A verdadeira esmola
Numa calçada fria, suja e desolada, vi um cego a pedir esmolas a anjos e demônios que mais pareciam desfilar em passarelas perfumadas de fartura. Quão fria e desumana era essa calçada na qual havia um homem sem a permissão de ver o Sol nem a Lua, nem o claro, o escuro, nem um vulto sequer. As moedas que caíam na cuia eram escassas. Alegrava-se quando tiniam algumas delas. Ao apanhá-las, por seu peso ou tamanho, sabia seu valor exato e as escondia no bolso fundo do paletó esfarrapado, único coisa que ainda o abraçava.
Possuía raros fregueses, desses que nunca se esqueciam de pôr algumas delas, às vezes até em suas mãos. Conhecia alguns pelos nomes. Um deles, Abraão, sempre lhe dava um bom-dia forte. Mesmo sem enxergar o seu rosto, via que seu coração estava sorrindo satisfeito com a vida, quando lhe dava esmolas. Diariamente cruzava a mesma calçada e o cego lhe sentia o cheiro gostoso, os passos mansos e ritmados. Nunca lhe disse quem era ou o que fazia.
Lembro-me de que certa vez reclamou que até as esmolas estavam escasseando. A miséria estava em recessão. Não lhe respondi nem que sim, nem que não, mas ficou comigo o compromisso com a solidariedade humana e me fui. Passaram-se duas semanas até que pressentisse o meu retorno. Nesse intervalo, misteriosamente, as esmolas se multiplicaram. Cá comigo eu me perguntava o porquê do acontecimento extraordinário.
Indaguei-lhe sobre a mudança e ele falou que ela iniciara após Abraão ter-lhe trocado a tabuleta onde havia escrito cego de nascença. Ao perceber que a nova situação tinha se mantido, dirigiu-se a alguém que lhe deu esmola.
-Senhor, podes ler o que existe neste papelão que seguro firme à minha frente?
-Pois não!
-Então diga-me, o que ele quer dizer!
-“É uma pena que não posso ver as flores da primavera”.
-E foi isso então?
-Isso o quê, ceguinho?
-Nada. Deus o acompanhe, assim como acompanha aquele regador de jardim que, todos os dias, põe água no galho seco de meu coração, que só hoje passará a abrir seu botão de amargura, para que, vendo-o, outros pensem nas flores de uma primavera que dela nunca nem sequer me lembrei. Como deve ser ajardinada a alma desse ser tão benevolente que me visita e que até na sua ausência me enriquece duplamente! Acho que ele carrega n’alma as quatro estações da vida, e seu sorriso nada mais é do que um arco-íris escancarado de brilho e de amor.
Cada cego pode ter, dentro de si, quantas primaveras quiser. Uns são botões, outros galhos secos, outros flores vingadas, outros pétalas murchas, mas todos eles podem ter jardins floridos dentro de suas almas. Basta apanhar a água da vida, sorrir para o dia e aguardar que a felicidade chegue com a primavera que nunca se esquece de preceder o verão.
Os olhos do ceguinho, embora murchos, podiam ter todas as primaveras que quisesse. A verdadeira esmola que recebera, foi poder enxergar com o coração a primavera adormecida por trás de sua cegueira que só conseguia ver o valor das moedas que lhe eram oferecidas como esmola.