A viúva do trem



                       
            Devo dizer que o banco do trem era confortável para os dois.
            Um reles soldado e uma fina senhora, talvez já passada dos 40 anos, cheia de corpo, fornida, quer dizer, bem robusta. Vestida toda de preto, parecendo uma viúva.
            O nosso soldado percebeu  que a bela senhora, apesar de tantos lugares vazios no trem, preferiu sentar-se ao seu lado. Isso o alegrou de tal modo que começou a sonhar com um contato mais íntimo.
            Paro por um instante a narrativa para advertir o amigo leitor que transcreverei parte desse conto, com título diferente,  tirado de um grande escritor italiano do século passado, para mostrar a leveza, a sutileza, o ritmo das palavras, a arte enfim de escrever, que não vemos neste nosso século de transição, tão grosseiro, tão massificado.
            Passo a palavra para Ítalo Calvino: “ A senhora estava impassível, sob o chapéu de matrona, o olhar fixo, palpebrado, as mãos firmes sobre a bolsa no colo, e no entanto seu corpo, por uma longuíssima faixa, encostava-se naquela faixa de homem. Será que ela ainda não  tinha se dado conta? Ou preparava uma fuga? uma rebelião ?
            Tomagra resolveu lhe transmitir, de algum modo, uma mensagem: contraiu o músculo da barriga da  perna como se fosse um punho cerrado, quadrado, e depois, com esse punho de perna, como se lá dentro uma mão quisesse se abrir, correu e bateu na barriga da perna da viúva. É verdade que foi um movimento rapidíssimo, apenas o tempo de um jogo de tendões: de qualquer modo, ela não recuou – pelo menos até onde ele pôde entender! -, pois logo Tomagra, por necessidade de justificar aquele gesto secreto, mexeu a perna como que para desentorpecê-la.
            Agora tinha de recomeçar do início; aquele paciente e prudentíssimo trabalho de contato estava perdido. Tomagra resolve ter mais coragem; como que para procurar alguma coisa, enfiou a mão no bolso, no bolso do lado da mulher, e, depois, como que distraído, não a tirou mais.
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            Tomagra, retendo o fôlego, girou a mão no bolso, ou seja, voltou a palma para o lado da senhora, abrindo-a sobre ela, mesmo dentro daquele bolso. Era uma posição impossível, com o pulso contorcido. Então, agora, era o caso de tentar um gesto decisivo: assim, com aquela mão revirada, arriscou um movimento de dedos. Já não havia mais dúvida: a viúva não podia deixar de se dar conta daquela manobra dele, e se não se retraía, e fingia impassibilidade e ausência, queria dizer que não repelia sua abordagem. Pensando bem, porém, aquele seu descaso pela mão que Tomagra mexia podia querer dizer que acreditasse realmente numa vã procura naquele bolso: de um bilhete de trem, um fósforo... Pronto: e se agora as pontas dos dedos do soldado, como que dotadas de súbita clarividência, adivinhavam através daqueles diversos tecidos as bainhas de roupas subterrâneas e até minúsculas asperezas da pele, poros e sinais se, digo, as pontas dos dedos dele chegavam a isso, talvez a carne dela, marmórea e preguiçosa, apenas notasse que se tratava mesmo de pontas de dedos e não, digamos, de dorsos de unha ou juntas.  Então a mão, com passos furtivos, saiu do bolso e foi parar no joelho. É preciso dizer que Tomagra se pusera com a cabeça voltada contra o encosto, de tal forma que também se poderia dizer que estava dormindo. ................................................. E dali, daquela desperta aparência de sono, a mão de Tomagra encostada ao joelho destacou um dedo, o mindinho, e o mandou explorar ao redor. O mindinho deslizou por sobre o joelho dela, que ficou calado e dócil; Tomagra podia realizar diligentes evoluções de mindinho na seda da meia que ele com olhos semicerrados apenas entrevia clara e curva. Mas se deu conta de que o risco daquele jogo não compensava, pois o mindinho, por pobreza de polpa e limitação de movimentos, só transmitia esboços parciais de sensações, não servia para conceber a forma e a substância do que estava tocando...................................................................
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            Percebeu que sua mão, como um polvo curto, apertava as carnes dela. Agora estava tudo decidido: não podia mais recuar, ele, Tomagra; mas ela, ela era uma esfinge.
            A mão do soldado ia agora subindo pela coxa com passos enviesados de caranguejo; estava a descoberto, diante dos olhos dos outros? Não, já a viúva ajeitava o casaco que trazia dobrado no colo, já o fazia cair de um lado. Para lhe oferecer abrigo ou para lhe barrar a passagem? Pronto: agora a mão se movia livre e não vista, agarrava-se a ela, estendia-se com carícias rasantes como uma breve lufada de vento.
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            Mas o rosto da viúva continuava voltado para longínquo. ........................................................................................................................................
            A mão, escondida sob o casaco preto, tinha ficado quase destacada dele, contraída e com os dedos recolhidos em direção ao pulso. E foi, então, que retomando contato com aquela macia curva da perna, ele se deu conta de ter atingido um limite: os dedos corriam pela bainha da saia,  mais além era o pulo do joelho, o vazio. Era o fim, pensou o soldado, dessa farra secreta.
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            Um túnel se precipitou sobre eles. E Tomagra tratando cada vez mais se convencer da extrema familiaridade a que havia chegado com aquela mulher, avançou a mão vacilante como um frangote em direção ao seio, grande e um pouco largado ao próprio peso, e com um árduo tatear tentava explicar-lhe a miséria e a insustentável felicidade de seu estado, e sua necessidade não de outra coisa, mas de que ela saísse daquela sua reserva.
            Estavam nas últimas estações de um percurso de província. Terminaram ficando sozinhos no compartimento, o soldado e a viúva, pertinho e afastados, de braços cruzados, mudos, os olhares no vazio.
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            Tomagra estava em pé, acima dela. Ainda quis, para proteger aquele simulacro de sono, escurecer também a janela, e se estendeu por sobre ela, para desamarrar a cortina. Parou de atormentar aquela alcinha de cortina e entendeu que tinha que fazer outra coisa, demonstrar-lhe toda a sua própria condição inadiável de desejo, nem que fosse para lhe explicar o equívoco em que ela certamente caíra, como que para lhe dizer: “Veja, você foi condescendente comigo porque acredita em nossa remota necessidade de afeto, de nós, pobres e solitários soldados, mas em vez disso aí está o que sou, aí está como recebi sua cortesia, aí está a que ponto de ambição impossível veja, cheguei”. E já que  agora  estava claro que nada conseguia espantar a viúva, então ao soldado só restava fazer com que não houvesse mais dúvidas possíveis, e que finalmente a dor de sua loucura conseguisse apanhar também quem era o seu mudo objeto, ela.
 
 
            Nota:  Como sabem os amigos e amigas, estou dialogando com antigos escritores, procurando os melhores, para me deliciar com seus escritos. A intenção de publicar parte do conto de Ítalo Calvino foi mostrar a qualidade de escrita, explorando a sensualidade com muita finura, ao contrário do que vemos hoje, onde costumamos ver contos eróticos grosseiros. O que reclamo, nesta nossa época de transição, é a falta de arte, por isso o meu voltar para os grandes de todas as épocas, com a intenção saudável de apreciar e me divertir com a verdadeira arte e compartilhando com a minha turma. (Gdantas)