A MÃE-D'ÁGUA - José de Alencar (1829-1877)
Descendo da cabana pela vereda tortuosa que serpejava entre as pedras, achava-se um pequeno lago, alimentado pelas águas do rio. As margens cobertas de plantas aquáticas eram cingidas pelos alcantis do rochedo que derramavam sobre as águas profundas uma sombra espessa. À superfície do lago lastravam as ninfeias abrindo os brilhantes cálices brancos e azuis e escarlates. O hálito da brisa frisava o achamalotando, o azul das águas, que pareciam ter como as vagas do mar um fluxo e refluxo, porém muito mais brando. Descendo-se da cabana pela vereda tortuosa que serpejava entre as pedras, Junto ao rochedo onde estava a cabana, em um seio que formava o lago, a água parecia adormecida e completamente imóvel. Aí o sopro da aragem embaciava o espelho sempre liso e brilhante; apenas, a não ser ilusão da vista, percebia-se uma leve ondulação concêntrica. A extrema velocidade desse movimento esférico era justamente o que produzia a ilusão. Quem não observasse o fenômeno com bastante atenção, afirmaria sem dúvida que ali era, não o eixo do turbilhão, mas o remanso das águas, o seu regaço, onde vinham adormecer as ondinhas da margem. Às vezes a face do lago se arredondava suavemente, e abria uma covinha mimosa, semelhante à que forma o sorriso no rosto de uma moça bonita. Mísero de quem, descuidoso, prendesse os olhos às caricias que borbulhavam ali. A onda, que, Shakespeare comparou à mulher na constante volubilidade, ainda se parecia com ela na voragem daquele sorriso. Se na borbulha d'água se aninhava a morte como um aljôfar gracioso, que estava namorando os olhos, também assim a alma do homem se embebendo na covinha de uma face gentil, é submergida pelo abismo infindo, onde o tragam as decepções cruéis. De um lado da bacia notava-se uma grande pedra quadrada em forma de laje, com uma borda levantada à guisa de parapeito, e uma saliência encostada ao rochedo, figurando um divã. Era obra da natureza, mas aperfeiçoada outrora pela arte que talvez aproveitasse o lugar para ponto de recreio. A essa pedra chamavam na fazenda, a Lapa. Ela ficava exatamente na base do mais alto e mais áspero dos rochedos, o qual prolongava sobre o lago uma ponta abrupta semelhante a uma crista. Esse dossel de granito, com suas franjas verdes de parasitas e orquídeas tornava ainda mais umbroso o rebojo do lago, que só naquelas horas da sesta, recebia diretamente alguns raios do sol. Aí na Lapa ia dar a vereda tortuosa que descia do terreiro da cabana; e continuava enredando-se nas moitas que vestiam as margens da lagoa. Na direção da várzea podiam-se ver ainda os vestígios de algumas pilastras de alvenaria que denotavam ter ali existido em outro tempo alguma construção ligeira. Tal era o sitio que uma tradição de família cercava de tão supersticioso terror. Seu aspecto embora ressumbrasse doce melancolia, era tão sereno e plácido que estava bem longe de justificar a má reputação. Desde muito tempo Alice, curiosa como toda a criança, desejava ardentemente ver esse lugar que lhe parecia prender-se estreitamente à existência de sua família; pois embora de ordinário se evitasse falar do Boqueirão; o fato é que estava sua lembrança viva sempre no espírito das pessoas que a rodeavam. Por diversas vezes, vindo à casa de sua vovó preta, a menina cogitara meios de esquivar-se furtivamente e satisfazer sua curiosidade. Ela induziria de certas palavras ouvidas casualmente, que da cabana havia uma passagem, por onde Benedito descia à lagoa para “banzar sobre a morte de seu senhor moço”. Assim dizia a Chica. Anteriormente, brincando no terreiro de sua vovó preta, a menina tinha reparado na abertura da rocha. Naquele dia pareceu-lhe favorável o ensejo. A tia Chica estava presa à cama e não podia como costumava segui-la por toda a parte; Benedito saíra com Mário e finalmente à presença de Adélia e de sua mucama Felícia distraiam a atenção das outras pessoas. Se perdesse essa ocasião nunca mais alcançaria o que tanto desejava. Obter a realização desse desejo da condescendência dos que a acompanhavam, era coisa em que nem pensava. Conhecia as ordens severas de seu pai; e sabia como eram respeitadas e obedecidas. A história da mãe d'água ainda mais exaltou a imaginação infantil de Alice. Desapareceram as hesitações; sob pretexto de ver sua galinha, ganhou o terreiro, e desceu pela vereda tortuosa até à Lapa. 0 receio de que a surpreendessem e o respeito supersticioso que lhe infundia aquele sitio, faziam palpitar com força o lindo seio, desmaiando e acendendo alternativamente as duas rosas da face. Aproximando-se sutilmente da Lapa a menina se debruçou no parapeito de pedra, para ver a lagoa, porém especialmente a mãe d'água. Seus olhos, depois vagaram algum tempo pelas margens da bacia, fitaram-se com dobrada atenção no tanque formado pelo rochedo. A princípio ela só viu o espelho cristalino, onde sua imagem se refletia, como o rosto diáfano de alguma náiade. Pouco depois teve um ligeiro sobressalto e estendendo o colo, murmurou sorrindo:
— Lá está!
Com efeito, distinguia-se no fundo do lago, mas vagamente, o busto gracioso de uma moça, com longos cabelos anelados que lhe caiam pelas espáduas. A ondulação das águas não deixava bem distinguir os contornos, e produzia na vista uma oscilação continua. Seria a sua própria imagem que mudara de lugar com seu movimento? Além de aparecer o busto de mulher muito distante, tinha a cabeça voltada em sentido oposto. Alice quedou-se, com os olhos fixos e imóveis para não perder o menor movimento da fada. Às vezes sentia uma vacilação rápida na fronte; mas era uma impressão fugitiva; passava logo. Pouco a pouco a figura da mãe d'agua, de sombra que era foi se debuxando a seus olhos. Era moça de formosura arrebatadora; tinha os cabelos verdes; os olhos celestes, e um sorriso que enchia a alma de contentamento; um sorriso que dava à menina vontade de comê-lo de beijos. Alice viu a moça acenar-lhe docemente com a fronte, como se a chamasse. A princípio não quis acreditar; tomou por uma ilusão, mas tantas vezes o movimento se repetiu; tantas vezes a moça lhe acenou graciosamente com a cabeça que não pôde mais duvidar. A mãe d'agua a chamava; e ela teve desejos de atirar-se em seus braços. Mas a fada estava no fundo do lago; sua mãe podia chorar; as outras pessoas sabendo ficariam com medo. Ela não, não tinha medo. A moça lhe sorria com tanta doçura e bondade!... Em vez de querer-lhe mal, havia de fazer-lhe tantos carinhos, contar-lhe coisas muito bonitas do reino das fadas e dar-lhe talvez algum condão, que a protegesse; que obrigasse Mario a lhe querer bem, e a não ser mau para ela. Nesse momento chegou-lhe trazido pela brisa o eco das vozes que a chamavam. Pareceu-lhe que a puxavam docemente e iam arrancá-la ao encanto daquela miragem. Mas resistiu apoiando fortemente os braços sobre a pedra.
Não ouvia mais nada, nem se apercebia do lugar em que estava. O rochedo, as plantas, tudo desaparecera, ou antes, se transformara em um palácio resplandecente de pedrarias. No centro elevava-se um trono que tinha a forma de um nenúfar do lago; mas era de nácar e ouro. Aí sentada em coxins de seda, a moça abria os braços para apertá-la ao seio. A menina teve um estremecimento de prazer. Hesitou, contudo, por um melindre de pejo; mas o vulto de Mário perpassou nos longes daquela miragem arrebatadora; e a moça do lago outra vez sorriu-lhe, através daquela imagem querida. Então, Alice, atraída pelo encanto, foi se embeber naquele sorriso como uma folha de rosa banhando-se no cálice do lírio que a noite enchera de orvalho. Ouviu-se um soluço da onda, e um ai sentido. O soluço expirou ali mesmo, sopitado pela voragem que se abrira. O gemido repercutido pelas fragas foi derramar a aflição na cabana. Na desgraça que acabava de suceder nada havia de sobrenatural. A menina fora vítima da atração que exerce o abismo sobre o espirito humano. Aquele seio profundo, que parecia o remanso do lago, era ao contrário o vértice de um profundo remoinho das águas, que se engolfando por algum abismo cavado na rocha, giravam sobre si mesmas com uma velocidade espantosa. A abóbada da caverna onde as águas se precipitavam era naturalmente o cimo do penhasco onde estava a cabana, porque só nesse ponto se escutava bem o surdo fragor da catadupa. À margem do lago muitas vezes nada se ouvia, e outras distinguia-se apenas um ligeiro sussurro, como o da brisa ramalhando entre as folhas dos pinheiros. Alice, debruçada sobre o parapeito de pedra, não percebera que fronteira a ela havia na rocha uma face côncava coberta de cristalizações que espelhavam o seu busto gracioso, do qual só a parte superior se refletia diretamente nas águas. Esse busto refrangido pela rocha, e reproduzido pela tona do lago, apresentou aos olhos de Alice, a sombra ainda vaga da mãe d'água. Depois quando uma réstea de sol esfrolou em espuma de luz sobre a fronte límpida da menina; e um raio mais vivo cintilando nas largas folhas úmidas da taioba, lançou as reverberações da esmeralda sobre os louros cabelos; o busto se debuxou e coloriu. Tudo o mais foi efeito da vertigem causada pela fascinação. O torvelinho das águas produz na vista uma trepidação que imediatamente se comunica ao cérebro. O espírito se alucina, e sente a irresistível atração que o arrasta fatalmente. É o magnetismo do abismo; o imã do infinito que atrai a criatura, como o polo da alma humana. Se Alice não tivesse uma natureza forte e vivace; se a vida no campo, ao ar livre, não lhe dessem firmeza ao caráter e seiva ao coração; houvera sem dúvida, cedido ao primeiro atordoamento, e recuaria a tempo de evitar a catástrofe. Chegando ao terreiro, Benedito galgou de um salto à escarpa da rocha que se levantava do lado da lagoa. Abaixando os olhos para o remoinho não viu mais do que uma facha azul que cintilou a seus olhos como um relâmpago e sumiu-se. Era o vestido de Alice.
— Ah!...
O peito largo do africano respirou profundamente, como se lhe houvessem tirado de cima um rochedo. A onda, que abrira a fauce enorme para tragar sua vítima, fechou-a de novo, e alisou-se plácida e fria como a lápide de um túmulo.
José de Alencar (1829-1877).
In O TRONCO DO IPÊ, capítulo VIII.