Feliciano
 é o nome de uma vila que fica no município de Sertânia, a 300 km a oeste do Recife, às margens de uma movimentada rodovia, a BR-232. Hoje parece uma cidade fantasma, com prédios abandonados, como igreja, escola, hotel, bar...
 O conto foi escrito   baseado  nas fotos de Carlos Lopes.

                                                   
A Flor do Caroá

 Aposentado da profissão exercida uma vida inteira, o médico Augusto Rosa sente o coração explodir com as lembranças teimosas de sua infância. Agoniado, aproveita as férias de Cícero, seu neto e faz o convite:
 

 — Quer conhecer as terras do velho Dionísio Rosa?

Chegam à localidade reencontrando com as ruínas de uma vila e com o passado que doutor Augusto em vão tentou esquecer. Os pés de caroás não passam despercebidos, logo ele se lembra da fábrica e dos trabalhos artesanais de outrora. Se aquela antiga prensa de madeira pudesse falar...

A curiosidade e a alegria do neto acalmam o avô, mas algo ainda lhe oprime o peito,  sai para um passeio noturno tentando espairecer.
 

Em meio à escuridão, caminha sozinho ruminando lembranças fugidias. O céu constelado e a lua cheia boiam no leito do rio. Distraído, pisa sobre as pedras atravessando a correnteza. Estrelas espalham claridade no caminho. O pretume da noite aos poucos se dissolve.
 

Augusto sente um frio a lhe percorrer a espinha quando vislumbra uma luminância vindo em sua direção. Envolvido por aragem nevoenta se vê cercado por cinco cavaleiros armados, vestidos à moda do cangaço. Dos quais, dois portam Winchesters  papo amarelo e disparam tiros para o alto. O que parecia ser o chefe deles usa na cintura uma pistola  Parabellum Lugee, arma famosa no nordeste, pelas histórias de sua potência.  Em seguida aponta-a para Augusto. Seu rosto estava sombrio e sem ao menos dar boa noite, foi logo dizendo:
 
 —Vosmicê é dotô? Viemo te buscar. Se avie qui mulé de Corisco tá cum dor.

  Sem escolha, Augusto se deixou conduzir por aquele bando que vivia no calor das caatingas, saqueando ou fugindo das volantes. No lombo de um cavalo, em meio a cactos espinhentos, sol escaldante e chão estorricado, enfrentou longa e exaustiva viagem pelo sertão afora. Conduzido por estranhos, sem rumo e certeza de chegar vivo, onde quer que fosse.

  Havia homens armados à entrada de uma furna. Corisco ia e vinha inquieto; Maria Bonita se via angustiada sem conseguir acalmar a companheira de rosto sofrido, deitada no chão forrado com esteira e trapos. A mulher do cangaceiro gemia alto chamando o marido que suava em bicas ao seu lado, sem poder ajudar.  Indagava a Maria, o motivo de Lampião e os outros demorarem tanto achar uma parteira. Ali, nenhuma das mulheres se arriscava tocar na padecente que gemia:

 Depois de entrarem na caverna, tiraram a venda dos olhos de Augusto. Incrédulo, reparou que os homens usavam chapéu de couro na cabeça, limpavam e colocavam munição nas armas de fogo, compostas por carabinas, fuzis e mosquetões modelo  militar brasileiro.

Assustado verificou que tinham posse de uma verdadeira miscelânea de armas: fuzis Comblains pistolas Parabellum entre outros armamentos. Preparando alguma comida, em volta de trempe improvisada, havia várias mulheres com vestimentas estranhas. Todas portando punhais na cintura.

O médico aproximou-se da mulher estendida no chão. Tinha o ventre intumescido pela gravidez  e gemia sem parar. Havia algo errado...Trêmulo deu a ordem:

—Não quero vivente nenhum me apontando arma aqui. Se ficar esse furdunço essa moça não vai parir é nunca!

Virando-se para uma das mulheres que segurava uma lamparina de luz fraca disse:

 —Alumie essa escuridão, menina!

Ajoelhou-se no chão e com as mãos mediu o ventre da mulher, indagando das contrações. Assumiu o comando como se estivesse em Recife, na sala de parto do Hospital Dom Pedro II, onde passou a vida aparando criança. Coisa comum em mais de quarenta anos de profissão.

O doutor Augusto deu ordens para que trouxessem água quente.  Havia feito muitos partos. Fáceis ou complicados, perdera a conta de quantos nascimentos testemunhara com a responsabilidade de trazer para a luz, algumas milhares de crianças.

Agora já velho e sem as mãos firmes de antigamente, num local sem o mínimo recurso; começou sentir um pavor tomando conta de todo seu ser. Só podia estar caduco. Era o que pensava enquanto corria os olhos naquele lugar e se via diante do bando de Virgulino Ferreira, esperando que fizesse um milagre.

Saiu do devaneio com o gemido da mulher. Eram as contrações aumentando. A noite seria longa e o parto muito difícil.

Trouxeram um caldeirão de barro cheio de água quente, como havia pedido. Então molhou panos e colocou compressas quentes na barriga da mulher do cangaceiro Corisco, para que o ventre se dilatasse, facilitando assim o trabalho de parto.

Reinava um silencio sepulcral, quebrado apenas pelas queixas da parturiente. Um pequeno calango correu sobre as pedras e gravetos procurando a escuridão. Lampião, Maria Bonita e Corisco, olhavam agoniados o sofrimento de Dadá.

 Horas se passaram... Contrações cada vez menos espaçadas. A mãe já quase sem forças sussurrava uma oração. Der repente um dos cangaceiros entra assustado avisando da volante que fora divisada vindo naquela direção. Precisavam escapar daquele lugar o mais rápido possível.

Ciente do perigo, em meio a uma forte contração, a mulher fez um último esforço e nesse momento o velho médico murmurou:

 —Está nascendo!

Ajoelhado no chão, segurando com mãos hábeis a cabecinha, Augusto trouxe para o mundo uma criança. Mediu com os dedos o cordão umbilical, amarrou e cortou com o próprio canivete. Com delicado tapa no traseiro fez a criança mostrar-se viva, ao desatar o choro.

  —É uma bela menina, dona Dadá!

Nessa hora Augusto reparou à sua volta. Haviam apagado o fogo, ajuntado as tralhas. Estavam prontos para partir. Num gesto de gratidão, o cangaceiro Corisco tocou-lhe o ombro sem dizer palavra arrancou do chapéu e colocou em sua mão uma moeda de ouro e uma libra esterlina que serviam de adorno. Enquanto sua mulher com a criança ao peito chorava copiosamente por se ver forçada a afastar-se da filha. Colocou no pescoço da menina uma correntinha com a medalha de Nossa Senhora e do Sagrado Coração de Jesus e sussurrou:

 — Sô Dotô, jura por Nossinhô Jesus Cristo que vai cuidá da minha bichinha. Leva ela pra bem longe... Na nossa companhia ela num vai vivê...

Aturdido, ainda sem se dar conta de tudo que havia passado naquela noite, Augusto se viu sozinho num esconderijo no meio da Caatinga, segurando nos braços uma recém-nascida. Lá fora, o tropel seria dos cavalos do bando de Lampião se afastando ou da volante se aproximando?
 
Augusto acorda quando Raquel, sua neta adotiva, toca seu ombro num um gesto carinhoso.  Antes de se levantar, aperta no bolso uma moeda de ouro e uma libra esterlina que sempre traz consigo e percebe que o sertão não é ingrato aos que nele habitam.


 Os olhos dos bichos e dos sertanejos residentes em Brejo Santo já repararam as nuvens no céu. Entre quipá, coroa-de-frade, imburana e juazeiro, o mandacaru, anunciante das chuvas, mostra os frutos vermelhos dando esperança.  É hora de plantar.

— O tempo mudou. Tá bonito pra chover!— Disse o neto Cícero.

 Tempos passaram e hoje naquele lugar, o neto de Augusto e a mulher Raquel, administram a aconchegante pousada Patuá. A antiga prensa de madeira, fragmento da história, tem lugar de destaque no jardim da pousada Em paralelo à pequena fábrica de queijos de cabra que tem como clientes hóspedes da pousada, delicatessens e hotéis da capital.

Raquel traz no peito uma medalha, recordação dos pais biológicos.  É uma mulher empreendedora, com ajuda de Augusto e Cícero, conseguiu a revitalização da cidade. Coordena o trabalho de um grupo de artesãs da região que faz acessórios femininos e utilitários utilizando a fibra de caroá. 

Cícero é presidente da “Cooperativa de Apicultores de Brejo Santo.” Após as chuvas as abelhas visitam as flores do marmeleiro, responsável pela produção de mel com sabor muito apreciado e com alto valor comercial para os criadores de abelhas do nordeste, sendo considerada uma das principais fontes de néctar da caatinga.

Os agricultores estão satisfeitos comercializando os mais diversos produtos orgânicos desde frutas e verduras até caprinos e ovinos. Durante o dia, a feira da pracinha atrai gente de longe. Expostos em pequenos jiraus de bambu, se acha com fartura, laranjas da terra, chuchus, jerimum, macaxeira, pimentas de cheiro, queijos de cabra e doces variados.

Brejo Santo hoje em dia tem muita coisa para conhecer e explorar! Serras, rios, riachos encantam os turistas que vem até ali pelas compras, ou mesmo pelo passeio, em busca de diversão.  Nos finais de semana sempre acontecem shows de forró com artistas da região.

No alto da colina, Augusto, Cícero e Raquel aproveitam a beleza da paisagem que a duras penas fizeram renascer. Um instante de silêncio, um frescor envolve os três num afago, espalhando no ar o perfume das flores brancas dos marmeleiros. Despontam sob a claridade do luar um bando de crianças, alegres e saudáveis, vindo ao encontro dos pais e do bisavô.

Augusto se sente realizado. Segura no galho do mulungu olha a família e diz:

—Não existe lugar mais bonito para se morrer...


E as primeiras chuvas vieram. O cinza esbranquiçado da caatinga deu lugar ao verde que avança sobre os vestígios de moradias e sonhos de vida. Os animais aproveitam a fartura. O sertão explode exuberante, cheio de vida e cores.

Sonhos e caroás resistiram. É assim que deve ser! 
 

                 

                     Todas as  fotos são de autoria  de Carlos Lopes                                    

Me senti meio pernambucana ao escrever esse conto. Portanto, dedico esse texto ao povo nordestino. O nome Raquel é em homenagem à grande escritora Rachel de Queiroz.
Maria Mineira
Enviado por Maria Mineira em 09/09/2013
Reeditado em 10/09/2013
Código do texto: T4473571
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