Aconteceu no Halloween
ACONTECEU NO HALLOWEEN
Custódio estivera muito entusiasmado com a festa que ia se desenrolar nos anexos do colégio e pedira que eu comparecesse cedo. Mesmo assim, distraída em meu quarto, eu não queria me apressar, confiante em que a margem de tempo era suficiente. Estava lendo o velho e quase ilegível diário de minha bisavó Adelli, espécie de “herança maldita” da família que ninguém ligava mas ninguém tinha coragem de jogar fora, e que eu surrupiara há tempos do sótão para ler às escondidas. Aquele era um dia adequado, e eu ria intimamente pela referência ao “Dia do Saci” que encontrara na folhinha da Editora Vozes. Será, pensava eu, que o Jack Abóbora aceita partilhar seu dia com o Saci Pererê, pertencente a outro folclore?
Havia coisas escritas por Vovó Adelli que me preocupavam; efetivamente me deixavam muito preocupada. Não há nada melhor, porém, para deixar preocupações em segundo plano, que compromissos inadiáveis; joguei tudo aquilo para o porão de minha mente e me arrumei com uma roupa escura, ajeitei um chapéu de bruxa e, uma vez pronta, fui dar tchau para mamãe, papai e o mano caçula, e me dirigi ao colégio. Não foi difícil encontrar o Custódio, porque hoje em dia, com o celular, todo mundo pode encontrar com todo mundo. No íntimo, estou convencida que isso nem sempre é uma boa coisa.
Ele me recebeu em tom de amável censura: — Oi, Edlaine! Que bom te ver! Por que se atrasou?
— Meu amor, temos tantas horas pela frente!
— Ah, mas eu estou impaciente! — e pela maneira sequiosa como me beijou, senti mesmo uma impaciência incomum, e já cheirando um tanto a bebida. Decididamente um garoto de quinze anos, hoje em dia, já não era uma criança, e nem uma garota de quatorze como eu, embora, de minha parte, resistisse ao consumo de bebida alcoólica, que eu achava intragável.
Fomos de mãos dadas pelas mesas, pegando aleatoriamente doces e salgadinhos, aquelas misturas que acabam nos dando diarréia, eu orgulhosa de estar ao lado de meu Drácula — que era a sua fantasia — passando por tantos esqueletos, frankensteins e outros monstros. O grande baile seria bem mais tarde; tínhamos tempo à beça pela frente.
Hoje eu penso que deveria ter reparado mais no ardor dos olhos de Custódio, que pareciam arder com alguma estranha febre; Custódio, a quem os meus pais mal conheciam e mal se interessavam, mas que era o mais charmoso dos meus colegas. Charmoso sim, mas... até que ponto as garotas se lembram de conhecer realmente o íntimo dos seus namorados?
Nós batemos papo com vários colegas, participamos de fotos e filmagens coletivas, mas afinal, quase sem que eu percebesse, o garoto ia me conduzindo para fora da “região habitada”. Eufórica com a prolongada companhia do namorado — tão diferente da companhia dos familiares! — não notei nem desconfiei de nada, até me ver a sós com ele, junto a um galpão escuro e fechado, perto de árvores gigantescas que projetavam sombras descomunais no ambiente.
— O que viemos fazer aqui? — indaguei, meio espantada.
— Vamos sentar naquele banco.
Realmente havia um desconjuntado banco de ferro por ali, que a lua crescente não conseguia iluminar por causa da sombra das mangueiras. Sinistras corujas piavam, o cenário já parecia de filme de terror, e um germe de medo nasceu em meu coração; mas eu fui.
Ao sentarmos, abraçamo-nos e trocamos um beijo apaixonado; após alguns instantes, porém, admirei-me em ver que os seus dedos procuravam os meus botões, para abri-los.
— Custódio, o que você quer?
— Não tem ninguém por perto. Vamos!
— Custódio, eu não quero! — e na minha imaginação já me via com o abdômen crescido, enquanto meus pais atiravam-me à face a minha leviandade.
Mas ele não queria recuar e foi, gradativamente, tornando-se violento:
— Vamos logo! Todos fazem isso!
Meu chapéu de bruxa já caíra, ele se despojara rapidamente de sua capa negra, e agora forcejava para expor o meu peito; o passo seguinte seria baixar a minha saia. Eu custei um pouco a entender claramente que aquilo estava acontecendo, e comecei a resistir com mais vigor. Eu não queria. Os meus pais não aprovariam, eu era muito nova e, afinal, será que uma garota é obrigada a fazer sexo na via pública só porque o namorado ficou com vontade? Todo o machismo execrável de Custódio se revelou naquele momento.
Eu ofegava e refletia que, mais nova e mais fraca que ele, não conseguiria resistir. Uma tapona atordoante mostrou-me que ele perdera a paciência e queria me submeter de qualquer jeito. Foi nesse instante que um vento impetuoso surgiu do nada, como se o tempo houvesse subitamente mudado; as sinistras galhadas próximas começaram a sacudir e, enquanto lutávamos, folhas passaram voando loucamente. Até mesmo os arbustos de espada-de-São-Jorge, ali perto, perderam folhas com a impetuosidade do vento e uma delas acertou em cheio o pescoço de meu oponente, assustando-o e causando um feio lanho. Sentindo a pressão em meu corpo diminuir, ataquei com decisão e coragem, encaixando um tapa-olho fulminante. Ele recuou, severamente machucado, eu o empurrei para fora de mim e me levantei. Busquei apressadamente o meu chapéu e fugi, ainda escutando um impropério: — Não quero mais saber de você, sua vadia! — como se eu é que estivesse errada.
Afastei-me apressadamente daquele local lúgubre, pensando no trágico desfecho do meu primeiro namoro, mas pensando sobretudo na realização da profecia de minha bisavó. Estava tudo lá, naquele canhenho repleto de garatujas horríveis que ninguém conseguia ler, mas que, por alguma razão, eu lia fluentemente. Por conta disso somente eu sabia que minha bisa bruxa, Adelli, escrevera que somente haveria outra bruxa na família durante a minha geração, e seria a primogênita de mamãe, ou seja, eu mesma. Eu já sabia disso há anos, e sabia que os meus poderes iriam despertar numa noite de Halloween. Só não sabia em que ano. E por isso agora eu fugia apressada, menos com medo de Custódio que de mim mesma, do que eu pudesse lhe fazer. Sabia agora, eu era mais perigosa que ele.
Quando retornei à festa, disposta a ir logo para casa (qualquer pretexto serviria), o vento já havia acalmado.
imagem pinterest
ACONTECEU NO HALLOWEEN
Custódio estivera muito entusiasmado com a festa que ia se desenrolar nos anexos do colégio e pedira que eu comparecesse cedo. Mesmo assim, distraída em meu quarto, eu não queria me apressar, confiante em que a margem de tempo era suficiente. Estava lendo o velho e quase ilegível diário de minha bisavó Adelli, espécie de “herança maldita” da família que ninguém ligava mas ninguém tinha coragem de jogar fora, e que eu surrupiara há tempos do sótão para ler às escondidas. Aquele era um dia adequado, e eu ria intimamente pela referência ao “Dia do Saci” que encontrara na folhinha da Editora Vozes. Será, pensava eu, que o Jack Abóbora aceita partilhar seu dia com o Saci Pererê, pertencente a outro folclore?
Havia coisas escritas por Vovó Adelli que me preocupavam; efetivamente me deixavam muito preocupada. Não há nada melhor, porém, para deixar preocupações em segundo plano, que compromissos inadiáveis; joguei tudo aquilo para o porão de minha mente e me arrumei com uma roupa escura, ajeitei um chapéu de bruxa e, uma vez pronta, fui dar tchau para mamãe, papai e o mano caçula, e me dirigi ao colégio. Não foi difícil encontrar o Custódio, porque hoje em dia, com o celular, todo mundo pode encontrar com todo mundo. No íntimo, estou convencida que isso nem sempre é uma boa coisa.
Ele me recebeu em tom de amável censura: — Oi, Edlaine! Que bom te ver! Por que se atrasou?
— Meu amor, temos tantas horas pela frente!
— Ah, mas eu estou impaciente! — e pela maneira sequiosa como me beijou, senti mesmo uma impaciência incomum, e já cheirando um tanto a bebida. Decididamente um garoto de quinze anos, hoje em dia, já não era uma criança, e nem uma garota de quatorze como eu, embora, de minha parte, resistisse ao consumo de bebida alcoólica, que eu achava intragável.
Fomos de mãos dadas pelas mesas, pegando aleatoriamente doces e salgadinhos, aquelas misturas que acabam nos dando diarréia, eu orgulhosa de estar ao lado de meu Drácula — que era a sua fantasia — passando por tantos esqueletos, frankensteins e outros monstros. O grande baile seria bem mais tarde; tínhamos tempo à beça pela frente.
Hoje eu penso que deveria ter reparado mais no ardor dos olhos de Custódio, que pareciam arder com alguma estranha febre; Custódio, a quem os meus pais mal conheciam e mal se interessavam, mas que era o mais charmoso dos meus colegas. Charmoso sim, mas... até que ponto as garotas se lembram de conhecer realmente o íntimo dos seus namorados?
Nós batemos papo com vários colegas, participamos de fotos e filmagens coletivas, mas afinal, quase sem que eu percebesse, o garoto ia me conduzindo para fora da “região habitada”. Eufórica com a prolongada companhia do namorado — tão diferente da companhia dos familiares! — não notei nem desconfiei de nada, até me ver a sós com ele, junto a um galpão escuro e fechado, perto de árvores gigantescas que projetavam sombras descomunais no ambiente.
— O que viemos fazer aqui? — indaguei, meio espantada.
— Vamos sentar naquele banco.
Realmente havia um desconjuntado banco de ferro por ali, que a lua crescente não conseguia iluminar por causa da sombra das mangueiras. Sinistras corujas piavam, o cenário já parecia de filme de terror, e um germe de medo nasceu em meu coração; mas eu fui.
Ao sentarmos, abraçamo-nos e trocamos um beijo apaixonado; após alguns instantes, porém, admirei-me em ver que os seus dedos procuravam os meus botões, para abri-los.
— Custódio, o que você quer?
— Não tem ninguém por perto. Vamos!
— Custódio, eu não quero! — e na minha imaginação já me via com o abdômen crescido, enquanto meus pais atiravam-me à face a minha leviandade.
Mas ele não queria recuar e foi, gradativamente, tornando-se violento:
— Vamos logo! Todos fazem isso!
Meu chapéu de bruxa já caíra, ele se despojara rapidamente de sua capa negra, e agora forcejava para expor o meu peito; o passo seguinte seria baixar a minha saia. Eu custei um pouco a entender claramente que aquilo estava acontecendo, e comecei a resistir com mais vigor. Eu não queria. Os meus pais não aprovariam, eu era muito nova e, afinal, será que uma garota é obrigada a fazer sexo na via pública só porque o namorado ficou com vontade? Todo o machismo execrável de Custódio se revelou naquele momento.
Eu ofegava e refletia que, mais nova e mais fraca que ele, não conseguiria resistir. Uma tapona atordoante mostrou-me que ele perdera a paciência e queria me submeter de qualquer jeito. Foi nesse instante que um vento impetuoso surgiu do nada, como se o tempo houvesse subitamente mudado; as sinistras galhadas próximas começaram a sacudir e, enquanto lutávamos, folhas passaram voando loucamente. Até mesmo os arbustos de espada-de-São-Jorge, ali perto, perderam folhas com a impetuosidade do vento e uma delas acertou em cheio o pescoço de meu oponente, assustando-o e causando um feio lanho. Sentindo a pressão em meu corpo diminuir, ataquei com decisão e coragem, encaixando um tapa-olho fulminante. Ele recuou, severamente machucado, eu o empurrei para fora de mim e me levantei. Busquei apressadamente o meu chapéu e fugi, ainda escutando um impropério: — Não quero mais saber de você, sua vadia! — como se eu é que estivesse errada.
Afastei-me apressadamente daquele local lúgubre, pensando no trágico desfecho do meu primeiro namoro, mas pensando sobretudo na realização da profecia de minha bisavó. Estava tudo lá, naquele canhenho repleto de garatujas horríveis que ninguém conseguia ler, mas que, por alguma razão, eu lia fluentemente. Por conta disso somente eu sabia que minha bisa bruxa, Adelli, escrevera que somente haveria outra bruxa na família durante a minha geração, e seria a primogênita de mamãe, ou seja, eu mesma. Eu já sabia disso há anos, e sabia que os meus poderes iriam despertar numa noite de Halloween. Só não sabia em que ano. E por isso agora eu fugia apressada, menos com medo de Custódio que de mim mesma, do que eu pudesse lhe fazer. Sabia agora, eu era mais perigosa que ele.
Quando retornei à festa, disposta a ir logo para casa (qualquer pretexto serviria), o vento já havia acalmado.
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