a alma do mais forte dos oponentes.
Rorger estava de costas para Calmaron e lutava com um forte selvagem. Em um golpe que percorreu o espaço do canto superior esquerdo até o extremo mais inferior direito do guerreiro, Telus viu, quando atingiu o ponto mais agudo do corte, por trás do guerreiro santo, a vinda do duque e de sua espada maldita. A vontade da espada fez Rorger virar-se violentamente e Telus cortou o ar mais uma vez e o mundo daqueles dois homens parou naquele momento pois Marizan foi impedida de dilacerar a carne do guerreiro santo.
O fogo profano e a luz divina formaram um mundo de medo, sons, cores sombrias e esperança ao mesmo tempo. O golpe foi tão monstruoso que ambos os senhores recuaram um passo para se recompor. As espadas ficaram a postos, cada uma delas avaliou sua rival com a maior acurácia possível. Ambas procuraram falhas, dentes, qualquer fissura que mostrasse um possível ponto para ser explorado, mas as duas eram perfeitas em sua fazedura, uma feita pelas melhores técnicas e metais que os homens possuíam, abençoada pela graça dos deuses e sagrada ao guerreiro santo, em nome de Namiezil. A outra fôra forjada no seio do inferno e era blasfema em sua própria forma. Nenhuma conseguiu entender como era possível a permanência da outra nesse plano de existência.
Uma nova investida ocorreu com golpe seguido de golpe em busca de uma abertura na defesa do inimigo. O céu se tingiu de cores gritantes, vermelho apodrecido, de azul cadavérico. Os músculos dos combatentes expandiam e retraíam inferindo força a cada impacto. Faíscas e fogo gritavam no espaço ao redor dos dois, engolindo-os em uma nuvem incandescente de horror e glória.
As lâminas dançavam e se contorciam no ar num baile mortal. Sempre que uma encontrava a outra naquela dança de ódio elas trocavam ofensas e experiências de suas capacidades e tornavam-se cada vez mais carregadas e pesadas com a fúria que acumulavam.
Calmaron arfava como um cão e com as duas mãos manipulava com técnica mordaz Marizan em direção ao alvo.
Rorger transpirava muito e o suor fazia seus olhos arderem. Não havia tempo para limpar o rosto.
Outra pancada e o primeiro sangue entre os dois aconteceu. Marizan escorregou pela lâmina de Telus e encontrou uma falha na defesa da inimiga, e macerou a carne de Rorger por cima da armadura azul e dourada que ele utilizava. Apenas Telus escutou quando Marizan gritou de raiva e satisfação.
Um passo atrás, outro passo. Rorger começou a perder terreno perante a investida avassaladora de Calmaron. O duque da conquista colocou-se em posição mais alta, conseguindo uma vantagem significativa e continuava a impor o ritmo do embate.
A cada vez em que Marizan descia em um círculo fulgurante impulsionada por Calmaron, ela era rechaçada por Telus, que tentava com todas as técnicas conhecidas ganhar um ponto de ataque, pois sua defesa começava a vacilar.
Outro golpe e outro encontro, dessa vez mais próximo, Rorger não conseguia pensar. Calmaron avançava com gana e como um dos maiores guerreiros conhecidos, queria levar a morte a seu inimigo.
Foi quando Rorger fez um incrível jogo de corpo que o colocou no flanco de Calmaron, com a lâmina de Telus lambendo fundo o abdome do senhor negro. Marizan tentou levantar-se para aparar o contra golpe que viria a seguir, mas a posição de seu senhor a impediu de obter êxito.
Telus entrou fundo no braço de Calmaron.
O fogo simbólico percorria o espaço em torno da espada negra que iniciava seu destino rumo ao solo. Telus viu sua oponente cair. Ela escutou o som de sua vitória e desceu uma vez mais em direção ao duque.
Foi desferido o último golpe de toda a batalha.
Mil monstros jaziam como enormes esculturas de carne e ossos no campo sangrento, milhares de soldados mortos estavam mutilado a seus lados. As duas espadas permaneceram com o peso do mundo em suas lâminas e os dois senhores da guerra sabiam que era o fim.
Os senhores do oeste venceram a guerra e Rorger foi seu mais valente general. A paz de Acéllus seria deles. Aos duques do fogo a derrota do exército de Calmaron significou que seriam obrigados a negociar, em termos de descontentamento.
Legitimado pela vontade dos deuses, aquele momento seria histórico, lembrado por gerações e então, entraria nas crônicas da terra como o conflito final da guerra dos mil monstros.
No campo de batalha permaneceu Marizan, esquecida. Contudo dizem os sábios que a espada demônio retornaria ao mundo em busca de outro senhor para então se libertar e reconquistar o que lhe foi roubado.