Cereza

- Por que cê decidiu fazer isso?

Cereza parou de mordiscar a carne seca e olhou para o senhor que conduzia a carroça. Piscou tentando compreender a pergunta.

- huh? - respondeu confusa.

O velho sorriu mostrando os dentes podres.

- Por que decidiu fazer isso? Digo, cê é uma garotinha bonita, podia tá na capital procurando por um bom marido pra casar.

- Eu não sou assim. – respondeu firmemente. – Essa não é a vida que desejo levar. Não quero me casar.

O velho ficou surpreso com a frase, mas não respondeu. Voltou seu rosto para frente e se concentrou em levar a carroça em segurança. Estavam num caminho cheio de pedras e areia ao pé da Montanha da Águia, muitas carroças e até cavaleiros escorregavam e se viam arrastados para a terrível floresta negra, que cercava a montanha.

- Desculpe, senhor. – pediu. Abaixou os olhos e tocou no feno em que estava sentada. – O senhor tem sido muito bondoso comigo e eu retribuo com palavras ásperas.

O velho respondeu, ainda olhando para frente:

- Desculpe, é que uma menininha como você, fazendo esse trabalho, ahhh, mas eu não consegui ficar calado, sabe? Essa gente me dá raiva! Esse lugar é muito perigoso. – se prolongou no “i” – Essa floresta tem cada coisa esquisita! Já vi mulheres nuas saindo dali, sabia? Nuas como no dia em que nasceram. Pouca vergonha! Já vi cavaleiros grandes, varões bravos, se encolhendo no menor movimento das árvores. Sabia? Eu ri muito nesse dia, menina. Quem diria, os nobres, com grandes espadas, covardes como um cachorro! – e ria sem parar ao lembrar-se do passado.

A discussão foi esquecida enquanto o velho continuava com suas histórias sobre como outros temiam aquela parte da travessia e Cereza escutava tudo, atenta e interessada, ainda mastigando o resto de carne seca.Logo, a interseção chegou. A estrada, que rodeava a montanha, se separava, um lado seguia direto para uma vila, e a outra se dirigia a floresta. O velho iria para a vila e Cereza, para a floresta.

- Tem certeza, menina? – indagou o homem – eu te levo até a vila e lá a gente dá um jeito de achar alguém para ajudar você.

A menina sorriu agradecia, mas recusou.

- É o meu trabalho, senhor.

O velho prosseguiu com sua carroça e a garota foi andando pela estrada. Acharia uma clareira para passar a noite, depois caçaria e descansaria, assim, no dia seguinte, podia prosseguir tranquilamente. Se tudo desse certo, ela esperava que sim, chegaria ao seu destino no começo da noite seguinte.

Enquanto andava, as palavras do senhor não saiam de sua mente. Ora, ele estava certo, aquele serviço era praticado por homens, ela era provavelmente a única exceção até agora.

Cereza era uma mensageira. Ela entregava as mensagens dos magos da Cidade Branca ao redor do mundo, iam até sereias, outros magos, curandeiros, prefeitos, e até mesmo ao conselheiro real! Era uma profissão exercida, normalmente, por aprendizes. Um bom aprendizado, costumavam dizer, tem que trazer experiência e era isso que os mensageiros colhiam de todo o esforço para chegar aos seus destinos.

Eles tinham que treinar combate para evitar ladrões e afins, então o uso de magia ofensiva era intenso; tinham também que exercitar sua predição do clima e a aprender a se localizar pelo vento; eles aprendiam a dar importância às árvores e a ouvir seus conselhos, além de dependerem bastante das pessoas, que assim como o velho senhor, os ajudavam no decorrer das aventuras difíceis.

Os Magos da Cidade Branca eram grandes sábios, mas conservadores. Mulheres não eram permitidas na escola de Magia, exceto na área de cura ou predição, mas Cereza não servia para nenhuma das artes. Ela era ativa, uma típica maga elementar que tinha grande interesse por necromancia, a arte dos mortos e invocação. Esses últimos interesses, desconhecidos pelo Conselho Branco, claro. Como era uma maga sem talento para as artes da cura, além de ser uma destruidora natural, os magos do Conselho Branco abriram uma exceção para ela como aprendiz junto aos garotos e lhe deram o cargo de mensageira, na esperança de uma desistência. Se ela falhasse numa missão, perderia o cargo, era simples, mas Cereza era muito boa e até então, jamais falhara.

A Floresta dos Perdidos, como era chamada, ia ficando mais escura à medida que Cereza a penetrava. Parou e estendeu a palma da mão.

- Invoco Ignis. – cinco esferas de fogos saíram de sua palma e a rodearam formando quase um escudo.

E assim, ela prosseguiu. Queria percorrer o máximo possível antes de se deixar descansar. Estava tão cansada, que duvidava ter a força suficiente para caçar. Talvez devesse comer o resto do pão e dormir, no dia seguinte colheria algumas frutas e tentaria sair da Floresta o mais rápido possível.

Ouviu gritos furiosos e galopes.

- Centauros. – murmurou para si mesma.

Desistiu de clareira e ficou atenta. Logo após o pôr-do-sol, subiria numa árvore e dormiria algumas horas num galho. Centauros eram perigosos demais para se arriscar. Ela era uma maga poderosa, mas centauros, além de sempre andarem em grandes grupos, eram do tipo de criatura que guarda rancor e a vida era uma sequência triste de eventos, chegaria uma hora em que talvez ela precisaria do auxílio dos guerreiros de quatro patas.Além do mais, o que uma aprendiz poderia fazer contra um grupo furioso de guerreiros bem treinados?

O sol se pôs e ela subiu num orvalho. A noite foi terrível com galopes o tempo inteiro e mais gritos. Seu sono foi perturbado e inquieto. Antes de o sol nascer, novamente ela já estava prosseguindo viagem. Achara alguns arbustos com pequenas frutas e depois de se deliciar por alguns minutos, e de colher algumas para mais tarde. Ela continuou. Parava, olhava o mapa e prosseguia. Os galopes tinham diminuído, mas ela se manteve alerta e procurava evitar lugares com sons suspeitos.

O sol se punha novamente quando ela saiu da floresta e avistou a pequena vila. A Lua Crescente, nome pelo qual a vila era conhecida, tinha se erguido no meio da Floresta dos Perdidos, cercados de árvores, centauros ao norte, orcs ao sul, bárbaros a leste e ladrões a oeste. A pequena vila deveria ter sido destruída há séculos, mas seus habitantes, velhos magos e elfos, a tinham protegido.

Chegara à vila a noite e antes de procurar uma pousada ou um restaurante, foi direto a prefeitura. Precisava entregar a mensagem urgentemente. Era essa a ordem: “Ao chegar à cidade, procure seu destino imediatamente.”

- “Devo parecer uma mendiga.” – pensou divertida.

Usava uma calça marrom até o meio da canela, uma bota preta de cano longo até o joelho. A blusa branca e manchada estava coberta por um manto marrom sujo de barro e com alguns rasgos, frutos de dias

chuvosos e ataques de ladrões.

- Uma mensageira? – indagou um senhor parando-a.

O velho de barba e cabelos muito brancos, meio corcunda e apoiado numa bengala de madeira a olhou com certa curiosidade.

- Sim, senhor. – respondeu com o semblante sério. – Sou Cereza, mensageira dos Magos da Cidade Branca.

- Procura por quem?

- Uma mulher. – gravara o nome da mulher durante os dois meses de viagem até aquele lugar – chamada Sharley.

- Sharley? Do Conselho Ancião?

Ela assentiu. O velho disse que a levaria e os dois, bem lentamente, se dirigiram para o velho gabinete da prefeitura. O velho tentou puxar conversa perguntando sobre a viagem e como estavam as coisas na capital Branca, ela respondeu com poucas palavras e só desejava uma cama quente e um bom prato de comida.A pequena vila era construída com muita madeira e pedras, casas simples com pequenos jardins. As ruas eram feitas de madeira e se fosse do agrado, era possível andar na grama, que limpa, coloria a vila de um jeito único.

Por fim, o gabinete surgiu. Cereza agradeceu aos deuses por não ser uma vila grande como a capital Branca era. O velho entrou primeiro e ela o seguiu. A prefeitura não era diferente das outras casas, salvo pelo tamanho, era construída de madeira e se não fosse pela placa no lado de fora, Cereza teria problemas a distinguindo de uma casa qualquer.

A prefeita, Sharley, já a estava esperando, seus curtos cabelos ruivos balançavam à medida que ela falava e Cereza só se concentrava nos olhos castanho-escuros que parecia escurecer mais à medida que ia lendo a mensagem dos Magos Brancos. Cereza estava cansada e com calor, muito calor. O interessante era que a pele morena da prefeita parecia emitir um brilho...

- “Eu estou mais cansada do que imaginei.” – bocejou e a conversa na sala cessou. Todos a olharam.

- Ah, Cereza, me desculpe, acabamos nos distraindo. – disse Sharley se voltando para a garota de cabelos negros que tentava não adormecer sentada na cadeira. – Daihou. – chamou um de seus empregados. O rapaz de sorriso simpático e cabelos loiros pareceu surpreso por ter sido chamado. – Leve Cereza para cima, apresente-a a um quarto, prepare um banho e depois leve o jantar para ela. A aprendiz fez por merecer.

Cereza sorriu com as forças que lhe restavam e sem reclamar, seguiu o empregado. A discussão na sala principal continuou.

- Os Magos Brancos falam de uma guerra. Os centauros estão ansiosos e se preparam pressentindo problemas. Os orcs estão se organizando e bem sabemos que eles só vivem juntos em caso de urgência extrema e nem começo a falar da atividade suspeita dos Bárbaros. Temos que nos preparar também.

- Somos neutros. – disse o velho que guiara Cereza até lá. – Não tomaremos partido. Nem o bom, nem o ruim.

Os outros concordaram, mas Sharley achava que essa postura neutra tinha se estendido por tempo o suficiente. Se uma guerra eclodisse, eles tinham que ter aliados.

- Está tarde. – sentenciou a prefeita. – Conversaremos sobre isso amanhã.

Tinha sido eleita apenas por que seu avô, o antigo prefeito, a indicara para o cargo. Ela sabia, bem no fundo, que a maioria do Conselho não a escutaria.

- E a garota? A mestiça? – perguntou alguém. Sharley não teve vontade de saber quem era.

- Ela é a mensageira. Irá descansar e partir. No futuro, ela terá que escolher entre ficar do lado dos Magos Brancos ou das Bruxas. – respondeu o velho.

Sharley suspirou e voltou seu olhar para a escada onde Cereza e Daihou tinham se dirigido. Temia pela garota, mas seu silêncio deveria ser mantido... Pelo bem de sua profecia.

- Uma coisa de cada vez, senhores. Ainda é cedo. A guerra será outra história, por agora só precisamos saber que ela foi leal às suas ordens e cumpriu com seu objetivo.

Mas a guerra, logo, eclodiria. Qual lado era o certo e qual era o errado, não era conveniente decidir, mas eram lados opostos que defendiam ideais diferentes. E no meio de tudo isso, estava Cereza, a garota excepcional, mestiça, com longos cabelos negros e olhos cinza, que no momento dormia pacificamente numa confortável cama, alheia às conspirações do destino.

I Ferreira
Enviado por I Ferreira em 10/07/2013
Código do texto: T4380822
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