Estória das coisas pequenas

Parte 1 – A Morte

A criança. Sentada no chão do quarto. No meio do quarto. Olha a janela aberta que mostra todas aquelas árvores iluminadas pelo sol, o que a deixa fascinada. Ela está parada, só olhando. Não sei quanto tempo, como se este não importasse.

Ela olha toda essa luz e sente o vento quente em si, fica feliz só com isso.

Dentro do apartamento silencioso ela ouve o som dos carros, da música, das conversas, mas ali, naquele apartamento, não se produz som nenhum. A Morte chega à porta do quarto e fala para a criança – É hora de irmos, já está pronta? – e a pequena criança diz – sim – sorridente.

Lá vai ela segurando a mão da Morte e sorrindo pelo dia estar ensolarado. Vão andando pelas ruas ora de carros velozes, ora sem ninguém e emolduradas de árvores que deixam cair suas flores e folhas. Colorido, tudo colorido.

Vão as duas, a morte e a criança, e param numa casa no meio de uma ladeira. É uma pré-escola. A criança ao ver que o passeio terminou diz – Não demore viu! -, a Morte sorri e vai embora.

Sozinha, a pequena criança entra e não encontra ninguém. Começa a brincar com o que encontra, corre por toda a casa comemorando. Finalmente pára numa janela para olhar o céu e, como sempre, sorrindo diz – tive uma idéia –.

Parte 2 – Insetos

Vai para os fundos da casa, para o quintal, com um papel. Deita no chão e começa a desenhar a Morte andando com ela. Enquanto desenha sente algo andando pela sua mão, é uma formiga. Desliga-se do desenho e olha a formiga andando sobre si. Subindo pelo braço, passando pelas costas e fazendo cócegas. Ri alto, ri gostoso.

A formiga foge e ela vai atrás. Encontra um pequeno jardim, vê a formiga se esconder e uma aranha subir em sua perna. Pega a aranha que apavorada tenta correr, mas ela a segura e rindo para a aranha diz – Não tenha medo! –. Uma mosca passa e zuni em seu ouvido. Confusa, olha ao redor e não encontra nada além de várias borboletas que voam de flor em flor. Ela pega três flores e coloca no cabelo e chama as borboletas que a segue. A pequena menina dança cercada delas até as flores caírem e as borboletas irem embora. Uma das flores se mexe no chão. Era um caminho de formigas e ela seguiu. Passou pelos quartos, pela sala e chegou na cozinha. Ai havia um bolo para onde as formigas iam, uma fatia sobre um prato sobre a mesa sobre o chão. Subiu na cadeira e, olhando as formigas comerem, disse – posso também? – e como não teve resposta, também provou do bolo. Ela disse – estava bom. Até mais formigas! –.

Parte 3 – Natureza

Passando por um dos quartos ouve um som que conhece – é o mar, é o mar – diz contente. Pendura-se na janela e só vê um bosque que ao vento passar balança os galhos das árvores. – o mar deve estar atrás daquelas árvores – pensa. Sai da escola e vai pela rua até o bosque ao som das cigarras e não encontra mar algum. Pensa que as árvores falam igual ao mar e vê as folhas caindo sobre si. Encosta o ouvido no tronco para ouvir o som da voz da árvore. O vento balança os galhos e ouve-se o som do mar. A criança não entende esse mistério e sobe na árvore, pega as frutas para comer, dá aos passarinhos que ali estão e come, depois, ao piar dos passarinhos, dorme ouvindo o mar e o canto das aves, sentindo o vento refrescante do calor, dorme.

Parte 4 – Elementais

Acorda com o sol no rosto que passou entre as folhas. Boceja. Ainda acompanhada dos pássaros, desce da árvore. O céu deixou de ser azul e encheu-se de nuvens, começou a chover. A criança sorri para as nuvens e estas mandam mais chuva. Brinca com a água. Molhada, sacode os cabelos e faz os pingos voarem e assim vai dançando pela rua, escorregando nas pedras sem cair. O vento forte lhe joga água e lhe faz perder o equilíbrio diante de tanta força. Ela diz – pare – e o vento se torna brisa novamente. Vai pela terra encharcada a qual o cheiro sempre a deixa contente. Pega a terra com as mãos e cheira, enchendo-se de felicidade e passa no rosto como um perfume.

Ouve um estalo, outro e outro. É uma janela que bate ao sabor dos ventos. A criança curiosa vai até a casa e abrindo a janela vê uma vela sobre a mesa. Olha o fogo com seus olhos bem abertos e fascinada por aquela coisa viva que balança pra lá e pra cá, aquela coisa que é luz. Olhando aquele mistério, seu rosto foi lavado pela chuva, suas mãos e seus pés.

A chuva pára e ela esquece o fogo. Sente passar pelo seu rosto as últimas gotas de água enquanto olha as nuvens do céu serem atravessadas por raios solares e um arco-íris se formar. Some. Volta a atenção ao fogo e, atraída, entra na casa, sobe na cadeira e cada vez mais perto da chama sua curiosidade cresce. Olha ao redor da vela, cheira e timidamente a mão receosa tenta pegar na chama. Toca e sente queimar, recua rápido o dedo e com cara de dor o esconde na roupa molhada aliviando o incômodo. Fica mais um tempo olhando e vai embora percorrendo a casa e encontra uma cama.

Parte 5 – Objetos

Sobe na cama, pula e se enrola com os lençóis, gira de um lado para outro e o usa como uma capa, uma longa capa que em cima desta coloca uma fila de bonecas que encontra no quarto e sai andando, marchando, seguida pela fila de bonecas até que uma dessas sai da fila e rola para dentro de um dos quartos, – para onde vai? – ela diz. Vai atrás da boneca fujona e a encontra sentada em cima de um livro, cercada de pequenos animais feitos de papel, origami. Pega os bichinhos, olha e diz – que bonitinho! –. Coloca a boneca a seu lado e olha no livro como se faz cada um deles, dos animais.

Viu algo se mexer no quarto voando, uma mosca. Sorriu para ela e a fez de papel. Uma esperança parou na janela e ela teve uma de papel em suas mãos. E foram chegando pássaros e insetos e ela foi se cercando deles em sua forma de papel. Em sua imaginação, aqueles papéis dobrados também voam e cantam, os vê ao seu redor voando, vários e vários, vê o mundo feito de papel: casas e carros, se vê de papel. Pega seus pássaros e corre a casa os fazendo voar. Levando pelos ares com a sua mão o escolhido, o mais bonito, para ver o sol. Fez o sol de papel.

Parte 6 – Escrever

Correndo pela casa pisou em uma caneta. Abriu e escreveu no sol a palavra sol e grita – escreve, escreve! – feliz e assim sai escrevendo o nome das coisas nas coisas: boneca na boneca, cadeira na cadeira, mesa na mesa e na parede pára e olha como se sua imaginação lhe sussurrasse uma idéia. Um sorriso se abre e ela acha um pacote de hidrocor, sai pintando a parede. Escreve parede na parede e desenha a si mesma do mesmo tamanho original. Vai até o espelho e desenha-se novamente escrevendo “eu” acima de sua cabeça no desenho.

Ao ver a casa toda riscada, pega seu pacote de hidrocor e sai pela rua escrevendo nos muros o que ela fez durante o dia, o seu diário em uma única linha vai percorrendo a rua, escrevendo sua história, atravessa casas, frente de prédios e quando tinha grades escrevia pelo chão e assim foi até as canetas falharem e sua história acabar, - escrevi tudo – disse.

Parte 7 – Andar

Deixou as canetas de lado ao chegar em um prédio que tinha o chão quadriculado em seu enorme salão de entrada. Fingindo ser os quadrados pretos buracos, correu pisando nos brancos somente, com os braços cruzados nas costas. Em um quadrado branco tentou dar meia volta em cima dele e desequilibrando-se pisou nos quadrados pretos aproximando-se da escada. Subindo, subiu de um em um, depois de dois em dois, depois de três em três degraus chegando num lugar onde o piso branco lustroso era enfeitado de bolas negras. Ela pula de bola em bola até a outra escada. No outro andar o chão é de carpete e, como não conhecia, apalpou-o com o pé descalço aquele chão estranho segurando-se na parede e depois com a mão. Espirrou, espirrou e espirrou. Sem sapatos andou por aquele chão que coçava seus pés de um lado a outro daquele corredor, rindo, gargalhando.

Parte 8 – Voz

Nesse andar, de dentro de um apartamento aberto vêm vozes com uma música ao fundo. Vai até lá levando seus sapatos e pára em frente ao rádio ensaiando uma dança e ao ouvir a voz da cantora toma um susto e lembra que também pode cantar. Solta a voz, cantando junto e dançando. Assim caminha ao espelho e vê sua boca se mexer e a voz aparecer e fica rindo ao espelho ao ver-se rir. Canta alto querendo ouvir plenamente sua voz, maravilha-se com ela como se fosse a primeira vez que falasse, mas sendo a primeira vez que tomou consciência disso, a achou a voz mais linda de todas, até mais que a da cantora do rádio que desligou para poder cantar só, brincar com a voz.

Sentindo falta do sol, desceu até a primeira sala do prédio cantando o lálálá, inventando música para a sua voz. Cantando atravessou a grande sala quadriculada como uma bailarina, só pisando nos pisos brancos sem errar.

Na rua mostrou sua voz ao sol, às nuvens e ao vento e eles retribuíram brilhando, se juntando e ventando.

Parte 9 – Estar vivo

Indo pelas ruas, como sempre, feliz, uma folha vem a voar e lhe bate na testa ficando colada. Ela pega a folha com a mão e pára com a folha logo a frente de seus olhos segura por seus dedos. Larga a folha e olhando apenas sua mão, mexe um dedo, depois outro e outro. Mexe o braço, a perna e a cabeça, confusa com a situação. Sente o vento bater em sua pele e ela alisa o próprio rosto sentindo-se, olha ao redor, cheira o seu ser, enche-se de emoção ao sentir tudo isso ao mesmo tempo. Olha para si, grita e toma consciência de seu eterno riso, de sua felicidade e diz – estou viva, eu sou viva, eu posso, eu posso... – e sai cantando isso, pulando.

Lembra da rua em que está e com grande alegria vê a pré-escola a esquerda. Entra correndo e se joga no chão saindo deslizando pelo corredor.

Parte 10 – Dia e noite

Cansada de tanta correria, porém feliz, senta-se na janela balançando as pernas, olhando o céu da tarde, as últimas luzes do sol. O céu que escurece, o vento que esfria, as nuvens ficam douradas e em sua mente vem a pergunta de como as nuvens voam e as vê passar como naves pelo céu. Ora rápidas, ora lentas, porque? Vê cães, montanhas, flocos, bois e rabiscos de nuvens e ali se forma um teatro silencioso com todos aqueles personagens voadores que dançam de um lado para outro. Escurece aparecendo a lua que prende seus olhos com sua luz. No poste a luz acende e uma é mariposa atraída e fica fazendo suas voltas. A criança se sente como a mariposa, atraída pela lua não pensa mais em nada, apenas olha esse mistério.

Uma mão a segura pelo ombro e ela com um sorriso diz – oi –.

Vão as duas de volta, a criança e a Morte de mãos dadas, pela noite com seus postes de luz amarela, ao som das cigarras, ao perfume das flores, vão. Pela escuridão vão para casa.