Assombrações

                                                   A vida parece brincar com a gente.
                                                            Muitas vezes, com mau gosto!
                                                            Apesar de tudo, amo a vida.
                                                            E brinco com ela também,

                                                 mas sempre de bom gosto!
                                               ( o pensamento é meu, mesmo)                                                   
                                                 
                                                                                              

                        Em razão dos nossos medos, perpetuamos a ignorância, proliferando as lendas, as crendices. Essa foi a lição que o Godofredo aprendeu do experimentado médico urologista.
                        -  Meu amigo, por causa do medo você fica assombrado com possíveis problemas da sua próstata. Mas você verá que o bicho não é tão feio quanto parece. Não vou enganá-lo como fez o médico do navio fantasma.
                        E o médico deu detalhada explicação sobre a próstata. Em seguida, falou rápido: - “Agora que você já sabe tudo sobre a próstata, vamos à dedada”
                        Em meio minuto, tudo consumado e o doutor fala novamente: - “Se quiser urinar pode ir no vaso”.
                        O Godofredo foi. Quem disse que saiu a urina?  Nem com reza forte. Depois da dedada, secou tudo, parecia que o Godô não iria urinar nunca mais, logo ele que estava urinando toda hora.
                        Desistiu e sentou-se frente ao médico, que disse estar tudo bem, mas gostaria de contar a história do navio fantasma, um conto do Moacyr Scliar. Iria contar, para demonstrar que o medo faz as pessoas fugirem do assunto temido e inventarem  maluquices. E a estória do Moacyr vinha mesmo a calhar. Ele  havia  praticamente decorado o texto, com pequenas alterações, em razão da memória. Gostava de contar para seus clientes medrosos. Afinal, o tema do conto está muito próximo da especialidade dele.   O Godô percebeu que o médico, bem competente, por sinal, era um tremendo gozador. Tanto que, antes de narrar sobre o navio fantasma,  já lhe desejara  feliz natal, próspero ano novo e que voltasse só depois da quaresma.  A consulta foi em junho.
                        O leitor agora tomará conhecimento da estória, talvez estarrecido, ou, quem sabe, melhor esclarecido sobre nossos demônios particulares. O conto tem essa vantagem, realmente nos instrui. E o nosso Moacyr Scliar foi um mestre nos contos.
                        Esse navio fantasma, diz o médico, só navegava em meio a intenso nevoeiro. E as tarefas dos marinheiros era executada no maior silêncio. O trabalho era só içar ou recolher velas, conforme o vento soprava. Caso alguém se sentisse mal, havia um médico, que recebia o doente em seu pequenino camarote. O médico acabava sendo também psicólogo, já que  vez ou outra um marinheiro apresentava problemas emocionais ou sonhava com algo esquisito. Foi o que aconteceu com um marinheiro. Estava tendo sonhos esquisitos.  Vejamos o diálogo:
                        -“ o que há, meu rapaz - pergunta o médico
                        - tive um sonho estranho.
                        - pois conta.
                        Embora hesitante, o marinheiro contou.
                        - sonhei com um pênis. Pênis e vagina.
                        O médico franze a testa.
                        - Assim,  é? Pênis e Vagina?
                        - É
                        - Interessante... Pênis e vagina. Interessante.
                        Depois de uma pausa.
                        - Me conta, nesse seu sonho o pênis entrava na vagina?
                        - Ah, sim. Entrava, sim. Entrava e saía, entrava e saía.
                        - Só isso? – ele pergunta.
                        - Só isso. Só isso, sim senhor
                        - Ah! – sorri. Não se preocupe, isso é muito comum entre os marinheiros do nosso barco. O pênis simboliza o navio ancestral, que serviu de modelo para todos os navios fantasmas.
                        - Interessante, e a vagina, pergunta o marinheiro. Sorri de novo
                        - a vagina, seu maroto. Sim, a vagina. Me diz uma coisa, por acaso via nos teus sonhos o púbis?
                        - sim.
                        - os pelos do púbis?
                        - sim
                        - eram pelos loiros, sobre uma pele rósea, macia?
                        - sim, pelos loiros, pele macia! Sim!
                        Quase chora, mas se aguenta.
                        - Mas está tudo certo – ele diz. Não vês? A vagina simboliza a névoa na qual navegamos. No fundo, o que tu queres é voltar para o navio ancestral. Mas não te perturbes. Não é raro isso entre os marujos.
                        Levanta-se. E o marujo também se levanta.
                        - Anda, volta para o teu trabalho.
                        Pisca o olho. Vou te autorizar mais um copo de vinho ao jantar,  não terás mais estes sonhos. Agora vai.
                        À porta, volta-se o marujo.
                        - Doutor – está quase gritando – doutor é verdade que existem ilhas, árvores frutíferas? É verdade que existem mulheres?
                          Com o olhar fixo.
                        - Não, filho. Tudo isso é lenda. Isso tudo é sonho, fantasia. Agora volta para o teu trabalho, que o vento já está soprando.
                        Abre a porta. Segura o braço do marujo.
                        E  diz em tom ríspido- não escreve nada. Não coloca mensagem alguma em garrafa, ouviste? É para teu próprio bem.
                        Murmura um  agradecimento e sai, o marinheiro.  E fica estático junto à porta.
                        - como é que ele adivinhou? Como é que ele sabe que já tenho escondido debaixo do travesseiro, o toco de lápis, o pedaço de papel – e a garrafa?
                        Godofredo sai radiante do consultório, feliz por não ter nada. Agora, mais sábio, enfrentando a vida como ela é,  graças à competência e  cultura do seu médico, que gostava de brincar dizendo a verdade. 


Nota:  Recomendo vivamente a leitura dos contos do escritor Moacyr Scliar, que foi da Academia Brasileira de Letras. Lê-lo é altamente inspirador.  O escritor nos conta que no início da sua carreira de contista ele corria atrás dos livros, buscando inspiração. Depois, eram os livros que corriam atrás dele (autores novatos enviando livros para ele).   Um autor fantástico e que deveria ser mais festejado por nós brasileiros. Gdantas