CAVERNA LITERÁRIA
As injustiças, o preconceito e os desfavores da vida são esquecidos. As horas de labor, inicialmente uma obrigação, transformaram-se ao longo dos últimos vinte e cinco anos em duradouros instantes de prazer. Especialmente neste dia em que vivia um dos derradeiros instantes de sua carreira, não poderia deixar a tristeza dominar seu sentimento, agora traduzido em ligeira saudade.
Rose havia encontrado seu lugar de refúgio junto aos velhos amigos, que se colocavam todos os dias, de segunda à sexta-feira diante de seus olhos, esperançosos por uma atenção mais detalhada, por um afago, um carinho qualquer.
Sabia que poderia voltar ali quando quisesse, a qualquer hora. Mas isto não bastava. Sua ânsia tornava-a impulsiva. Entre um atendimento e outro , sempre encontrava tempo para vasculhar entre as relíquias, reler preciosidades, rever seus confidentes. Conhecia cada obra, cada pÁgina amarelada. Tudo era tão real. O passado fundia-se com o presente. O futuro a espreitava pelas fendas das estantes. Fantasia? Realidade? Já não sabia mais em que mundo vivia.
Aos poucos foi refletindo. Os pensamentos, como em turbilhão, assaltavam sua mente. Do alto da prateleira, Hamlet, numa crise existencial insuportável, motivado pela desesperança, sussurra, ganhando vida na pena habilidosa de Shakespeare, “Ser ou não ser, eis a questão!” no armário da frente, Don Quixote de la Mancha, em sua nobreza provinciana, assanha-se, pelas muitas leituras que fizera ao longo de sua vida e, num ardor incontrolável deixa-se levar pela emoção. Enquanto o pensamento aprisiona o perturbado príncipe, a ação empolga Don Quixote. Rose fica assim, meia anestesiada, em transe – os feitiços, encantamentos, predições de adivinhos, aparições de fantasmas e fadas, são desatinos humanos regulados pelas humores sobrenaturais, filosofa, consigo mesma.
Um pouco mais abaixo, estão seus poetas preferidos, perfilados como tropa em revista. Sugerem sonhos impossíveis, criticam o mundo, as guerras, a fome do Homem. Mário Quintana, Cecília Meirelles, Drummond de Andrade... um leve soluço é o único som audível. À esquerda ficam os romances, alguns tão ternos e puros, outros intempestivos. Um nacionalismo autêntico, figuras de índios, moças casadoiras, mancebos educados.
Companheiros não lhe faltam. Amigos a convidavam todos os dias para grandes saraus, nos mais luxuosos salões. Gente bonita enfeitavam aquelas festas. Como era bom sentir-se envolvida, amada, desejada. Vivera paixões arrebatadoras, inspirada nos grandes clássicos. Amara sim, mas odiara bastante também. Sentimentos antagônicos, antíteses da vida, Paradoxos indiscutíveis.
Lá fora, não tinha nada. Sozinha dominada pelo medo, insegura e desconfiada. Somente ali dentro sentia paz e sossego.
Entre suas divagações, lembra-se do ardor com que se atirara ao amor, ainda que platônico. Todos os dias acostumara-se a encontra-lo nos corredores apertados, espremido entre seus autores prediletos. Depois de todos estes anos, constata que ele talvez nunca soubesse de tal paixão. Ou pelo menos, fingia não perceber.
Perdera para sempre seus amigos, a literatura ficava para traz. Pensara até em seguir uma filosofia religiosa, somente para preencher o tempo, que agora teria de sobra. Enfim, precisava resolver sua vida, buscar o belo, justo e bom – atributos tão distintos e difíceis de encontrar. Passara sua vida na caverna. Vira somente as sombras se mexendo na parede, contorcidas, disformes. Sabia que lá fora a realidade seria outra. Carne, osso e muito sangue transformavam a matéria em gente, que vive, pensa, briga, chora e sorri.
Naquele dia, Mário não veio. Seria mais uma sobra de seu passado? Somente o tempo para apagar suas lembranças.
(Conto publicado na obra LONJURAS vol V, Santa Rosa - 2005)
Oséias Santos de Oliveira
Professor
Membro da ASES - Associação Santa-rosense de Escritores
Santa Rosa - RS
e-mail oseias.ol@uol.com.br