TROPEÇO
 
                                                                          
Nossa turma é legal, manera mesmo. Claro que temos algumas broncas, tem uns carinhas que pensam diferente. São uns metidos a besta. Mas a gente deixa pra lá. No geral, é uma curtição. Cada um apronta a sua, é verdade. Isto a gente leva na gozação e ninguém estrila. Fica legal é no dia das provas. Uns se metem a sabichão, outros mostram a ignorância e tudo dá certo.

O feio mesmo foi quando a Patrícia entrou pra turma. Veio transferida, na metade do ano. Já tinha os grupinhos. A gente ficou olhando pra ela com cara de babaca. A mina até que era legal, cheia de gíria, roupas diferentes. Mesmo quando usava o uniforme, tinha um toque especial. Os cabelos, talvez, a pintura, não sei, ou o jeito de caminhar, de balançar a cabeça e fazer ondas com os cabelos brilhantes. Um pouco disto tudo.

E, é claro, uma verdadeira patricinha, cheia da grana. A gente ficava esperando ela chegar, só pra ver quando descia do carrão com motorista particular. Era show. Cada um disfarçava, olhava pro outro lado e ia saindo de fininho, pra não dar bandeira.

Aos poucos, foi conquistando a turma. O ar superior era somente fachada. Fiquei na minha. Tinha medo de agradar, e ela pensar que era interesse. Eu hein? Trazia presentinhos e distribuía. Nunca peguei nenhum. Pelo mesmo motivo.

A coisa ia neste ritmo, quando aconteceu o que realmente quero contar.

Segunda-feira. Chovia forte. Temporal com vento, janelas e portas batendo, gente correndo, estrondos de trovões, raios, essas coisas. Tão escuro que parecia noite. As luzes foram acesas.

Hora do intervalo. Algumas meninas tinham olhos arregalados, prontas pra chorar. Patrícia não. Nem era com ela. Andava pelo corredor. Parecia desfilar. O vento deixava os cabelos mais bonitos, esvoaçando. Bom. Não fiquei olhando só pra ela, é claro.

Voltei pra sala, peguei o livro pra devolver na biblioteca. Desci a escada pulando, mesmo no lusco-fusco. Quando estou na metade, o grito estridente ecoou, junto com o raio, seguido do trovão. As lâmpadas se apagaram. Errei o degrau e despenquei de encontro a uma pessoa. Novo grito e correria. A luz voltou.

Foi confuso. Patrícia agarrada em mim, aos gritos, dava tapas, tentava me morder, e falava coisas que eu não entendia.

­ - Me larga; sai daqui; preciso fugir; ele vai me matar; chama o papai.

Dizia tudo de uma vez, olhos arregalados. Nem parecia me ver. Foi daí que saquei uma ideia, claro que não era minha; tinha visto num filme. Dei um tabefe nela, com toda força.

Ficou quieta, piscou um pouco, depois me olhou. Aí, vi que sabia quem era o cara que a tinha nos braços.

- Desculpa - balbuciei, atrapalhado. - Cara! Não sei o que deu em mim. Mas precisava te acalmar. E só sabia deste jeito.

Largou a chorar, soluçando e agarrada no meu pescoço. Me deixou quase sem poder respirar. Tentei soltar seus braços, fazendo um carinho no rosto e falando.

- Ta tudo bem, Paty. Tudo. Ta legal, chora mais um pouco, mas a gente pode levantar e ir para a sala. Foi um susto mesmo. O trovão estremeceu o prédio. Eu também me assustei. Não fica com vergonha.

- Não! Pra sala, não. Quero sair daqui, ir para a rua. Vou chamar papai. Ele queria me agarrar.

Opa! Eu não queria agarrar a mina. Foi sem querer. Na real, caí em cima dela. Como me safo desta?

Ponderei:

- Paty, eu não queria te agarrar. Foi um acidente. Caí da escada. Olha só, não tive culpa. Pode deixar. Vou pra sala sozinho. É só você largar meu pescoço.

- Não! Me ajuda, preciso sair, ele vai me matar. Por favor!

- Ele? Quem é ele? Estamos só os dois. O que você está dizendo? Venha, vamos sair daqui.

Ajudei-a a se levantar. Passou as mãos em meu braço e agarrou, fazendo as unhas vermelhas e compridas penetrarem na carne.  Aguentei, firme.

Caminhamos até a sala de espera. Não tinha ninguém. Trouxe água do bebedouro. Tomou. Mas não parava de soluçar, olhando para os lados, com medo.

- Garota, olha para mim. Estou contigo. Não tenha medo. Somente quero te ajudar, já disse. Não confia em mim?

Levantou-se e iniciou uma corrida. Consegui segurá-la e trazer de volta. Sentei-a.
- Agora me conta. O que está acontecendo. Não foi só o susto por eu ter caído em cima de ti, foi?

Respirou fundo:

- Não foi nada disto. É por causa do monstro.

- Monstro, que monstro? Você bateu a cabeça, ta maluca? Não ta falando coisa com coisa.

Agarrou-se no meu pescoço e chorou mais um pouco. Deixei. Até que tava gostando. Mas poderia chegar alguém, a diretora. Como iria explicar? Afastei-a.

- Ta bem, vamos voltar para a aula, agora?

- Não! Quero para casa. Não posso ficar. Vou te contar. Sabe aquela porta, embaixo da escada? Fiquei curiosa para saber o que tinha. Aproveitei que a professora não tinha chegado. Saí da sala e fui abrir a porta. Foi então que... não, tenho medo. Ele vai se vingar. Eu não devia.

Hum... isto ta ficando bom. A patricinha ta inventando história pra se agarrar em mim. Será? Posso até pensar que sou o bom. Mas sei que não. Não dá pra voar nos pensamentos. Preciso voltar pra aula.

- Pior ... - comecei a falar.

Mas outro estrondo e novamente a falta de energia elétrica me deram mais uma chance de ter uns amassos da menina. Veja bem, ela é que me agarrava. Fazer o quê? Tava ficando mais gostoso ainda. Bom demais. Até arisquei uma prece: cara, deixa assim, no escurinho por mais um pouco, por favor.

Não deu outra. Nós agarrados, a menina lambuzando meu pescoço com lágrimas e eu, ah, eu, bem... nem pense que tava me aproveitando, isto não, mas...

Terminou.

O clarão da luz e os olhos da diretora.



 
 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 03/09/2013
Código do texto: T4464622
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