Precisão
“Só vou até os 79!”
“O que é isso pai! Pára de falar bobagem...”
“ ‘tou te falando....79! Já fiz um acordo com o “cara” lá em cima!”
“Ah! Você ‘tá exagerando... Desde quando alguém programa o dia em que vai morrer? E se passar disso, vai se matar só para mostrar que estava certo?”
“Mas... Eu só vou até os...”
“Ok...ok....aqui...bebe mais vinho e pára de falar bobagem...”
Todo almoço em família era assim. Meu pai viva dizendo que iria viver até os 79 anos. Nem mais, nem menos. Geralmente ele começava esse assunto toda vez que alguém falava alguma coisa sobre idade, ou que fulano tinha morrido, ou que a cicrana tinha sido internada e estava mais para lá do que para cá. Antes, todo mundo achava que era por causa do excesso de vinho do almoço. Agora, já do alto dos seus 78 anos, a família começava a achar que ele estava era ficando velho mesmo e, como a maioria dos amigos e conhecidos dele estava indo, ou já tinha ido pro andar de cima, essa era uma certeza cada vez maior. Coisa de gente velha, diziam. Porém, quem falava isso não conhecia direito meu pai. Sujeito honesto e trabalhador, aposentou-se pelos Correios e Telégrafos e até hoje, quando lhe perguntam como era, a primeira coisa de que ele fala é sobre a sua precisão e pontualidade. “Mais que um britânico” dizia. Contava, sem modéstia, das inúmeras cartas, pacotes e encomendas que havia entregue aos seus destinatários rigorosamente dentro do prazo, muito embora naquela época não houvesse nenhum tipo de entrega expressa.
Exaltava-se, até, ao falar sobre seu cumprimento do tempo de serviço e, jamais, fizesse sol ou chuva, nevasse ou chovesse canivete, em hipótese nenhuma, nunca ter chegado um só minuto atrasado. E nem adiantado. Um antigo chefe dele um dia num almoço em casa comentara uma vez que quando conheceu meu pai no trabalho, chegou a achar que ele fazia alguma maracutaia no relógio de ponto, pois todos os dias ele batia o ponto, precisamente no mesmo horário. Se você ou eu, ou qualquer outra pessoa comum falasse sobre esse assunto, naturalmente viria implícita uma tolerância e alguns descontos. Mas no caso dele, isso não se aplicava. De jeito nenhum. E quando vinha à baila o fator idade ele ainda completava: “Nascido aos 2 dias do mês de abril de 1904, às 22 horas, 4 minutos e 28 segundos. Tenho 78 anos, 22 dias, 4 horas e não-sei-quantos minutos e n segundos.”. Meu pai era mais preciso que o relógio atômico do IPT. Chegava a irritar, às vezes. Saber a hora em que nascemos todos sabemos. Mas até os segundos era demais. Eu sempre achei que ele fazia aquilo de troça da pessoa que havia cometido a gafe de ter-lhe perguntado a idade. Porém, orgulhava-se de sua precisão e pontualidade.
*
Acordei cedo hoje. Apesar de ser domingo, algo me tirou mais cedo da cama. Quando meus sentidos se apuraram um pouco mais, percebi que a casa estava mais silenciosa do que normal. Olhei no relógio que marcava pouco mais de 7 horas da manhã. A essa hora meu pai estava acordado fazia tempo. Todos os dias, pontualmente às 6 ele estava de pé, fazendo café na cozinha. Fui até o quarto dele e vi o volume ainda debaixo das cobertas. Nem precisei verificar. Voltei para a sala e liguei para o médico da família. Meu pai havia falecido. O Dr.Brito examinou o corpo e emitiu o atestado de óbito. Causa da morte: parada cardíaca. A hora do falecimento foi calculada pelo rigor mortis e pelas condições do corpo em caso de morte natural: Apoximadamente 7 a 8 horas antes, o que colocava a hora do falecimento pouco depois das 10 horas da noite anterior. O Dr.Brito preencheu os papéis de praxe e deu alguns telefonemas antes de ir embora. Ao sair, enquanto me dava condolências e se despedia, comentou, com ar triste:
- Meus sentimentos Toninho... Gostava muito de seu pai. Bom sujeito. Ainda bem que foi natural. Ele não sofreu. Mas o que me deixou triste mesmo foi que ele morreu bem no dia do aniversário. Acho até que, pelos meus cálculos, foi quase à mesma hora em que ele nasceu. Que coincidência não? Bem, mas, o que era pra ser um dia alegre....bem, até logo.
“...no dia do aniversário...mesma hora em que nasceu...concidência... ”, as palavras ecoaram no meu cérebro, alarmantes. Mal tive tempo de assimilar, tamanho o choque. Quando me dei conta, estava acordando de um desmaio, após ter sido socorrido pelo próprio Dr.Brito.