VITRAIS
VITRAIS
A vida é feita de pedaços. De retalhos. De cacos de emoções. Um grande mosaico. Um ser e não ser. Sendo, está longe; não sendo, tão perto está. Um tic-tac do velho relógio. Um tic, sim; um tac, não! Como na balada "The old clock on the stair" de Henry Wadworth Logfellow, 1807-82: um dos poetas norte-americanos mais populares de sua época, em que Machado de Assis topa com o famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! "Não eram golpes de pêndulo, era o diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! (...) a noite era a sombra, era a solidão. Tic-tac, tic-tac. Ninguém (...) em parte nenhuma..."
Bem assim o ofício solitário de juntar pedaços. Nada, a não ser o tictaquear de um velho carrilhão...
Cada fragmento ajustado, deixa no mosaico, as linhas azinabradas do tempo...Never, for ever! - For ever, never . O carrilhão. A solidão...
Desde a adolescência, minha coleção de lembranças vão sendo coladas nesse grande painel da sombria catedral. Parecendo que estou no Castelo de Otranto, onde a qualquer momento: Crec-crec, Crec-Crec uma armadura fantasma possa surgir por detrás das medievais colunas na imensa nave, e vazia reclamar sua alma interna.
Alguma de minhas lembranças se perderam não sei em qual fosso cavado pelos anos.
Amigos e entes queridos, a clamar desprendidos das soldas do chumbo. Ficaram os buracos, com se fossem chagas abertas. Nunca mais os verei em harmonia no painel, mas estão ali, de qualquer forma. Só que mais tristes e sem o brilho das cores, caídos na soleira dos vitrais.
Só o verde acre do zinabre ficou...
Os vitrais em sua etérea sublimação me ensinaram muita coisa.
A vida é um mosaico de histórias. Acabei por aprender o Ofício de Juntar Pedaços.
De todo o ofício papai me disse: - Filho, o mais difícil é juntar vidas despedaçadas!
Aprendi com ele a urdir com tentos de couro, as peças que formam o artesanato da vida.
O Grande Artesão, fixa nas paredes do Galpão, os nomes dos que mudaram desta estância e foram morar naquele Planalto tão longe e tão alto. Sumiram de nossos olhos, só ficaram na memória, como chapéus velhos.
Nunca mais os veremos a não ser nos mosaicos da lembrança, no ressoar dos passos dos que vem e se vão sem nada levarem.
Gosto dos vitrais, digo que os amo. Do silêncio de sua luz filtrada nas enormes janelas das catedrais e das capelas castelares. Gosto de tê-los em minha companhia.
Houve tempo, em que me importava com tudo. Depois com um pouco menos. Hoje, pouca coisa ou quase nada me importa de fato, além dos pedaços que junto das pedras do assoalho do enorme e silente galpão.
Sou apenas um artesão de mim mesmo tentando juntar os fragmentos para filtrar alguma luz. Seguindo e treinando a ficar cada vez mais velho. Aprendendo a moldar as emoções da vida. A encaixar os pedaços. Ora de couro, ora de cristal.
Só a saudade, esta ainda não aprendi a acertar o veio do corte. Permanece enorme. Inteira em meu coração.
Um dia, será estilhaçada para compor o Vitral do Grande Galpão, ou da Veneranda Catedral Gótica. Os pedaços conversarão entre si e contarão da minha existência, o que restou.