O Rei dos Lobos
Trabalhava com desespero. Vê-lo, musculado e feroz, causava pasmo. Era um homem solitário, sóbrio, quase mudo. Lucano se chamava. Crismaram-no os frades assim para facilitar o destino. Queriam-no religioso e o evangelista Lucas, seu padrinho, tinha, à margem de diminutivos, aquele nome. Soava estranho porque, nele, tudo era diferente. Onde pousasse os olhos provocava inquietação. Alguém se assustava ou fugia, alguém ardia de paixão. Uma mistura de temor e desejo era o sentimento que provocava nas mulheres por quem, de resto, nunca se interessou. Tinha medo de amar, confessara a Damião, o Abade. Dizia-se, no povoado, que seria ele o lobisomem que assustava as virgens em noites de lua nova e as velhas em todas as demais noites. Assobiava e os lobos vinham comer-lhe á mão e com ele dormiam na maior pedra da serra em noites serenas de verão.
Tinha o respeito da Marta Pinta, a patroa, mas nem com ela prolongava a conversa. Quando, já adolescente, deixou o mosteiro onde o criaram, cortou com os frades e nunca mais voltou. Queria começar a vida sem guias, sem tutelas, sem inibições ou regras. Sair para o mundo e provar a terra, saber dos homens laicos, amar a vida selvagem sem ter de escutar sermões ou reparos. Ainda o tentaram demover pondo no mundo o mal possível e mostrando-lhe a segurança do mosteiro onde havia fartura e onde poderia contar com o afeto de todos. Algumas letras aprendeu além da reza da missa, em latim, que pouco jeito davam a quem precisasse mesmo de trabalhar para o sustento naquele ermo. Foi por isso que, valendo-se do físico, arranjou aquele trabalho que variava com o dia e com a estação do ano. Trabalhos no campo, guarda do gado, corte de mato, rachar e empilhar a lenha e arrumação dos armazéns tudo lhe cabia como tarefa porque ele fora contratado para fazer o que fosse necessário. Cansava o corpo mas o espírito cirandava pela encosta, ia a banhos à Figueira da Foz, mantinha secretos diálogos com o Abade Primaz e, invariavelmente, acabava na imagem de mulher, figura delida, de seio generoso. Seria ela a sua mãe? Viver com dúvidas e sem saber das suas origens começou a ser doloroso. Tanto que, um dia, decidiu voltar para fazer perguntas. Pressionou o Abade e inquiriu os frades. A ambiguidade das respostas e o desconforto dos inquiridos levou-o a pesquisar os acentos da Igreja e teve sorte. Achou, finalmente, a página onde se narrava o seu batismo e a sua recolha no Mosteiro por ter pai desconhecido e ter a mãe, Belinda, morrido de parto sem deixar família.
De novo na aldeia assuntou com os mais velhos a história de Belinda. - A mulher do Abade?, perguntaram. – Sim, essa mesma, respondeu escondendo a emoção. E soube, então, dos amores clandestinos, do escândalo que foi ter sido recolhido pelo Superior, seu pai, o castigo do Papa a sitiar, nos limites do edifício, o prevaricador a quem, no entanto, não retirava o múnus e, sobretudo, da existência de uma mulher selvagem, parente afastada de Belina, muito mais nova que ela, que tinha a particularidade de aparecer rodeada de lobos para assombrar as gentes e lhes levar as ovelhas. Recordou-se, então, Lucano, do afeto que o unia ao Abade, da proteção especial que ele lhe dedicava, do cuidado posto na sua educação e, mais intensamente, das suas lágrimas quando saiu sem olhar para trás. Decididamente a sua vida não cabia naquele povoado e bom seria tentar descobrir o resto da sua história forçando um encontro com a mulher que, garantia o povo, acompanhava os lobos.
Tocaram, lúgubres, os sinos a dar a meia noite. De saca a tiracolo, Lucano saiu para a serra. Um cobertor, um pedaço de pão, um frasco de bagaço era o que levava consigo. Em vão chamou os lobos na mira de ver a mulher que os acompanhava em noites luarentas como aquela. Acabou deitado na fraga, cansado da caminhada pelas veredas da serra. Quando adormeceu viu-a, cabeleira longa, trajada de pele de cabra, olhar claro e hostil, se possível ainda mais selvagem que no retrato narrado pelas gentes da aldeia. Sonhava. De madrugada, porém, acordou quando sentiu latidos próximos e voltou a chamar os lobos. Acudiram ao chamado meia dúzia de animais e a mulher, ainda jovem e aparentemente normal. - Vim porque os lobos me trouxeram aqui - disse. A seu convite sentou-se na pedra, aqueceu-se na fogueira, comeu um pedaço de pão e tomou um gole do bagaço. Falaram pouco mas havia uma forte empatia entre eles. Por fim, satisfazendo a inquietação dos lobos perante a fogueira, ela despediu-se e desapareceu.
Lucano ainda vestiu o hábito dos irmãos menores para tentar fixar-se no Mosteiro mas, logo que o velho Abade morreu, poucos meses depois, recuperou a roupa secular, carregou a samarra e o cajado e, tal como da outra vez, saiu sem olhar para trás. Dirigiu-se á serra e nunca mais ninguém o viu até aparecer com a mulher selvagem e meia dúzia de lobos a rodear a aldeia na romaria de S. João.
FIM