Cantiga noturna
"(..)
Que venhas lá do céu ou do inferno, que importa,
Beleza! Ó monstro ingênuo, gigantesco e horrendo! Se teu olhar, teu riso, teus pés me abrem a porta
De um infinito que amo e que jamais desvendo?
De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,
Que importa, se é quem fazes - fada de olhos suaves,
Ó rainha de luz, perfume e ritmo cheia! -
Mais humano o universo e as horas menos graves?"
(Hino à beleza - Charles Baudelaire)
Não sei dizer há quanto tempo eu encarava aqueles olhos. A frieza deles aprisionava minha alma mortal, me enclausurava e não me dava chances de escape. Tudo acontecera há algum tempo – horas? Minutos? – enquanto eu caminhava na praia. O vaievem das ondas me revigorava, o vento gelado me trazia paz de espírito. Eis que no meio das algas trazidas pela maré, avistei algo diferente. No início pensei ser algum filhote de golfinho encalhado. Aproximei-me e para o meu espanto, o que vi foi uma mulher. Mas não apenas uma mulher, era também um peixe.
Agora a luz da lua fazia as escamas de sua cauda vibrarem num prata incandescente. O vento assoprava uma música em meus ouvidos, uma valsa. Eis que ela começou a cantar. Ah, mas que bela melodia! Que voz perfeita ela possuía! Enquanto isso, seus olhos brilhavam num vermelho sangue – lembrou-me rosas num jardim de primavera – sua cauda iluminava a noite eterna e fazia-me gelar.
Gelava tal qual o oceano. Meu corpo se entregou numa dança de vaievem, e a sereia me tocava as bochechas e o peito. Eu precisava de amor, eu precisava respirar essa dose de vida que finalmente era-me entregue.
Inspirei. Meu pulmão encheu-se da mais salgada água do mar. Ela puxava-me cada vez mais para baixo e para dentro do oceano. Minhas forças haviam sido tomadas, uma dor infernal tomou conta de mim. O mundo tornou-se turvo e escuro e a sereia prestou-me um último sinal de afeto: um beijo de boa noite.