Presentes

A Torre do Tempo estivera cravada como um túmulo vertical nas águas turvas de um pântano durante dois longos terços de era. Arquitetada no formato de uma ampulheta dodecagonal, assombrava as tribos remotas dos arredores de uma ilhota no índico que a evitavam como a um tabu. Nenhuma expedição estrangeira jamais sobrevivera aos estreitos do arquipélago a caminho dela.

Ainda que contra todas as probabilidades, uma caravela surgiu no mar em meio à névoa da enseada. Navegava penosamente, preenchendo os últimos instantes antes do amanhecer com o ranger de suas tábuas velhas até encalhar na costa rochosa. Não carregava tripulação para desembarcar.

No convés do navio, uma ventania implacável levantava densas nuvens de poeira misturada a toda sorte de sujeira e restos em decomposição. Ferozmente, soprava aquela imundície através da praia e por entre carcaças de árvores apodrecidas ao longo do pântano com destino ao platô no alto da torre, onde uma tempestade de areia e galhos secos zunia, ensurdecedora.

No cerne daquele vendaval, formas sombrias surgiam misteriosamente do pó.

Dispostos em um semicírculo sobre a laje da majestosa construção e indiferentes à beleza da paisagem ao redor, doze indivíduos taciturnos recém-materializados observavam avidamente as estrelas. Conferiam uma por uma e sentiam muito pelas que haviam se apagado desde a última contagem.

Nenhum deles parecia prestar atenção à espiral de gelo que se formava de uma nuvem e rodopiava ameaçadoramente céu abaixo.

Um turbilhão não tardou a cair. Gelo estilhaçou-se na plataforma elevada da Torre do Tempo e partículas cortantes se espalharam pelo ar para depois choverem no abismo além da borda.

Com o fim das manifestações das forças naturais, revelaram-se doze novas figuras no alto da torre. Eram ainda mais sombrias que as anteriores. Agora, as vinte e quatro formavam um círculo milimétrico e sinistro enquanto fitavam friamente umas às outras.

Passados quatorze mil e setecentos anos, as horas do dia e da noite cumpriam com a tradição ao se reunirem no fim de outra era mortal para renovarem o voto de trégua feito no nascimento do universo como o conhecemos hoje — ainda que houvessem se odiado terrivelmente desde muito antes disso.

Aquele encontro deveria consistir em uma troca de presentes; uma forma de as duas estirpes antagonistas demonstrarem respeito uma pela outra.

Sem cerimônias, que não seriam outra coisa além de pura hipocrisia, as horas da noite agraciaram as do dia com uma dádiva: uma semente de sonho para ser plantada no mundo. Dada sua origem, algo assim seria capaz de inspirar algum feito grandioso durante a era que se iniciava.

As horas do dia receberam a oferta com uma reverência discreta. Em seguida, retribuíram-na com um coelho. Explicaram que o animal devia ser solto na lua e que apenas os apaixonados entre os mortais seriam capazes de vê-lo.

As horas noturnas não pareceram convencidas com tamanha excentricidade do presente. A desconfiança ofendeu profundamente suas orgulhosas irmãs do dia e o ar se impregnou instantaneamente com a antiga discórdia que havia entre elas. Um confronto era iminente e as conseqüências dele, inimagináveis.

Ardil, a sábia Meia-Noite apanhou o coelho pelas orelhas e examinou-o longamente. Inventou algo que procurar nele e fez uma profunda reverência quando encontrou, aceitando o presente em seu nome e de suas irmãs, assegurando assim a trégua por mais uma era. Dessa forma, noite seria noite e dia seria dia.

Quando a tempestade de pó e o redemoinho de gelo se formavam novamente para carregar as horas de volta a seus devidos lugares, a Torre do Tempo já se desmanchava em ruínas. Absorta, Meia-Noite se perguntava quantos presentes ainda seriam capazes de impedir uma colisão das vinte e quatro de sua espécie e que, com isso, o mundo acabasse ofuscado pela luz de uma escuridão que jamais se pensou poder existir.
Diógenes Daniel
Enviado por Diógenes Daniel em 20/06/2013
Reeditado em 28/06/2013
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