Percepções
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Eis que vem surgindo o primeiro verão. A natureza tem pressa. Os pássaros, ansiosamente, estão à espreita de novas e frondosas vegetações. O tempo do ocaso já se fora. Muitas existências se modificaram e ao certo não se sabe onde nem quando houve colheitas. Redes foram jogadas nas armadilhas do tempo e as folhas espalhadas nos jardins e parques, mundo afora, testemunharam a soberba gratuitamente cedida pela força da natureza. As folhas amareladas pelo desgaste natural, caíram, deixando saudade... E a ociosidade do inverno vai cedendo, dando passagem às borboletas e às abelhas que, de flor em flor, buscam o néctar das flores para o surgimento de novas auroras, noutros jardins.
O Sol se movimenta. A Terra se movimenta. Nossas vidas também se movimentam, num renascer e morrer contínuos que nos anima e nos faz chorar. Há os dias; surgem as noites, mas o que guardamos conosco é o que nos arde cada poro do corpo e da ressequida pele, quando somos expostos ao Sol do meio dia! Vida morna, temperada de mais não tem graça. Os demais dias, os quentes, os exacerbados, os que nos fazem suar, dilatando os poros comprimidos pelo frio já distante, delata nossas intenções mundanas e temporárias, fruto da efemeridade.
Se findamos estáticos, a situação derradeira não se bastaria, esgotando-se em si mesma? Se a tendência última da imagem e da semelhança, apregoada há séculos, residir num estar sozinho, num caminhar carregado pelos braços de amigos, parentes ou até de nobres desconhecidos, por que a caminhada precisa ser comedida e contrita e cheia de senões de medo, arrependimento e culpa? Amar seria crime? Colher a seiva posta seria usurpação? Não queria morrer pagão, mas apagado, em minha última chama, por um sopro consciente. Desejo queimar num misto de acolhimento. Onde há corpos frios, o calor externo agasalha; onde há calor excessivo, o frio das montanhas, ou as brisas, que junto a terra chegam, equilibram a sensação, eivando o medo dos antípodas: a esperança e a calmaria. Nesse embate vence o equilíbrio. Nem tanto ao céu nem tão contrário ao firmamento.
A donzela está hesitante. Precisa da seiva, mas teme picadas de abelha! Desistir? O temor que a impede de romper as barreiras das sombras torna-a visionária, espectadora do irremediável claustro. Entretanto – diria àquela incauta moça – quem atrai abelhas e delas se aproxima, ornado de exuberantes cores e liberando aroma de rosa, corre risco iminente – Claro! – de ser polinizado! A vida é sucessão de escolhas e por todos os lados surgem oportunidades... Quem acredita no livre arbítrio, quem? Eu!
Flor não cultivada morre cedo. Amor individualista não promove saudáveis transformações. Sussurros intermitentes de cigarras, diante de ouvidos surdos, têm som inócuo e as árias não arrefecerão o coração emudecido. Diante da impossibilidade, toda irritação aparente pode ser a redenção, ou o início da cura. O broto precisa florescer, desabrochar e dar frutos, mas isso é opção. O amor necessita de alteridade para deixar de ser egoísta; os sons, sem a receptividade de ouvidos saudáveis, falam com o sincero olhar da interioridade irreflexiva. Não seria por meio da incompletude que se chegaria à plenitude? Somos, entretanto, apesar de densos, intensos demais e a intensidade do desejar é a porta que nos torna corpos no vácuo, em queda livre, desgarrados da gravidade que nos nivela a todos quando instada a desaparecer. Enquanto corpos, possuímos materialidade e espiritualidade. Com ou sem corpo de prova, existirá campo a nos unir, ou nos afastar na medida das nossas semelhanças. Estariam em nossas percepções as origens dessas forças motrizes? Ou as diferenças é que aglomerariam a todos na ampulheta do tempo, em todas as estações?
Entre o imaculado e a pecha do contato, busque a sutileza das borboletas. Elas se deixam atrair pelo vermelho – sinal de perigo ou início de polinização? E quem diria: borboletas se reúnem na areia molhada e na lama! Diante do Sol, elas se esbaldam ao sabor dos raios que, em lhe aquecendo as asas, preparam-nas para o voo.
Quando há ajuntamento de homens cada um dá ao que vê a interpretação que mais lhe apraz. Queremos respostas, mesmo sem busca. A comida pronta, requentada, esconde o calor do cozimento. Por que pressa?
No sepulcro de um sábio, num templo esquecido no tempo e pouco visitado, há inscrição em bronze, que a tudo resiste, incólume:
hohohoh... oh(0) = 24
Um filósofo, ao passar pela tumba, questionou: “O que seria isso? Que intenção teve o sábio ao despedir-se do mundo desse modo? Que impressão da vida ele nos quis deixar, que legado?”.
Tempos depois, um matemático, diante da mesma inscrição, esbravejou: Nossa! Que magnífica composição de funções! Certamente, o “h” decomposto “n vezes”, em função de zero, revela que a vida se reduz ao símbolo perfeito da geometria, a circunferência! É no vazio e, a partir dele, que todo o universo se proclama e se expande indefinidamente! Sendo a vida uma expansão, retornaremos ao status de pó... E o segundo membro da equação, dando 24, talvez revele o dia da partida. Teria esse ilustre homem nos deixado em pleno Natal?
Complementando as reflexões do matemático, o garoto que assistia à retórica grandiloquente do pai, comenta:
– Não é isso, papai! Esse túmulo é do velhinho que todo ano, durante o Natal, faz criancinhas felizes, entregando presente para todas elas. E a intenção dele foi a de eternizar a singela e autêntica forma de se apresentar. Lembra como o Papai Noel cumprimentava as criancinhas? Reconheceria o famoso “hohohoh... oh”? É isso, Papai! O símbolo “(0)” nada mais é que a representação simplificada do trenó, visto de costas, e o 24 é a simbologia do Natal. Portando, papai, mesmo antecipadamente, viva o Natal! “hohohoh... oh”.
Naquele instante, um pássaro multicolorido, trazendo uma flor vermelha no bico, solta pétalas sobre o mausoléu, pousa numa árvore próxima e inicia lindo canto que ambos, pai e filho, conseguem decifrar.
Aproxima-se a primavera.
Crato-CE, 20 de agosto de 2011.
21h46min
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