Carne Plástica

- Ei, você! Vem cá!

Andando às pressas, não dou a mínima para o que ele fala. Já são 23h00, e todo passo que dou ecoa pelo beco vazio. O bêbado continua me chamando, dizendo vulgaridades, mas sei que não posso sucumbir a raiva. Essa foi a primeira lição que aprendemos depois da invasão: não faça nada, ou morrerá.

Chego em casa poucos minutos depois. Não é bem uma casa, é um quartinho imundo numa pensão, o único que consegui alugar após a morte dos meus pais. Trabalho como garçonete das 19h00 às 22h30, um dos empregos considerados aceitáveis para gente de minha "espécie".

Deito no magro beliche, mas não consigo dormir, o que acontece frequentemente agora. Assim que fecho os olhos, imagens vermelhas me preenchem. Faz tanto tempo, porém não consigo esquecer: as naves brancas como que caindo do céu e as pessoas em pânico, chorando, gritando, enlouquecendo. Eu tinha nove anos na época e nosso planeta vivia em paz, embora fosse frágil. Os invasores pareciam saber disso, pois tinham a mais alta tecnologia e vieram em grande quantidade.

Nós resistimos. Até o fim. No início, eles tentaram ser amigáveis, falaram que o planeta deles havia sido destruído, queriam ajuda. Nunca soubemos como eles nos encontraram, nem sequer pensávamos que existia outros seres vivos além de nós no universo. Quando viram que não cederíamos, nos atacaram violentamente. Tínhamos armas, mas não estávamos preparados, nosso povo e exército eram menores. Foi a maior guerra que nosso mundo já teve, pior que aquelas nos livros de história. Naves não paravam de chegar, barreiras foram criadas e quebradas e houve traições de ambos lados. Chances para nós? Nenhuma; os que acreditavam na vitória desanimaram-se, desistiram da luta. Perdemos milhões de pessoas, eles também. Quando acabou, não nos importávamos mais com o destino do nosso mundo. Em poucos meses, a mudança aconteceu: fomos escravizados e tirados das moradias. Os invasores nos subjugaram; revoltas aconteceram, mas não mostraram-se suficientes. Deixamos de acreditar.

As coisas melhoraram um pouco depois de cinco anos. Éramos rigidamente controlados, mas não precisávamos ficar trancados em prisões. Meu pai e outros puderam voltar ao trabalho, em um cargo inferior, claro. Ao voltarmos a viver como pessoas novamente, uma sensação estranha me tomou. A rua estava cheia deles. Era como se nós fôssemos os invasores e estivéssemos no lugar errado. Minha casa não existia mais, nem minha rua. A cultura dos invasores reinava, eles mudaram tudo, moldaram o planeta como queriam. Apesar da similaridade que eles tinham conosco, nunca mais me senti em casa.

Como esperado, uma nova raça foi criada. Com novas traições, grande parte do meu povo misturou-se à eles, procriaram, tiveram crianças. Os filhos híbridos eram grotescos, a carne plástica dura e flexível, eram cinzentos e apagados. A nova Ordem era fraternidade e estabilidade, os invasores queriam um recomeço feliz para nós. Mas como deixar para trás as atrocidades que aconteceram, a destruição não só de vidas, mas do nosso âmago, das características que cultivávamos? Entretanto, alguns, como os meus pais, acreditaram nessas promessas e os perdoaram, por causa dos seus espíritos benévolos; outros somente engoliram a raiva e aceitaram a oferta. Entre estes, eu.

Quinze anos! Quinze anos fingindo que estamos bem, mesmo depois da barbárie deles! Mas isso vai acabar. O que me leva a segunda lição: união leva à revolução. Já soube da existência de um grupo, os Clandestinos, que quer atiçar o povo à uma reação. Segundo os boatos, os encontros são totalmente secretos, por receio das autoridades, mas em breve eles compartilharão seus planos e vamos nos libertar. Resgataremos nosso mundo. Na verdade, isso talvez seja algo que inventei agora, com o sono me sondando. Ou, talvez, eu só queira embaralhar sua mente.

Afinal, você é um humano. Você é um deles.

(05/04/13)

Elaine Rocha
Enviado por Elaine Rocha em 21/04/2013
Código do texto: T4252302
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.