Encontro

Ainda o mesmo nevoeiro sem fim que a aurora não consegue superar.

Bram Stoker

— Sexta-feira é dia de alegria! — dizia Carol de cima do pedestal da beleza, com aquele sorriso de mulher resolvida, mas era só aparecer uma sexta-feira treze e toda essa alegria virava pavor.

Não era supersticiosa, mas a sexta-feira treze lhe dava calafrios e tinha maus pressentimentos o dia todo. Graças a Deus, Buda, Alá e Iemanjá até então nada de ruim aconteceu com ela ou algum conhecido.

Hoje é sábado, dia quatorze e fui chamado à sua casa com urgência porque estava surtando e só falaria comigo. Entrei no quarto furando a multidão e vi aquela figura, outrora segura, encolhida num canto, tremendo, olhos esbugalhados, ofegante e pálida. Tomei a liberdade de mandar embora aquela multidão morbidamente curiosa.

Carol estava gelada e não conseguia falar, ajudei-a a se deitar e, vencida pela exaustão, dormiu um sono agitado. Às vezes acordava com um grito e voltava a dormir segurando forte minha mão e já era fim de tarde quando se levantou um pouco mais calma. Preparei um lanche e ela comeu com pressa, me olhando de canto de olho.

— Você não quer saber o que aconteceu comigo? — perguntou, tímida.

— Só se você quiser contar... — e ela contou...

Na sexta-feira Carol acordou com uma sensação de que encontraria alguém que não via há muito tempo e que não queria ver. Até procurou ter contato com o menor número possível de pessoas durante o dia todo.

O vento que soprava em rajadas esparsas na rua deserta arrepiava sua espinha na volta para casa. A rua onde mora é escura, porém segura porque os vizinhos estão sempre conversando na calçada, mas naquela noite não havia ninguém.

Já estava perto, mas resolveu correr para chegar mais rápido. Abriu o portão, correu para a porta com a chave na mão. Coração disparado, mãos geladas e pernas trêmulas, Carol jurava que havia alguém atrás dela, mas era só a sua própria sombra no chão. Abriu, entrou, trancou a porta, acendeu todas as luzes e fechou todas as cortinas.

Ainda sentia aquela presença incômoda do lado de fora e lembrou-se que sentiu algo assim pela última vez havia sete anos, quando terminou o namoro com Ronaldo, um fracassado que queria puxá-la para o abismo. Tudo o que ele via era de cor cinza e o que dizia era para amaldiçoar alguém ou invejar. Carol não queria mais caminhar morro abaixo ao seu lado e resolveu terminar o namoro, afinal o amor já era um defunto mesmo!

Carol foi até a porta decidida a abrir, hesitou e voltou. Será que deveria fazer uma coisa dessas numa sexta-feira treze, da qual tinha tanto medo e respeito? Teimosa, abriu a porta e deu de cara com Ronaldo! Saltou para trás com a mão no coração, dando um grito de mulher assustada.

Sentiu um vento gelado entrar com ele. Olhou para ele por alguns segundos, disfarçou o medo e perguntou:

— O que você quer, Ronaldo?

— Estava com saudades!

— Fala logo o que você quer e vai embora!

— Calma, benzinho! Vamos conversar!

— Já conversamos tudo há sete anos atrás!

— Não é sobre aquele tempo que quero falar. — e bateu a porta.

Após a separação, ele não perdeu tempo; começou a namorar a ex-esposa de um amigo e logo se casaram.

— Deixa eu adivinhar: você tinha tanta inveja do seu amigo que gorou o casamento dele até que tudo acabou. Acertei?

— Sempre fui bom nisso!

Às vezes trocava os nomes chamando a esposa de Carol até na cama. Após um ano, se viu sozinho e com Carol na cabeça.

— Num vem com esse papo furado pra cima de mim não! — rosnou ela.

Depois de um tempo se apaixonou de verdade por uma moça que era uma flor e também se casaram. Achou que com ela seria diferente, mas aos poucos começou a chamá-la de Carol. A moça, muito doce e compreensiva, se esforçava para acreditar que fosse o stress, mas a relação definhou até virar pó e o vento do sofrimento levar embora.

— Seu nome vinha na boca e eu falava! Você sabe o que é isso? Sabe? — a curiosidade não deixava Carol mandá-lo embora.

Ronaldo ficou alguns meses no fundo do poço da solidão, angustiado, tudo negro, e ainda havia gente feliz a sua volta! Ele não suportou aquilo.

— Carol! — segurando-a forte pelos braços — Você não saía da minha cabeça! — e sacudia ela. As mãos geladas e secas deixaram ela apavorada. — Não consegui viver daquele jeito, Carol! Pulei da ponte gritando seu nome pela última vez! Pela última vez!

Aí ela ficou apavorada de verdade!

O que era aquilo então? Um fantasma? Mas ela sentia o seu toque! Tentou gritar, mas a voz não saía!

— Achei que meu sofrimento acabaria, mas você assombrou minha morte!

E Ronaldo se desfez numa densa névoa cinza que se espalhou em volta de Carol. Ela sentia a névoa gelada e seca lamber seus braços, seu rosto, suas pernas e ouviu a voz dele dizer:

— E agora, Carol, eu vim te buscar.

Ficou zonza, o ar faltou, as pernas dobraram-se e ela caiu de joelhos. Sentia sua vida ser sugada para fora do corpo.

— Se eu não suportei a vida com você, vou suportar a morte?

— Você não tem escolha!

Carol reagiu! Ronaldo se esparramou. A vida resistia a sair.

Enquanto ela estendia a mão para ajudar alguém a se levantar, ele estendia para empurrar da beira do abismo.

— Tenho mais o que fazer com a minha vida!

Ele lutava com todas as forças para levá-la consigo, mas Carol não queria morrer. Então algo aconteceu e ela não conseguiu controlar.

Ficou tudo leitoso, leve, macio, dormente... Carol sentiu-se como a água que sai da garrafa e cai no rio e se desfez em névoa branca, úmida e quente.

Achou que havia morrido, mas sentia seu corpo macio, ainda estava quente e havia algo pulsando nela. Era como estar nua, flutuando no ar. Uma sensação gostosa; assustadora, mas gostosa.

— Você não vai fugir! — gritava ele.

Carol voltou à realidade! Precisava resistir! Não dava para saber quem era quem e a névoa rodopiava. Os vidros tremeram e estilhaçaram, o sofá tombou, a televisão caiu, os quadros foram jogados longe, as paredes racharam, as lâmpadas estouraram...

Carol estava decidida a viver e dessa decisão surgiu uma força repentina desconhecida, uma energia viva, veloz, quente e uma luz azulada surgiu de dentro da névoa.

Ronaldo apareceu ajoelhado no chão, chorando e gritou o nome de Carol antes de desmanchar-se em pó.

Ela só resistiu, se defendeu sem atacar. Estava livre de um fantasma do passado, mas quando deu-se conta do problema que era ser uma nuvem não soube o que pensar, o que fazer. Aquilo mudaria para sempre sua vida, mudaria o que ela é!

E essa era a última coisa de que se lembrava. Acordou estirada no chão da sala sendo sacudida por Fernanda. Elas combinaram de sair no sábado para almoçar, a porta estava aberta e Fernanda entrou.

Quando Carol viu tudo revirado, móveis tombados, vidros quebrados, ficou muito assustada. Não se lembrava de nada no momento, então Fernanda achou que ela estava surtando. Sem saber o que fazer, chamou o vizinho e aí esse chama aquele que chama o outro que chama o outro e Carol se refugiou daquele monte de gente no canto do seu quarto.

— Eu sei que você não acredita em mim...

— Não falei nada!

— Nem precisa! Nem eu acredito... — e uma lágrima brilhou.

Carol estava confusa, envergonhada, e começou a chorar cobrindo o rosto com as mãos.

— O que aconteceu comigo? O que me tornei? — soluçava ela.

Não sei ver uma mulher chorar sem fazer nada, então tomei uma decisão que mudaria nossas vidas. Desmanchei-me em névoa branca, úmida e quente e abracei-a. Carol gritou saltando da cadeira como um gato.

— O quê... o quê...

— Calma Carol! Somos iguais.

— Sai de perto de mim! Sai de perto de mim! — gritava histérica.

— Calma! Não vou te machucar!

— Isso é um pesadelo... — e caiu desmaiada.

Carol precisava saber que aquilo não era o fim de tudo. Voltei ao “normal” sentindo-me aliviado por saber que não sou o único.

Logo ela voltou a si, suspirou e sorriu.

— Ufa! Foi só um pesadelo! Um pesadelo!

Ajudei ela a se sentar e olhei nos seus olhos cansados.

— Não foi um pesadelo, Carol!

— Eu não sou assim! Não sou! — gritou ela.

— Carol, não há nada que você possa fazer para mudar isso...

— Não! Não! Não! — berrava ela.

Apertava a cabeça entre as mãos como se acabasse de descobrir que não era filha dos seus pais. Eu sabia que ela não suportaria aquela pressão: Carol sentiu aquela sensação gostosa que não conseguia controlar.

— Com o tempo a gente aprende a se controlar, mas no começo é assim mesmo.

— O que aconteceu comigo?

— Você descobriu quem é de verdade!

Ficou pensativa por uns instantes.

— E você? Quando descobriu quem é de verdade?

— Quando você começou a namorar o Ronaldo!

— Ah! Não sei o que dizer...

— A gente só descobre quem somos na hora de decidir entre viver e morrer. — Carol flutuava linda na minha frente. — Vem Carol, vamos dar uma volta! — peguei na sua mão trêmula e macia e saímos pela janela estilhaçada.

Carlos H F Gomes
Enviado por Carlos H F Gomes em 30/03/2007
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