Eurus e Tália
Oh querida, ouça minha alma e cuide do meu choro
Porque todo meu choro pode inundar um oceano em meu coração
Banda Shaman
A pálida luz da aurora iluminava a prata pele daquele sonolento anjo. Adormecida nas nuvens, a minha amada musa repousava. Seus adoráveis olhos de corsa, cerrados contra a claridade ascendente, tremeluziam singelos. Os cabelos em esplendor trançados, eram como milhares de fios de cobre sedosos, caindo plácidos sobre aquela tez branca de neve.
Escondido em minha cinzenta nuvem de tempestade, a distância, eu a observava, enquanto ressonando intranquila a princesa de luz, em seus tormentosos sonhos me via. Seu sono encantado, por Morfeu ministrado, por minha odiosa presença que a tudo nublava era aos poucos perturbado.
A escuridão que se estendia sobre o céu a minha volta, com seus pérfidos dedos devassos, em sua face de ninfa faceira passeavam desejosos, pois ansiava àquela cálida criatura divina tocar, e com seus braços pútridos para o fundo do Tártaro consigo arrastar.
Com um aperto a retorcer o nefasto peito, e uma gota de chuva que dos olhos de fenda azul vazava, afastei-me daquela que amava. Um soluço mudo estrangulado a escapar-me dos lábios rubros de pecado. No silêncio, um relâmpago estrondosos e fulgurante, o céu que se escurecia recortou.
Enquanto de minha bem amada eu me afastava a palidez dos raios solares da manhã lentamente voltaram a banhar a sua pele de fada nua e um brilho rosado surgiu timidamente sobre sua face de anjo travesso e seus olhos de mel abriram-se lenta e vagarosamente, derramando-se sobre mim como o mais cálido pôr-do-sol.
Ela observava-me com uma afável curiosidade, sua delicada cabeça de mármore inclinando-se pensativa, enquanto seus cabelos que escapavam de sua celeste trança acobreada espalhavam-se a sua volta. Uma brisa gélida enviada por Bóreas passou por nós arrepiando os pelos dourados de seu corpo e enrijecendo seus pequenos seios de pêra banhada em leite.
Uma eletricidade estática percorria meu corpo e a expectativa esparramava-se sob minha pele em um suave deleite pulsante, bombeando por todo meu ser rápidamente. Era a primeira vez que ela me olhava. E seus olhos passeavam em mim, não com repulsa, mas com visível contentamento.
A memória dos anos que passei a observá-la em segredo, vendo-a banhar-se nua nas nuvens brancas que cobrem o céu como um tapete de plumas, com a claridade dourada a tingir-lhe a pele, ela era a criatura mais bela por sobre os céus. Eu a desejara com todo o meu ser, ansiara tocar-lhe as pernas compridas, saber se eram realmente tão aveludadas e sedosas ao toque quanto pareciam. Passear meus dedos por todo aquele corpo feito em lactea-via. E mergulhar naquela boca rubra, afogando-me nela e perder-me, perder-me dentro daquela que eu amava. Aquela que para mim era a única.
Por muito tempo imaginei qual seria o som da sua voz, sussurando em meus ouvidos, murmurando o meu nome, ou apenas sorrindo alegremente...Em minha imaginação aquele abençoado som era como o de uma orquestra celestial, uma sinfonia de acordes perfeitos que inundaria minha alma imortal da mais deliciosa imensidão de sentimentos e de uma paz que derramaria-se em cada gota de chuva que meu ser produzisse, enchendo as plantas do amor que eu sentia por Tália.
Porém, sempre que me aproximava daquele ser coberto de perfeição, a escuridão e as nuvens cinzentas de tempestade assomavam por sobre seu corpo desprotegido e ela tremia, a luz do sol se apagava para ela transformando-a em uma figura solitária e seus olhos tremiam com a ausência de luz. O medo de acordá-la e ver em seus rosto uma expressão de horror ou desprezo invadiam-me.
Acovardando-me eu me conformei a somente observá-la, para mim, ela era o sonho que eu jamais poderia sonhar. O doce elixir da alegria do qual não poderia provar. Inalcançável, inatingível...
Mas naquele momento em que ela me olhou, a esperança que nunca permiti crescer em meu peito, expandiu-se e dominou cada célula de meu corpo. Eu a fitava esperando para ver o que ela faria, saber o que ela diria. Com medo e ao mesmo tempo ansioso. O receio de ver sua boca retorcer-se em escárnio me apavorava, mas a esperança de vê-la sorrir preenchia-me.
Os segundos arrastavam-se como se o próprio Chronos estivesse a torturar-me alongando os minutos para parecerem séculos. Enquanto aquela que eu adorava lentamente levantou-se de sua nuvem e disse, com uma voz que sobrevoou o mar que se espalhava abaixo de nós, como o canto da mais bela sereia.
- Você é Eurus, certo?
O silêncio alongava-se enquanto eu procurava minha voz.
- Sim.
- Você me observa a muito tempo, não é?
Um sorriso repleto de dentes perfeitos e alvos reluziu em seus lábios de túlipa, que pela primeira vez abriam-se para mim. O calor subiu por meu pescoço até minhas bochechas e temendo a repreensão afirmei:
- Um pouco.
- Eu o vejo. Sempre que se afasta sentado em sua nuvem cinzenta de tempestade eu abro meus olhos e o observo partir tão silenciosamente quanto chega. Sei quando chega pois uma brisa fresca com cheiro de chuva passeia sobre mim quando está perto, e eu posso dormir tranquila.
Assustado eu não sabia o que responder, mas ela continuou. De suas costas asas translúcidas surgiram e ela começou a voar em minha direção.
- É reconfortante quando você está próximo a mim, gostaria de entender porque nunca falou comigo. De minha parte sempre temi incomodá-lo, ou assustá-lo.
A essa altura apenas poucos metros separavam-nos, e a escuridão a minha volta acariciava a face daquela que eu desejava, com dedos frios e negros. Comecei a afastar-me novamente.
- Por favor, não se afaste de mim - pediu ela com a voz suave - não entendo porque foge de mim, mas quero permanecer próxima a ti.
- Não quero corrompê-la com a escuridão em que vivo, seu lugar é a luz do sol - respondi, com os olhos a fitar minhas próprias mãos.
- Pois como seria possível me corromper com a escuridão, se é pelos momentos que tenho ao seu lado que passo os dias a deitar-me sob a luz do sol a fingir que durmo profundamente, para que se aproxime de mim.
Meu corpo em choque já não podia mover-se enquanto ela avançava em minha direção. Com os braços estendidos, ela tocou-me na fronte e acariciou meu rosto com aquelas mãos de seda que eu tanto ansiara. Meus olhos fecharam-se incrédulos, e minhas mãos acariciaram vagarosamente os seus cabelos acobreados. A minha volta o mundo cinzento que antecede uma tempestade já não existia, enquanto eu a tomava em meus braços, eu era somente o deus do vento leste que se afogava nos lábios de sua amada.