Sacrilégios

-Espero que vossa santidade esteja bem servido. –Disse o bispo, sempre de cabeça baixa.

-Quem?

-o senhor!

-Ó sim...não me acostumei ainda com a idéia de ser papa, e parece-me que vai demorar para me acostumar a ser chamado de vossa Santidade. –Arrumou o solidéu.

-É, sei como deve ser. - Olhou para a janela do quarto, aberta, com as cortinas brancas esvoaçando com o vento que entrava avassalados.

-Parece que vai esfriar de hoje para manhã, anunciou o papa.

-É.

-Entre para...não sei, tomar um chá?

-Não, muito obrigado vossa santidade, tenho ordens de trazê-lo ao quarto e só, depois tenho de retornar para a sistina, tenho de orientar algumas reformas que estão acontecendo.

-Diga aos homens para tomarem cuidado com o teto! –Exclamou o pontífice, apontando para cima, mas com um sorriso no rosto que não negava sua simplicidade -Pode deixar, eu digo à eles. – Saiu e fechou a porta.

O homem dentro do quarto olhou em seu redor: Um piano de cauda muito velho, com as teclas amareladas. Sentou-se no instrumento, encarou-o. Correu os dedos pelo teclado com delicadeza, esbarrou em um fá que soou como um golpe numa corda sibilante de vilão.

-Desafinado. –Por mais que não entendesse de pianos, sabia que aquele não era o som natural da criatura.

Levantou-se e ficou no centro do quarto, observando a cortina branca esvoaçante. Em cima da cama, o livro sagrado, ali, resoluto, com uma página aberta. Achou que ali pudesse ter alguma mensagem escrita do papa anterior. Foi até a cama lentamente, segurou um dos lados do livro enorme e o fechou com um só golpe, fazendo-o cuspir uma golfada de poeira. Percebeu que ao lado da cama, jazia uma imagem de nossa senhora com adornos de ouro. Fechou os olhos e negou com a cabeça, não a imagem, mas sim a profanação da imaculada jura de pobreza, a adoração ao brilho, ao luxo. Foi até a janela e ali ficou observando as pessoas que passavam. Suspirou.

“Acha que vai mudar alguma coisa aqui dentro?”, o papa virou-se para dentro do aposento, correu-lhe todo com os olhos.

-Olá. Quem está aí?

Apenas o vento respondia com sua mãos leves rebatendo as cortinas. Voltou-se para janela, ficou a observar um casal que se beijava, achou a cena linda. “Acha que pode mudar alguma coisa, mas não pode. Você pode tentar, mais nada irá mudar o passado sujo de sangue e agruras que pairam por esse lugar”, não interpelou o dono da voz, ficou calado, olhando serenamente para frente. “Cada coisa desse lugar, desde o piso da cozinha ao chão da capela sistina estão sujos, manchados pelos pensamentos e verdades escondidas nas entrelinhas do dia a dia desse estado tão diminuto”. Uma rajada de vento fez o piano ressonar, como se alguém passasse a mãos nas cordas, fazendo o pontífice arrepiar da cabeça aos pés.

-Quem está aí? Por favor, diga-me, talvez eu possa ajudá-lo.

-Ninguém pode ajudar, ninguém. –Disse a voz, que parecia ser de qualquer coisa, de um brinquedo velho sem pilhas ou de um fole velho de órgão com asma, só não parecia ser humana, ecoando de todos os vértices do quarto. O papa olha para cima, vê a pintura no quarto, cenas que retratam sofrimento de pecadores e triunfo dos que tem fé. O Piano começou a ser dedilhado.

-Eu conheço está música, disse o papa.

E realmente era algo conhecido, um noturno de Chopin. Por mais sobrenatural que pareceu o momento, o pontífice sentou-se na cama e ficou a sentir a música, com seus arpejos menores que poderiam ser tocados no inferno sem que se percebesse o calor. Lembrou-se da vida anterior, nada de especial, nada de claustro, os mesmos vizinhos que cumprimentava há vários anos, lembrou-se do primeiro amor mais mudou de pensamentos logo, refletiu nos motivos para que lho escolhessem para novo papa, uma vez que só faz o que qualquer ser humano com vontade de fazer o bem faria, e é aí que sua mente tocou no ponto chave, uma vez que hoje, ninguém sente mais o chamado para o bem, todos pensam nos bens a conquistar, na riqueza, no luxo, por isso pessoas com essa vontade de fazer o bem estão escassas, não que elas não existam, som que elas não fazem como deveria ser feito, fazem o que acha que deve ser feito. O piano silenciou. O papa levantou-se e foi até a porta, porém antes de abri-la, olhou para a maçaneta, o objeto de ouro que muitos outros papas tocaram.

-Será que nenhum deles contestou essa sede de ouro desta instituição? Será que nenhum deles, por algum momento se deu conta de que esta instituição é filantrópica, como pode Senhor... – Gesticulando para o teto- uma instituição grandiosa como essa fazer de tanta usura? –Foi até a janela, tentou encontrar o casal de antes, não os encontrou.

-Tanta gente precisando neste mundo de algo para comer, algo para beber e não tem. –Cerrou os pulsos e os bateu com força.

-Tanta criança precisando freqüentar a escola, comer para ter forças para sobreviver, mas não...-Voltou-se para o quarto-...isso é centenas de vezes mais importante, ouro e muito luxo.

Uma pombinha pousou em um dos enormes minaretes da cama. O papa sorriu ao vê-la.

-Você é testemunha da minha indignação. –Tornou a olhar para fora.

-Pessoas morrem de fome, pessoas matando umas às outras, e este palácio aqui, sobrevivendo imponente, em meio às afrontas da vida real. Nada na vida é como neste conto de fadas! –Gritou.

Bateram à porta.

-Senhor, precisa de algo? – Disse uma voz de mulher idosa.

-Não! –Gritou novamente.

“Mas você pode...tentar” , disse por fim a voz.

Bego
Enviado por Bego em 27/07/2013
Código do texto: T4407605
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