A vela

- Vou te acompanhar.

- Não, não vai não.

- Por que não?

- Porque você não precisa ir, oras.

- Já estou aqui embaixo mesmo. Vou acompanhar você sim.

A noite estava marrom. Não estava tão escura quanto costumava estar, talvez fosse porque a manhã estava próxima. A lua enterrou-se sob uma nesga densa de nuvens azuladas e espinhentas. Os postes estavam apagados e mesmo que estivessem ligados não poderiam desfazer os laços da noite. Os garotos saíram do Prédio de Quartos e antes de pisarem na calçada acenderam uma vela de Luz. Por um instante a frágil luz amarela da chama iluminou toda a rua e em seguida diminuiu, formando um recanto seguro de calor e luminosidade. Eles entraram no espaço iluminado e começaram a andar o mais rápido que podiam. O vento trazia poeira de algum lugar distante que se misturava aos jorros de sombra formando tentáculos nebulosos que mantinham a cidade presa à noite. De toda parte, os lagartos do escuro observavam a bolha de luz. Qualquer descuido dos garotos ou mesmo um bruxulear da vela seria a oportunidade perfeita para eles atacarem. Amontoavam-se em cada cruzamento, enroscavam-se nos postes e nas árvores e olhavam do alto das placas.

Os garotos dobraram a esquina e ganharam uma avenida longa e suja. Cheia de ratos famintos, de baratas velozes e de lixeiras mal-cheirosas. Eles conversavam baixinho, para que ninguém os ouvisse. Andaram até o final da rua e seguiram na direção de uma ponte. A vela continuava firme e, aparentemente, era ela que mantinha os lagartos longe deles. Sua luz dissipava a noite e tudo que estivesse sob a proteção dela não podia ser tocado pelas sombras. Os dois atravessaram a ponte sem olhar para baixo. O rio era rápido e brilhante, como se suas águas fossem de diamantes fluidos. Andaram mais um pouco e logo estavam diante do prédio onde um deles morava. Eles se despediram com um abraço tímido e se separaram. Enquanto um deles subia a escadaria que levava ao seu andar lar, o outro voltou pelo mesmo caminho por onde viera sob a luz da vela.