O cãozinho, talvez, poodle
«Me desculpem pelos erros. Creio que cometi muitos na utilização dos travessões. Mas estou disposto a aprender como usa-los corretamente. Obrigado. E, por favor, digam o que acharam do conto...»
Não quero forçar-te a acreditar no que irei contar – talvez, por se tratar de uma mera história, crer não seria a consideração mais racional, penso. – Contudo, caso queira aceitar como, ao menos, razoável o teor desse conto, sinta-se um legítimo louco – mas saiba que as melhores pessoas são assim, já dizia uma menina Alice. –, pois poucos são os que crêem nas palavras insólitas de um homem fantasioso.
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Em meados de agosto, por motivos evidentes, tão à mostra que qualquer par de olhos que visse o problema não demoraria em formar uma opinião coerente em relação ao que deveria ser feito, chamei um já conhecido operário da construção civil para que revelasse a causa e desse também a solução, principalmente a solução, para o caos das grandes rachaduras das paredes da minha casa, que pareciam a representação de algumas tantas veias do corpo humano. E, claro, também por necessidade, disse para reparar o que é que tivesse de ser reparado.
Seguindo.
Já além do terceiro dia de serviço, não me recordo bem qual era, talvez o quinto ou sexto, depois de uns tantos a contagem já se torna dispensável, só se espera o fim, descobri que a integridade mental do meu amigo da construção já estava um tanto duvidosa, ou, talvez, a minha era que estava coberta da mediocridade das raças céticas. – Sem ofensas!
Naquela manhã, devido um mísero portão aberto, deixado para a passagem contínua do operário, recebemos a visita de um cão, um pequeno cão branco, sujo de terra vermelha. A princípio a presença daquele animal não me incitou a absolutamente nada. Era tão pequeno…Não representava nenhuma ameaça…E de fato eu não tenho aversão aos cães, exceto os que podem matar, claro. Mas esse não era o caso. O pequeno apenas entrou e se instalou na sombra projetada pela cadeira de balanço, que naquela ocasião estava na área da frente. O animal estava tão sujo que quando entrou parecia andar pesadamente, como se carregasse uma carga, mas mesmo naquela circunstância era o mais belo ornamento que alegrava a paisagem cimentada da varanda.
Mirei o animal por alguns segundos, e ainda o fazendo, pude ver de soslaio outro par de olhos fixado no cão. Então ouvi:
– Tem alguma opinião sobre a raça?
– Não. Sou um legítimo ignorante nesse assunto. – Respondi.
– É tão peludo…Será um poodle?
– Não tenho a menor ideia.
Seguimos com mais algumas perguntas e respostas sobre cães e então ele resolveu contar-me algo. Nesse momento já havia abandonado a obra e estava de pé, ao meu lado, ainda olhando o cão.
– Dizem que os cachorros são muito inteligentes. E são mesmo. – Esfregou uma mão na outra, retirando pelo atrito o que podia ser retirado do cimento já ressequido. – Há um tempo comprei um capa preta, bonito que só ele, e hoje está desse tamanho. – Posicionou a mão aberta acima do joelho, formando uma altura considerável para um rottweiler. – Custoso não, só daquele tanto. Mas é muito inteligente.
Sorri. E ele prosseguiu.
– Toda vez que eu saio de casa e deixo roupa estendida no varal, quando chego encontro o carimbo das patas sujas do Capeta. – Sim, Capeta. Era demasiadamente atentado, o cão do amigo. Mas, seguindo. – Não sabia como ele conseguia deixar aquelas marcas, até que um dia eu descobri. – Sorriu, olhando disfarçadamente para o céu. – Certa vez fui ao mercado, nem me lembro o que fui comprar…mas não era muita coisa, não iria demorar muito…Ah, sim, me lembrei. Canela. Descobri que é bom para a garganta. – Pigarreou e retomou o assunto. – Quando voltei, pensei em flagrar a traquinagem do Capeta, se ainda não a tivesse feito. E não havia. Estacionei o carro em frente a casa e sai, mas não abri o portão de imediato. Rapaz! Você não vai acreditar. – Meneou a cabeça negativamente. – Quando olhei pelo pequeno espaço da fechadura, vi o Capeta sair correndo de dentro do seu cercado com uma camisa vermelha na boca. E quando chegou em frente o varal levantou-se…isso mesmo, ficou de pé, e com as patas da frente estendeu a camisa. E depois ainda prendeu-a com dois prendedores. Você acredita em uma coisa dessa? Eu vi com meus próprios olhos…Era assim que ele deixava as marcas das patas. E acredito que quando ouvia o ruído do carro, já corria para estender a roupa novamente…É muito inteligente, esse animal…
Eu não soube o que falar. – Você saberia? – Então ele prosseguiu. Ele, sim, tinha o que dizer.
– Mas isso não é nada. Você precisa ver o que aconteceu…já deve está completando quatro meses, ou um pouco mais. – Disse, fazendo umas expressões bizarras de quem se esforça para lembrar algo. – Eu estava saindo de casa, ia fazer um serviço para um amigo, quando percebi que no painel do carro a luz do radiador estava acesa e piscando. Desci e corri até a torneira e enchi um litro com água. De uns tempos para cá meu carro está esquentando muito. Tenho que levar em algum lugar para ver isso…Mas voltando. Quando já estava quase entornando a água, ouvi o telefone tocar. Deixei o litro sobre o motor e corri para dentro da casa. Nem me lembro mais quem era no telefone. E quando voltei…você nem imagina. Você acredita que o Capeta, o meu rottweiler, estava colocando a água para mim? – Formou uma expressão de indignação no rosto. – Rapaz, ele apronta cada uma…Uma vez encontrei ele calçado com um par de botinas minha e fingindo que era eu. Pode uma coisa dessa? Estava até manquejando de uma perna, imitando esse meu coxear da direita. – Riu. – Ele é muito inteligente, você nem imagina o tanto. Se eu for contar-te todas as suas artes, ficaríamos o dia todo…
E nessa circunstância eu apenas ri. Foi a única coisa que consegui fazer: acompanha-lo em suas gargalhadas. Mas de certo é que também sobrou um pequeno espaço para um pouco de dúvida. Alias, de certeza! Claro que ele não havia dito a verdade. Mas àquela altura não mais me importava. Ele já havia contado, e de fato aquela história tinha divertido-me. Isso valia a fantasia. Valia muito.
Depois de uma pausa nas risadas e no assunto, inventei uma desculpa qualquer e caminhei em sentido ao fundo da casa. Mas antes que completasse o percurso, olhei para trás, lembrando-me do portão aberto. Aquele grande vão agora me incomodava. Talvez não mais seria preciso deixa-lo assim, servindo de entrada para qualquer um que se aventurasse.
– Você ainda vai precisar que o portão fique aberto? – Perguntei.
– Não, não, já busquei o necessário de areia para hoje.
– Então posso fecha-lo? Com isso aproveito e levo o cachorro para fora…
– Sim, claro, mas pode deixar que eu o fecho. – Se levantou.
Quando não somos bem-vindos em um lugar, sentimos isso perfeitamente. Mas não é que eu não queria que o pequeno poodle, se é que o era, saísse, eu apenas não queria alcançar a responsabilidade sobre ele. À primeira vista tinha até me afeiçoado com o "sujinho", seu possível nome, mas não podia adotar um cachorro. E talvez ele já havia percebido. Ele quem? O cãozinho, talvez, poodle.
Antes que o operário atravessasse a área da frente, o cãozinho esgueirou-se de debaixo da cadeira e correu até a saída. – Você nem imagina! –...Você acredita que aquele pequeno cão ficou de pé, pôs-se do lado de fora, olhou em meus olhos, fez uma expressão de tamanha tristeza e logo depois fechou o portão com as patas dianteiras?
Creio que para você minha integridade mental também já está um tanto duvidosa, não? Mas fique sabendo que, pelo menos a minha parte, é tudo verdade. Os cães são, indubitavelmente, inteligentes.