Redenção

Durante uma noite escura e tempestuosa, a mais fria das noites, um sonho antigo chegou à realidade. A filha de Lahlia nasceu. A garotinha trouxe consigo a única forma de vencer os dragões, segundo os sonhos de um sacerdote humano a filha nascida de um vislumbre da cidade das torres seria a salvação dos humanos. A notícia do nascimento de Ahli se espalhou como se tivesse sido carregada pelo vento. Os humanos se empenharam em protegê-la enquanto esperavam pelo momento em que ela mostraria seus dons e derrotaria os dragões. Mas este momento estava no futuro, os dons de Ahli apenas começavam a se manifestar. Impulsionados pelos dragões e cansados de esperar o momento em que Ahli os salvaria, os humanos voltaram-se contra ela e decidiram sacrificá-la, todos estavam convencidos de que ela era uma farsante.

Ahli possuía apenas 17 anos quando os Vigias dos homens invadiram sua casa. Ela foi assassinada por eles naquele mesmo dia. Em nenhum momento eles conseguiram perturbar sua paz Apesar da violência que usavam; ela não resistiu, já conhecia seu destino. Levada pelos que um dia a trataram como sua única esperança. Morta pelo seu próprio povo, teve sua vida arrancada pela estupidez.

Ela fora arrastada pelas ruas da cidade Penhasco, apedrejada e humilhada. Suas roupas estavam embebidas em sangue vivo, sua alma flutuava aos poucos para fora de seu corpo. Era uma visão decadente, as nuvens corriam como um rio para o topo do penhasco, para onde o cortejo de torturas se dirigia, e lá formaram um ninho cinzento, um diadema para coroar o sacrifício.

Ahli não ergueu mais o rosto, as mesmas mãos que há exatamente seis dias afugentaram um dragão apenas com seu toque, estavam acorrentadas a uma pedra do tamanho de uma criança. Ahli teve que puxá-la até o topo do penhasco. A subida foi dolorosa. Seu sofrimento emanava dor e morte, o ar cheirava a covardia. Aquilo era loucura.

Quando venceu o último degrau da interminável escada, os Vigias começaram um pronunciado, havia uma trilha de sangue unindo a cidade ao altar. O povo estava revoltado, gritavam ansiosos pelo sacrifício como se aguardassem o começo de um espetáculo, pensavam que o sonho não havia se realizado. Acusaram Lahlia de traição e a condenaram ao exílio e Ahli seria executada. Os três senhores do tempo assistiam a tudo, estavam sentados em seu jardim, no mesmo jardim, só que cada um há seu tempo. Os passos do universo são trilhados por ele mesmo, nem mesmo o tempo pode apontar o caminho certo para ele. Nenhum dos senhores queria receber aquilo em seu jardim, nem o presente e, muito menos, o passado. E o futuro estava louco para tirar o sacrifício de suas costas.

Os vermelhos olhos azuis fitaram pela última vez o povo que jurou defender, a força que um dia possuíram transformou-se em lágrimas, lamentava não poder mais ajudá-los. O corpo não possuía mais força, lhe restava apenas uma gota de vida, uma pequena lágrima de vida que ainda não chorara. Sua alma estava tão ferida quanto sua carne. O sonho foi transformado em pesadelo; e a hora de acordar se aproximava, faltava pouco para que tudo acabasse. Já assistira a aquilo tudo, em um sonho foi apresentada ao seu próprio sacrifício. Só que agora ela podia sentir o cheiro do sangue, sentia o fervor do ódio de seus algozes. O amor que sentiu em vida, pela sua mãe e pelas pessoas que um dia acreditaram em suas palavras, era a única força que a prendia aqui. Precisava se soltar, pássaros nascem para voar.

Dois Vigias, altos e de feições ferozes, começaram a empurrar a pedra, ela serviria como âncora para levar Ahli ao encontro da morte no mundo do mar. A pedra deslizava vagarosamente sobre o altar de granito escuro, ela caiu arrastando Ahli, seu último adeus. Nenhuma palavra, nenhum grito. Apenas o silêncio e as ondas. As nuvens dispersaram-se lentamente levando um pouco da tristeza e deixando o sol pálido tocar o altar imundo. Todos se aproximaram para ver a morte de sua esperança, viram o mar engoli-la e tomá-la para si.

O que há de especial nos sonhos? Por mais que se tornem reais, eles sempre serão sonhos e os homens nunca poderão tocá-los, sonhos são mágicos, são milagres. Um grande sonho tingiu o mar de arco-íris e uma tempestade violeta espalhou-se pelo céu, não havia mais azul. Algo no fundo do mar fez as ondas dançarem, saltarem e rodopiarem. O penhasco tremeu, as pedras cantavam, tremiam, um fremir metálico e amedrontado. Um monstro de inverno fulgente pisava com suas patas escorregadias sobre o mar alucinado. O vento que tocava em seu pêlo transformava-se em nevasca, o sol se tornou lua, uma jóia de cristal frio. O olhar da besta gélida congelou o pânico dos homens. Eles não tinham para onde correr, estavam diante da fúria do mundo. Afinal, eles haviam tentado matar um sonho.

Os dragões estavam à espreita, vendo de camarote a autodestruição dos humanos. Foram eles que plantaram a semente da desconfiança entre os homens, eram eles que estavam por trás dos Vigias. Mas o plano falhara. O monstro soprou uma fumaça de neve negra sobre o mundo. Pequenas agulhas contaminavam o ar, doença.

O vento venenoso corroia a carne dos dragões. Mesmo depois de morta, Ahli conseguiu salvar os humanos, seu desejo se realizou. A doença soprada pelo monstro do mar afetava somente aos dragões. Ela era fatal. Destruía suas almas até degenerar todo o seu corpo, os dragões estavam condenados. Eles tentaram se esconder, mas o Alísio estava em toda parte, como se tivesse sido incorporado pelo próprio planeta.

Fillipe Evangelista
Enviado por Fillipe Evangelista em 07/04/2007
Reeditado em 27/07/2009
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