Justapostos

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Anos-luz daqui, bem distantes de qualquer arco-íris, um médico-cirurgião precisou, com urgência, operar uma linda princesa adolescente. Ela sobreviveu, cresceu e, num momento de pesar, encontrou seu amor-perfeito.

No império onde a princesa crescera quase tudo era aos avessos, mas havia felicidade, mesmo quando o monarca cometia injustiças.

O rei não era típico mandachuva e estava longe de ser ditador... Ele era, isso sim, artista de mão cheia! – Adorava contemplar os belos quadros do pintor dos girassóis, criava animais exóticos, como os ghulbtossauros rex, e lia os mais lindos e fantásticos contos de amor, de guerra.

Na corte havia muitos soldados. O reino vivia em harmonia, mas não desguarnecia seu aparato defensivo, pois nação com exército fraco é nação sem forte soberania. Havia oficiais: capitães, majores... E, também, o imponente tenente-coronel Justino, que adorava evitar que Quirino, o coronel perversinho, maltratasse os subordinados, distribuindo pontapés.

Justino era benevolente, calmo e adepto do delicioso chá de erva-doce que aprendera a degustar com o tio-avô de Firmino, Grão-Pará de antigo imperador de Fuzius, reich ancestral de muito além das fronteiras de Ghulbt, o país remanescente da explosão de neutronius, a galáxia perdida. Nos serões em família, ele se esvaía ao sabor do chá, inebriando-se ao menor rumor da fragrância que percorria os arredores da cozinha.

Já o coronel Quirino, o perversinho, era descendente dos Ghulbts, reino onde habitava o povo mais guerreiro do deus Telos. A rispidez com que julgava os concidadãos e o trato impiedoso com que liquidava os inimigos derrotados em conflito, eram qualidades essenciais aos líderes que habitavam galáxias extraterrenas – o Perversinho não atrasava nenhuma admoestação .

Entre os ghulbtianos, apesar do prazer que sentiam em guerrear, as festividades eram inequívocas demonstrações de poder. Com os soldados retornando das trincheiras, depois de combaterem nas fronteiras com os Mosoquianos, outro povo aguerrido, todos estavam eufóricos. Afinal, a chegada da nova confraria de violeiros dissidentes do circo mambembe de Nappan, um vilarejo de Ghulbt, coincidia com a vitória de mais uma batalha. A festa seria das melhores, com muita bebida, comida e damas para os cavalarianos!

Nessas ocasiões, dona Naná, doce e fiel serva, preparava feijão-verde para o rei – o bondoso homem carecia de cuidados e não poderia ficar ao deus-dará, nunca. ‘Feijão dá sustança, meu rei!’ – Sempre advertia a cortesã.

– Meus soldados estão chegando, Naná! E você me obriga a tomar caldo de feijão-verde? Isso é uma afronta! Meus guerreiros querem esbanjar-se na bebida, na comida, com as mulheres...

– Vossa Majestade está velho. Precisa comer com serenidade... Nada de bebidas, entendeu?

– Quem, afinal, é o rei de Ghulbt? Responda-me, Naná!

– Mais um pouquinho de caldo...

– Por Telos, eu imploro! Eu sou o Rei, Naná! Obedeça-me!

As ponderações do soberano eram inúteis. Vencido, ele se deleitava com as iguarias postas à mesa.

Os convidados chegam. Sem muita formalidade, comem, bebem e arrotam, copiosamente. A algazarra parecia generalizada até dois soldados iniciarem uma rápida discussão. De repente, um deles, à queima-roupa, desfere punhalada no contendor que desfalece, imediatamente, em decorrência da brutalidade da agressão. O militar assassino era neto de um antigo guarda-noturno odiado pelo primeiro-ministro do rei. Tentam prendê-lo, mas o infrator foge, sem deixar sinais de vida – assassino contumaz, tornara-se especialista em fugas.

O banquete não foi interrompido com a morte. Em Ghulbt, a morte e a vida caminhavam abraçadas por tênue elo. Que os parentes e amigos chorassem a partida do ente querido. Os demais, o que teriam com isso? Que os vivos enterrem seus mortos sem atrapalhar quem deseja diversão. Assim, entre choros, lamentações e gritos de fúria, com promessas de vingança, a libação se delongaria até o nascer do novo dia, quando, certamente, pensariam no velório e enterro do soldado morto.

No dia seguinte, na hora do discurso real, o soberano decretou feriado e luto oficial na cidade:

– Meus servos! A cota de vinho da noite acabou. Aliás, nós secamos todas as vasilhas!

A multidão entra em polvorosa.

– Silêncio! – Exclama o rei. – Ainda estamos bêbados, é fato! Continuamos todos embriagados, mas devemos enterrar nosso soldado! Morrer durante o baile da vitória, preferir à morte a libação é erro imperdoável, nossos bravos heróis da guerra sabem disso. Foi morte entre irmãos e o sangue derramado servirá para fertilizar o solo do nosso país. O humilhante é morrer em mãos inimigas... O que não podemos nos esquecer, entretanto, é de que a vida de um soldado é nobre! Todos para o velório – Concluiu.

Em Ghulbt, festa e consternação se misturavam e as visões do mundo e da realidade se interpenetravam, sugerindo e insinuando um vazio dentro da completude.

Durante as exéquias, a dualidade se confundia em todas as suas nuances e a aroma da água-de-colônia da princesa se perdia diante do odor emanado pelo esquife do mal-afortunado homem. Do vestido cor-de-rosa da nobre senhorita, pendiam feixes bordados de tecido esgalhado harmoniosamente pelo chão.

O mal-estar era geral. Morrera excelente soldado, homem sempre bem-humorado, que nunca dera trabalho ao rei.

A princesa, bem-vestida e reflexiva, tira uma flor do jardim do castelo e inicia silenciosa oração-pedido: “bem-me-quer, malmequer, bem-me-quer”... “Será que me desposarão antes que eu morra? E se meu pretendente sucumbir em combate, antes de deixar varões para nos suceder...” – Havia sofrimento nas reflexões da linda herdeira.

De repente, destacando-se na multidão, surge um belo príncipe. Ele se aproxima e a conforta, dando-lhe suave beijo na mão. Ambos bem-nascidos, ele de falar eloquente; esquecem-se do motivo da constrição que os uniu e, antes que a bela moça perguntasse ao deus Telos o porquê de ter as preces atendidas imediatamente, pois era o primeiro dia em que, diante da morte, pensara na própria descendência, o padre inicia o sermão:

– Bem-aventurado todo aquele...

A voz do religioso, apesar de espalhar conforto a todos, era, todavia, malsoante e o sermão teria continuado, se o rei, ajoelhando-se diante do altar, não tivesse posto fim à missa. Altivamente, o rei repetiu, um sem-número de vezes:

– Telos, tende piedade de nós! O poder extra-humano, que transcende ao nosso entendimento, é o melhor e mais potente contra-ataque, é a forma pós-histórica de se reinventar a vida em sociedade. Meus homens estão morrendo e meus novos jovens guerreiros ainda não estão prontos. Piedade, Telos! Piedade, Telos! Piedade, Telos!

O príncipe, percebendo a aflição da princesa amada, aproxima-se do soberano, toca-lhe o ombro e proclama:

– Meu povo, majestade, em nome do meu amor por sua filha, estará, de agora em diante, ao lado do seu povo. As angústias findarão aqui, pois nossos reinos, unidos, conquistarão a paz tão desejada.

O rei ergueu o olhar para o céu e, entre lágrimas, confessou:

– Estou velho demais para as guerras. Os homens, jovem e corajoso estranho...

– Justhus, majestade! Rei dos Menphisteus.

– Justhus, meu jovem rei, os homens precisam de amor mútuo, apenas disso. O ódio e as guerras, apesar de belos, causam dores eternas àqueles que ficam, esperando o retorno de quem partiu. Dor maior, aquela que sangra por toda a vida, sentem as mães quando os filhos vão e jamais retornam.

– Precisamos das guerras, meu rei.

– Não, meu jovem! Precisamos é de paz!

– Conceda-me a honra de me casar com sua filha, meu nobre e velho homem.

– Sim, permito, mas me prometa que lutarão pela paz, sempre que possível.

– Dou minha palavra!

– Então, vamos continuar o banquete! Quero que o casamento da minha filha seja o mais lindo de toda a história da nossa civilização.

– E será! – Responde o pretendente.

No ano seguinte, após a celebração do casamento, o rei decretou novo feriado no reino, em comemoração ao herdeiro recém-nascido. No mesmo instante, no império que fica a anos-luz dali, nascia o arqui-inimigo do futuro soberano de Ghulbt.

Crato-CE, 6 de setembro de 2009.

20h05min

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Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 11/05/2013
Código do texto: T4285717
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