Eles estão com os dubles
ELES ESTÃO COM OS DUBLES
Miguel Carqueija
Não, eles não são Stan Laurel e Oliver Hardy. São apenas Bono, gordo e meio careca, e Anúbis, magro, bigodudo e mal-encarado, vestidos como mineiros, pioneiros do pré-western americano ou coisa parecida, a barba por fazer. Eles palmilharam por um dos desertos da região equatorial de Antares (não a estrela, mas o planeta com esse nome, em Vega) até chegar à estação do Desespero, nome bem pouco tranqüilizador para os que vêm cansados de um longo pó de estrada.
- O que você acha, Bono? Será que esse lugar é seguro?
- Nós vamos ter que parar aqui, gajo. Só não podemos mostrar o que tem nas mochilas.
- Pois é! Mas essas estações de Antares têm péssima fama. Não estou gostando do aspecto...
- Está com medo, Anúbis?
- É claro que não! Ou você esquece que nós somos durões?
- Me engana que eu gosto. Olha, ali está uma taberna. Vamos beber um pouco de batida de chuchu antariano e comer uma salada de aspargo doce com churrasco de lagarto de chifres.
- Ora! Você crê que numa espelunca dessas nós vamos encontrar essas iguarias? Se tiver sanduíche de turquiblívio já será muito...
- Bom, vamos lá. Só vendo.
Bono abriu a porta dupla e entrou pisando ruidosamente, com aquele jeito de “cheguei!”. Anúbis veio logo a seguir, olhando para os lados e procurando passar despercebido.
Todo mundo olhou para eles. Até o chinês de chapéu pontudo, fumando ópio num dos cantos.
Bono encontrou uma mesa vazia, puxou a cadeira com espalhafato e sentou-se. Anúbis veio, moveu silenciosa e cuidadosamente a outra cadeira e ajeitou-se, só não ficando invisível porque não podia.
O garçom de avental e bigode aproximou-se:
- Boa tarde, senhores. Estão vindo de longe, pelo jeito.
- Nós viemos das montanhas de Torpal – disse Bono.
O outro franziu as sobrancelhas.
- De lá?
- É uma região selvagem, inóspita – prosseguiu Bono, e acrescentou com ar descuidado: - ah, sim, estivemos com os dubles. Eles são muito interessantes.
- Deveras, senhor? É muito interessante – observou o garçom, sem dar evidentemente o mínimo crédito àquelas palavras. – Bem, o que vão querer?
Estendeu o cardápio, que era de fato muito pobre. A coisa melhor que havia era empadão de tatapeva e batida de luparmázio.
Enquanto eles atacavam o empadão, alternando com umas batatas fritas murchas e frias, um sujeito corpulento, com charuto de palha no canto da boca e blusão quadriculado colorido, além de um gorro rústico, chegou-se à mesa ocupada pela dupla e inclinou-se sobre a mesma, eqüidistante dos dois e apoiando-se num cotovelo:
- Forasteiros, - disse ele, chupando o charuto - será que eu entendi bem, vocês dizerem que estiveram com os dubles?
- Foi o que eu disse – respondeu Bono. - Eles são boa gente, sabe? Gostaram muito da gente.
- Está querendo fazer hora com a minha cara? Os dubles não existem, e você sabe muito bem disso. Ou você acha que nós acreditamos em histórias da Carochinha?
- Não lhe peço para acreditar – devolveu Bono, suportando o olhar provocador do outro.
- Bono, vamos embora – sussurrou Anúbis, cada vez menos à vontade.
Um careca alto e forte, com uma espingarda a tiracolo, chegou-se também e se intrometeu:
- Eu aposto que vocês estão inventando essa história só para que a gente não tenha curiosidade a respeito do que vocês levam nessas mochilas. Ninguém anda com mochilas tão cheias, entupidas. O que vocês acham?
- Gente – falou Anúbis, estupidamente - vocês estão achando que nós temos ouro em nossas mochilas? Não temos não, podem crer!
Se não fosse comprometer mais ainda a situação, naquela hora Bono teria xingado o parceiro de burro para baixo.
O careca pegou uma das mochilas e ergueu-a com dificuldade:
- Está bem, então não é ouro! Mesmo pesando uma tonelada!
Assim dizendo, diante das faces estupidificadas dos forasteiros, abriu a mochila e exibiu uma pepita:
- É claro que não é ouro! Acreditamos nele! Isso deve ser chumbo pintado!
Bono se ergueu:
- Largue isso! A mochila é nossa!
O outro riu às gargalhadas, provocando uma onda de riso naquelas caras feias e barbadas:
- Estão ouvindo só? Ele diz que a mochila é deles!
- Pois é – disse um grandalhão de bengala. - Devolve a ele, Pecos, mas primeiro esvazia! Coitados, levar um peso desses...
- Isso mesmo – disse outro gajo, com cara de vilão de história em quadrinhos. - Tanto mais que não se trata de ouro, como eles mesmos disseram...
E a canalha, capitaneada pelo sujeito do charuto no canto da boca, pelo chinês e pelo careca, pôs-se a espalhar as pepitas das duas mochilas sobre uma mesa grande, para reparti-las. Até as coristas vieram ajudar, excitadas.
- Parem! – gritou Anúbis, desesperado. Nós vamos chamar o xerife!
- Xerife? Tem xerife aqui? – disse uma das garotas, admirada.
- Que xerife o que! – gritou Bono, indignado. – Nós vamos chamar os dubles! Eles prometeram que nos ajudariam!
- Chamar os dubles! Chamar os dubles! Uá! Uá! Uá! – e a gargalhada foi geral.
- Venham, venham! – chamou Bono, esfregando um anel com uma pedra vermelha, que usava no anular da mão direita.
Em meio à gargalhadas, subitamente fez-se o silêncio. Uma nuvem de fumaça enevoara o local. Ao se dissipar, um bando de sujeitos esquisitos estava presente, espalhado pelo aposento. Usavam uniformes verdes, bonés com plumas, sapatos com ponta de bolinha; tudo com motivos de trevos. Eram pequenos, magros e com narizes pontudos, e orelhas idem. Havia um sentado em posição de Buda, em meio às pepitas; havia uma garota sentada numa das prateleiras de panelas; havia um outro, de cara enfezada, encostado na lareira; e outro, mais jovem e imberbe, sentado no chão, num ângulo da parede; e mais uma garota, que se materializara montada no cabideiro.
- Quem são vocês? – perguntou o dono da birosca.
- Nós somos os dubles – responderam em uníssono. - E não queremos falcatruas com os nossos amigos.
O chinês pegou uma garrafa de talagada cósmica e avançou na direção do enfezado da lareira:
- Dubles ou não dubles, saiam daqui ou arrebento vocês!
- Vai fazer isso aqui no chão ou lá no teto, amigo? – assim dizendo o duble apontou para cima e o chinês sentiu o chão faltar debaixo dos pés. Num instante estava se debatendo em meio às vigas:
- Ei, me tirem daqui! Me deixem descer!
Estabeleceu-se o pandemônio. A menina do cabideiro, ruivinha, estalou os dedos e o careca alto e forte subiu também, mas não até o teto, e acabou ficando de cabeça para baixo, no ar. Ainda tentou usar a sua arma, porém o seu cano murchou como um macarrão subitamente cozido. A outra garota fez três dos agressores voarem num redemoinho. O duble da posição de Buda lançou o garçom de bigode numa série de piruetas pelo ar, chegando a colidir com o trio do redemoinho; o duble mais jovem conduziu o brigão do charuto de cara na pia cheia de pratos sujos e com as pernas para cima. A gritaria foi geral, mas os duendes antarianos foram impiedosos.
- Cristal Azul! – disse Bono, dirigindo-se à garota dos cabelos azuis. – Já estão exagerando um pouco...
- Eles são muito maus, Bono! Iam roubar vocês e fazer sabe Deus o que mais...
- Olha só, Bono! – exclamou Anúbis, entusiasmado – Olha o velho da bengala, parece um pirilampo girando em torno das lâmpadas...
- Parem com isso, pelo amor de Deus!
- Socorro! Estou tonto!
- Parem, nós não queremos mais o ouro!
Quem pôde fugir, fugiu. As garotas todas sumiram. Quando os dubles se cansaram da brincadeira, fizeram descer a todos os atingidos e se posicionaram em torno deles, prontos para novos truques. Foi o Rubi Negro quem falou:
- E agora? Vocês vão ficar bonzinhos e deixar os nossos amigos em paz?
- É claro, seu duble – disse o careca – nós estávamos só brincando, pode crer...
- Por falar em deixar em paz, Rubi Negro, nós nem conseguimos comer sossegados...
- Comer? Comer? Pois vocês vão comer em paz agora, e nós vamos lhes fazer companhia... pode fazer uma mesa para sete, amigo garçom?
- É claro, é claro, meu senhor. É uma honra para o nosso estabelecimento...
_______________ x _______________
No dia seguinte, já num trem com destino à capital, Anúbis comenta:
- Olha só Bono, vê se agora a gente tem mais cuidado, até que o nosso ouro esteja trancado num cofre de banco na Terra...
- Tudo bem, Anúbis. Vamos ser mais cuidadosos. Mas para que nos preocuparmos demais? Afinal de contas, nós estamos com os dubles...
(imagem pixbay)
ELES ESTÃO COM OS DUBLES
Miguel Carqueija
Não, eles não são Stan Laurel e Oliver Hardy. São apenas Bono, gordo e meio careca, e Anúbis, magro, bigodudo e mal-encarado, vestidos como mineiros, pioneiros do pré-western americano ou coisa parecida, a barba por fazer. Eles palmilharam por um dos desertos da região equatorial de Antares (não a estrela, mas o planeta com esse nome, em Vega) até chegar à estação do Desespero, nome bem pouco tranqüilizador para os que vêm cansados de um longo pó de estrada.
- O que você acha, Bono? Será que esse lugar é seguro?
- Nós vamos ter que parar aqui, gajo. Só não podemos mostrar o que tem nas mochilas.
- Pois é! Mas essas estações de Antares têm péssima fama. Não estou gostando do aspecto...
- Está com medo, Anúbis?
- É claro que não! Ou você esquece que nós somos durões?
- Me engana que eu gosto. Olha, ali está uma taberna. Vamos beber um pouco de batida de chuchu antariano e comer uma salada de aspargo doce com churrasco de lagarto de chifres.
- Ora! Você crê que numa espelunca dessas nós vamos encontrar essas iguarias? Se tiver sanduíche de turquiblívio já será muito...
- Bom, vamos lá. Só vendo.
Bono abriu a porta dupla e entrou pisando ruidosamente, com aquele jeito de “cheguei!”. Anúbis veio logo a seguir, olhando para os lados e procurando passar despercebido.
Todo mundo olhou para eles. Até o chinês de chapéu pontudo, fumando ópio num dos cantos.
Bono encontrou uma mesa vazia, puxou a cadeira com espalhafato e sentou-se. Anúbis veio, moveu silenciosa e cuidadosamente a outra cadeira e ajeitou-se, só não ficando invisível porque não podia.
O garçom de avental e bigode aproximou-se:
- Boa tarde, senhores. Estão vindo de longe, pelo jeito.
- Nós viemos das montanhas de Torpal – disse Bono.
O outro franziu as sobrancelhas.
- De lá?
- É uma região selvagem, inóspita – prosseguiu Bono, e acrescentou com ar descuidado: - ah, sim, estivemos com os dubles. Eles são muito interessantes.
- Deveras, senhor? É muito interessante – observou o garçom, sem dar evidentemente o mínimo crédito àquelas palavras. – Bem, o que vão querer?
Estendeu o cardápio, que era de fato muito pobre. A coisa melhor que havia era empadão de tatapeva e batida de luparmázio.
Enquanto eles atacavam o empadão, alternando com umas batatas fritas murchas e frias, um sujeito corpulento, com charuto de palha no canto da boca e blusão quadriculado colorido, além de um gorro rústico, chegou-se à mesa ocupada pela dupla e inclinou-se sobre a mesma, eqüidistante dos dois e apoiando-se num cotovelo:
- Forasteiros, - disse ele, chupando o charuto - será que eu entendi bem, vocês dizerem que estiveram com os dubles?
- Foi o que eu disse – respondeu Bono. - Eles são boa gente, sabe? Gostaram muito da gente.
- Está querendo fazer hora com a minha cara? Os dubles não existem, e você sabe muito bem disso. Ou você acha que nós acreditamos em histórias da Carochinha?
- Não lhe peço para acreditar – devolveu Bono, suportando o olhar provocador do outro.
- Bono, vamos embora – sussurrou Anúbis, cada vez menos à vontade.
Um careca alto e forte, com uma espingarda a tiracolo, chegou-se também e se intrometeu:
- Eu aposto que vocês estão inventando essa história só para que a gente não tenha curiosidade a respeito do que vocês levam nessas mochilas. Ninguém anda com mochilas tão cheias, entupidas. O que vocês acham?
- Gente – falou Anúbis, estupidamente - vocês estão achando que nós temos ouro em nossas mochilas? Não temos não, podem crer!
Se não fosse comprometer mais ainda a situação, naquela hora Bono teria xingado o parceiro de burro para baixo.
O careca pegou uma das mochilas e ergueu-a com dificuldade:
- Está bem, então não é ouro! Mesmo pesando uma tonelada!
Assim dizendo, diante das faces estupidificadas dos forasteiros, abriu a mochila e exibiu uma pepita:
- É claro que não é ouro! Acreditamos nele! Isso deve ser chumbo pintado!
Bono se ergueu:
- Largue isso! A mochila é nossa!
O outro riu às gargalhadas, provocando uma onda de riso naquelas caras feias e barbadas:
- Estão ouvindo só? Ele diz que a mochila é deles!
- Pois é – disse um grandalhão de bengala. - Devolve a ele, Pecos, mas primeiro esvazia! Coitados, levar um peso desses...
- Isso mesmo – disse outro gajo, com cara de vilão de história em quadrinhos. - Tanto mais que não se trata de ouro, como eles mesmos disseram...
E a canalha, capitaneada pelo sujeito do charuto no canto da boca, pelo chinês e pelo careca, pôs-se a espalhar as pepitas das duas mochilas sobre uma mesa grande, para reparti-las. Até as coristas vieram ajudar, excitadas.
- Parem! – gritou Anúbis, desesperado. Nós vamos chamar o xerife!
- Xerife? Tem xerife aqui? – disse uma das garotas, admirada.
- Que xerife o que! – gritou Bono, indignado. – Nós vamos chamar os dubles! Eles prometeram que nos ajudariam!
- Chamar os dubles! Chamar os dubles! Uá! Uá! Uá! – e a gargalhada foi geral.
- Venham, venham! – chamou Bono, esfregando um anel com uma pedra vermelha, que usava no anular da mão direita.
Em meio à gargalhadas, subitamente fez-se o silêncio. Uma nuvem de fumaça enevoara o local. Ao se dissipar, um bando de sujeitos esquisitos estava presente, espalhado pelo aposento. Usavam uniformes verdes, bonés com plumas, sapatos com ponta de bolinha; tudo com motivos de trevos. Eram pequenos, magros e com narizes pontudos, e orelhas idem. Havia um sentado em posição de Buda, em meio às pepitas; havia uma garota sentada numa das prateleiras de panelas; havia um outro, de cara enfezada, encostado na lareira; e outro, mais jovem e imberbe, sentado no chão, num ângulo da parede; e mais uma garota, que se materializara montada no cabideiro.
- Quem são vocês? – perguntou o dono da birosca.
- Nós somos os dubles – responderam em uníssono. - E não queremos falcatruas com os nossos amigos.
O chinês pegou uma garrafa de talagada cósmica e avançou na direção do enfezado da lareira:
- Dubles ou não dubles, saiam daqui ou arrebento vocês!
- Vai fazer isso aqui no chão ou lá no teto, amigo? – assim dizendo o duble apontou para cima e o chinês sentiu o chão faltar debaixo dos pés. Num instante estava se debatendo em meio às vigas:
- Ei, me tirem daqui! Me deixem descer!
Estabeleceu-se o pandemônio. A menina do cabideiro, ruivinha, estalou os dedos e o careca alto e forte subiu também, mas não até o teto, e acabou ficando de cabeça para baixo, no ar. Ainda tentou usar a sua arma, porém o seu cano murchou como um macarrão subitamente cozido. A outra garota fez três dos agressores voarem num redemoinho. O duble da posição de Buda lançou o garçom de bigode numa série de piruetas pelo ar, chegando a colidir com o trio do redemoinho; o duble mais jovem conduziu o brigão do charuto de cara na pia cheia de pratos sujos e com as pernas para cima. A gritaria foi geral, mas os duendes antarianos foram impiedosos.
- Cristal Azul! – disse Bono, dirigindo-se à garota dos cabelos azuis. – Já estão exagerando um pouco...
- Eles são muito maus, Bono! Iam roubar vocês e fazer sabe Deus o que mais...
- Olha só, Bono! – exclamou Anúbis, entusiasmado – Olha o velho da bengala, parece um pirilampo girando em torno das lâmpadas...
- Parem com isso, pelo amor de Deus!
- Socorro! Estou tonto!
- Parem, nós não queremos mais o ouro!
Quem pôde fugir, fugiu. As garotas todas sumiram. Quando os dubles se cansaram da brincadeira, fizeram descer a todos os atingidos e se posicionaram em torno deles, prontos para novos truques. Foi o Rubi Negro quem falou:
- E agora? Vocês vão ficar bonzinhos e deixar os nossos amigos em paz?
- É claro, seu duble – disse o careca – nós estávamos só brincando, pode crer...
- Por falar em deixar em paz, Rubi Negro, nós nem conseguimos comer sossegados...
- Comer? Comer? Pois vocês vão comer em paz agora, e nós vamos lhes fazer companhia... pode fazer uma mesa para sete, amigo garçom?
- É claro, é claro, meu senhor. É uma honra para o nosso estabelecimento...
_______________ x _______________
No dia seguinte, já num trem com destino à capital, Anúbis comenta:
- Olha só Bono, vê se agora a gente tem mais cuidado, até que o nosso ouro esteja trancado num cofre de banco na Terra...
- Tudo bem, Anúbis. Vamos ser mais cuidadosos. Mas para que nos preocuparmos demais? Afinal de contas, nós estamos com os dubles...
(imagem pixbay)