Pequenas histórias 000 - Sagitta
Sagitta
Onde você estava quando o clarão explodiu iluminando nossos olhos fechados? Onde estava? Não te encontrei em lugar nenhum. Nossos olhos não são mais os mesmos, eles abriram-se mesmo estando fechados. Abriram-se para a volátil luz espargindo fios de ouro em cada horizonte enchendo de enigmas a paz reclusa em cada ser. Caminhei ao lado e pude compor meu destino sem aflição que é determinada nessas ocasiões. Caminhei me perguntando a cada passo que cuidadosamente imprimia minhas marcas na areia fria da estrada, onde você estava? Você como eu, deveria preparar o caminho para desvendar os enigmas da pedra, os enigmas do ar, da água, do fogo e dos signos. No entanto você nem se preparou, pouco se incomodou, deu as costas sumindo na solidão do povo, talvez conformado com o desígnio de ser apenas um sobrevivente da angustia e da ansiedade. Ou teve medo de enfrentar o desconhecido. No entanto, é no desconhecido que há crescimento, principalmente o crescimento de si próprio, passando a entender o mundo que o rodeia. Tudo leva crer que a luz não iluminou suficientemente teus olhos fechados. Não deixou nem uma mínima chama de luz se infiltrar por entre as pálpebras. Medo? Será? Não sei, medo todos tem, se não enfrentarmos nossos medos, morremos desiludidos de nós mesmos. Morremos na ignorância de não termos nascidos nos corações das pessoas. Principalmente de quem amamos. Morri duas vezes para renascer outras duas vezes. Cultuei a Fênix até que me tornasse parte das suas fibras e de suas asas ligeiras como flecha.
Com a mão espalmada de dedos de certeza, contornei as linhas da flecha cravada no peito, até que a comoção tênue de luz desfibrasse a distância entre a certeza e a dúvida que roçava as pontas dos dedos. Fui tomado pela comoção, senti a profundidade da existência alojada em meu corpo. E surgiu a intenção do grito, no entanto o grito morreu no escondido da garganta. Sedento, alimentei-me de cogumelos e plantas rastejantes. Saciado e alimentado, reiniciei a caminhada pela estrada vazia e poeirenta. O suor dos meus passos marcava a areia no destino ignorado. Sentindo-me pequeno na grandeza humana, descortinei a paixão enroscada nas formas à margem da estrada. Para não me cansar, caminhei devagar, o mais lento possível, porém, o cansaço tolhia os movimentos. Não era cansaço físico, nem cansaço mental, era cansaço da enrijecida carne pelo temor de me sentir cansado. Precisava de repouso. Ao longe divisei um casebre, e para lá me dirigi. Assim pude repousar a carne ouvindo os espaços do pulsar no silêncio das fibras que me envolviam.
Quantas horas dormi? Não sei. Apenas Sagita me iluminava, e acompanhando sua sombra, resoluto, reiniciei minha caminhada novamente.
Ouvia. Ouvia sim, a música diluída na distância até ao ponto que meu ouvido conseguia alcançar. Era uma música conhecida, apesar de seu ritmo violento, rápido, precisava apurar os ouvidos para distinguir as palavras. E o que elas me diziam? Momentaneamente nada. E como poderia dizer alguma coisa se nem sabia o do porque estava naquela situação. O que estava fazendo naquele morro que ora me parecia um amplo espaço aberto, em outros momentos, dava a sensação de estar numa gruta onde a luz difusa mal iluminava o caminho. Tentava caminhar, tateava apalpando a parede úmida e gosmenta e fria. Minha respiração subia, tinha a nítida noção que estava passando por aquilo para salvar a vida. Se livrar da escravidão. Mas qual escravidão? Da vida? Da materialização da vida e seus vícios?
Quando me senti no morro onde meus olhos cerrados pela violenta luz, o medo me dominava, paralisavam os movimentos até que uma sensação estranha me lançou a um combate entre a paz e a dor. Nesses momentos consegui tocar na paz com as pontas dos dedos acreditando em vencer o que me afligia sem saber exatamente o que. E era nesses instantes que surgia o sinal no amplo céu iluminado pelo sol forte. Uma sombra cobria meu corpo suado e violentado pela luta, dando-lhe uma pequena força para continuar. A princípio pensei num sinal, depois distingui um pássaro, quando chegou mais perto foi que reconheci a águia que adquiria forma de flecha ou seta se materializando em seu interior. Captava essa materialização como chama queimando-me ao mesmo tempo em que a mente se abria guiando-me paralelamente as correntezas do rio da vida.
E o poder da carne tornava-me rígido, um pouco cansado, mas não frágil, pois sabia que meus inimigos se encontravam paralisados ignorando o rumo que deveriam tomar. Eu tinha um rumo, talvez até soubesse qual era, mas envolvido por uma névoa que não me deixava ver claramente, e nem podia, pois se soubesse não haveria significado nenhum em percorrer.
A todo o momento me perguntava:
- Conseguirei completar todo o meu caminho?
Era a pergunta mais frequente em que procurava acreditar e, Ingênuo, acreditava. Acreditava porque todo o dia abria os olhos e contemplava o azul escuro sem estrelas do teto do quarto. Não via nisso um milagre. Não acreditava em milagre. E porque deveria? Só porque estava no planeta Terra e o planeta Terra entre constelações e nebulosas? Só porque os mistérios existem e precisam ser revelados? Ou quem sabe, decifrados? Tudo isso e muito mais, disse reconhecendo o trabalho árduo que tinha à frente.
Tinha uma arma. O grito. O grito mudo saindo da garganta ganhando a vastidão do vazio seco como deserto. Usava o grito, nem sempre positivamente. Isto é, o grito apesar de amplo e vasto, se convertia de positivo a negativo. Quer dizer, era interpretado dessa maneira. Mesmo assim, não deixei de gritar toda vez que achava que deveria. Reconhecia. O grito saia às vezes, fraco, seco, sem eco, outras vezes, sonoro não alcançava o objetivo. Por isso, do meu canto fitava o vazio das pessoas estudando cada gesto, cada movimento, cada frase, para depois codificar em meu intimo o significado. Nem sempre justificável. Por isso, agia incrédulo diante da face egocêntrica povoando meu caminho. Desviava dessas faces como desviava da futilidade onde, no livre arbítrio, cada um achava seu canto mórfico e ali me aquietava.
Não podia me aquietar tinha uma missão a cumprir. Seguir a flecha lançada no espaço da existência em que pisava com cuidado. A flecha seguia seu curso predestinado, e seguindo-a corria perigo, durante o caminho me desvirtuar e cair no anonimato de um sentir fútil, levando-me a despencar no abismo de sentir eu mesmo queimando no fogo das palavras.
Ah! Sorrio intimamente, conseguirei, sim, disse para si mesmo.
Sim conseguirei, disse a si mim mesmo, não me preocupo com o significado da palavra, sei que conseguirei, e, no entanto, surge, enovelando tudo com a fragrância do desprezo, a indolência dos mortos vivos, como sentimento de tristeza ao estampar a negatividade. Não sabia trabalhar os sentimentos, desconhecia o processo, não me ensinaram a burilar o negativismo, não me ensinaram nada, muito menos viver e, viver era difícil!
Lábios finos, devastador, sensual, nunca apresentou uma pequena fresta de alegria, meus lábios não se abriam para um largo e franco sorriso. Quando me perguntavam por que não sorria, a resposta era:
- Cristo nunca sorriu, porque devo sorrir.
As pessoas não me diziam nada, uma ou outra fazia menção, pois o gesto estacionava no ar das rugas. Eu percebia e me calava.
A chuva caia torrencialmente. Se não fosse a chuva já teria deixado o Solar dourado. Não poderia esperar muito. Depois da flecha lançada não tinha como voltar atrás. Obrigado estava a seguir o curso do destino. A seguir o rastro da flecha.
Tendo conhecimento de Sagitta. Sabendo da sua existência, não conhecia sua importância no universo sonoro e no sistema cósmico. Podia prever o que me representava. Havia uma pequena, talvez noção do que me representaria, ser não místico, que vivia apenas para preencher o dia a dia da minha existência.
Portanto, quando fui apresentado a Sagitta, previ um estremecimento interno de que em Sagitta estaria a luz que tanto vinha procurando. Tomei ao pé da letra tal apresentação, no entanto, dias depois, notei que precisaria percorrer um caminho sombrio, com pouca luz. Procurei conhecimentos maiores sobre o assunto, indaguei aqui e ali, consultei os caminhos informáticos, os caminhos das constelações, do universo, das estrelas, da lua, do cosmo e, não encontrei nada, quer dizer, o que encontrei nada me dizia da grandeza de Sagitta. As informações não levavam a lugar nenhum.
Assim sendo, me acomodei no canto da alma me aquecendo no conhecimento até então, adquirido.
E ao me acomodar no canto da alma, não só me aqueceu como o conhecimento adquirido, tomou outra consistência não prevista e, me senti pronto a enfrentar a raposa, mesmo não sendo lutador, senti a necessidade em enfrentar tal perigo. A águia num voo rasante arrancou-me do pescoço a corrente com o pingente em forma de S. Desesperado, sem pensar, retesei o arco e lancei a flecha atingindo em pleno voo a águia. Nisso, surge do nada a raposa faminta. Não demonstrou medo, sabia, a raposa tinha fome de carne animal e, não, de carne humana. Sabia, ela estava ali para afrontar-me num duelo, não um duelo de vida e morte, mas num duelo de rapidez, de agilidade.
Assim, ao notar a presença do animal, sem pensar, sai correndo, impondo velocidade aos pés. Lado a lado estava na trilha do destino. Algo me dizia ser vencedor antes mesmo de chegar ao local onde estava o corpo da águia. Confiante, conhecendo meu potencial assim como o potencial da raposa. Mesmo que ela estivesse alguns segundos a minha frente, vi que não havia necessidade de impor mais velocidade. Foi então que tive conhecimento de algo que já sabia e, que naquele momento, devido à preocupação em vencer a raposa, tornava-me obscurecido. A flecha por mim lançada situava-se entre as constelações de Hércules e Delfin, seguida da águia e raposa.
Compreendi nada me venceria, só não podia fazer corpo mole, tinha que demonstrar competência para lutar, competência de ser vencedor e, assim fiz, competi com a raposa. Até o último instante, sempre com a raposa a minha frente. Na volta final, imprimi aos pés a força da seta, recuperando com galhardia a corrente com pingente em forma de S. Suspirando com alegria, gritei venturoso:
- Sagitta você não morrerá nunca. A prova esta aqui na minha mão. Tua força emanará melodiosos acordes elevando-nos ao total conhecimento cósmico.
Ajoelhei no chão áspero e alcei o pensamento à constelação visível em meu peito. E adormeci sossegado.
Sossegado adormeci. E sonhei. Sonhei calmo, suave, terno, perigoso, angustiado. Flanava no meio da constelação, esbarrava nas estrelas, empurrava uma para lá, outra para cá. O silencio aterrador comandava meus gestos. Tinha conseguido. Quando menos esperava conseguira. Era sempre assim. Conseguira. Sim, estava fazendo minha primeira viagem astral. Ou não estava? E o que era aquilo? Sonho? Muito real. De onde estava via meu corpo estendido na cama do quarto. Não só o meu corpo como tudo o que queria ver. Poderia ver minha vida, desde ao nascer até agora. Ver todos os instantes da minha vida, meus erros, meus pecados, tudo. Sim, poderia. Mas, não era isso o que queria. Ainda não estava à beira da morte. E para que relembrar o que já foi? Queria apenas flanar por entre as tênues nuvens dos amigos, amantes, parentes, e se pudesse, dizer-lhes:
- Olhe! Sei que não fui o que vocês imaginavam, sei, muitas coisas erradas fiz, mas fiz com a intenção de conseguir a felicidade e, alcançando a felicidade conseguiria fazer vocês felizes. Se não consegui, me perdoem.
Era o que queria dizer. No entanto minha voz soava muda, não alcançava o destino, não propagava no espaço. Gritava:
- Amo todos vocês.
Ninguém ouvia meu grito. Se ouvissem não tinha como saber, portanto se angustiava. Nisso percebi algo esquisito. Percebi, não tinha como sentir, era apenas um tênue flamejar de vida. Ouvi no silêncio do ouvido um passar relâmpago incandescente. Olhei em volta e nada vi. Soou ao longe um tropel de passos em desabalada corrida. De repente estava rodeado de ciclopes que corriam apavorados. Por que corriam? Com medo do que? Não teve tempo em assimilar a resposta. Passou por mim uma enorme flecha em fogo que atingiu um ciclope perto dele. O coitado caiu inerte no chão.
Nesse momento percebi, eu era um ciclope, tinha que correr.
Vi a flecha flamejante lançada por Apolo em minha direção. Imprimiu velocidade aos pés. Dava a impressão de estarem amarrados a uma bola de chumbo. Tinha dificuldade em erguer os pés. Com dificuldade, numa lentidão horrorosa fazia o máximo para fugir. Se ao menos alcançasse a esquina...
Nisso a flecha perfurou a carne. Uma queimação tomou conta de todo o corpo. Numa lentidão a carne foi estraçalhada atingindo os ossos. Parecia uma guitarra sendo solada num extremo infinito. Cai. Melhor. Aos pedaços meu corpo despencou em direção a mim que estava dormindo. Preocupou-me com o baque e como conseguiria juntar os pedaços dilacerados pela flecha. Meus olhos úmidos de terror pressentiam o momento exato do encontro de mim com mim mesmo. O momento...
Acordei sobressaltado. Empapado de suor, sentei na cama. Procurei no escuro distinguir onde estava. Acendi a luz. Respirei com folga. Sonhara. Fora um sonho tão real a ponto de sentir dores pelo corpo todo. Compreendi.
Minha busca chegava ao término. Compreendi claramente. Sagitta estava em mim assim como eu estava em Sagitta.
Isto é, meu destino era não poder nunca se livrar de Sagitta. Estava preso assim como estava preso ao destino infinito das sensações.
pastorelli