O Mestre Escultor

Depois de visitar Ouro Preto e Mariana, era a vez de visitar Congonhas, municípios declarados Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade. O grupo excursionista chegara ao Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, um dos lugares mais esperados da excursão. Entre as pessoas que andavam pra lá e pra cá pelo santuário, admirando e fotografando os Doze Profetas de Aleijadinho, encontrava-se Antônio, um jovem escultor que viera na excursão com o fito de aumentar seu cabedal sobre arquitetura e escultura.

Antônio, um pouco afastado do grupo, analisava com calma e tranquilidade a estátua do profeta Isaías, no lado esquerdo da entrada da escadaria. Nesse momento algo insólito aconteceu: a cabeça da estátua rachou e seus pedaços caíram ao chão, revelando no espaço vazio que deixara um maço de folhas em forma de tubo. Admirado, Antônio trepou a estátua e surrupiou aquele maço, escondendo-o na mochila. Ninguém havia notado nada do que se passara.

Sem conter mais a curiosidade, Antônio entrou na nave do santuário e sentou-se num dos bancos; retirou da mochila o maço de folhas e desenrolou-o, descobrindo uns papéis velhos e amarelados, uma espécie de diário. Na primeira folha se lia “Antônio Francisco Lisboa – Relatos Secretos e não tão secretos”. Ainda mais curioso, passou para a segunda folha, cujo teor, numa caligrafia firme e clara, era este:

“Dia dez do mês de novembro de mil setecentos e sessenta e seis,

Valha-me Deus! Quantos e tais são os mistérios que permanecem ocultos da alma humana, seja por piedade ou não! Não precisarei de prestar aqui juramento algum para que me creiam sobre o magnífico fato que ora me sucedeu em momento em que, pela hora e lugar, poderia tratar-se de sonho ou alguma alucinação. Porquanto eu diga a verdade, o onírico jamais guiará estas linhas.

Estando-me no lugar onde começamos a erguer a igreja de São Francisco de Assis para finalizar uns apontamentos no risco da construção, surge-me, quando a noite lançava seu manto escuro sobre o céu, a figura de um anjo dos mais terríveis e formosos que jamais vira. Em breves sentenças ele assim me dirigiu a palavra: “Serás um guerreiro do Senhor. Verdugo de seres maléficos, portador de mistérios e caçador implacável”.

Tão logo disse, evolou-se como fumaça cintilante, deixando-me pasmo e sem entender bulhufas sobre tais revelações. Manuel Ataíde crer-me-ia louco se lhe contasse.”

Antônio pensou tratar-se de alguma brincadeira após a leitura da segunda folha, devido ao estranho relato. Porém, ponderou ele, os papéis eram velhos, pareciam estar confinados dentro da cabeça da estátua há séculos, é certo que tinham certa credibilidade. Passou a ler a terceira folha e assim continuou até a última:

“(...) de mil setecentos e sessenta e sete,

Encontro-me desolado. Findou-se a vida de meu talentoso e velho pai, espelho e conhecimento do que me tornei. Raios me partam, como filho bastardo, não herdarei sequer um tostão!

Nessas e noutras conjeturas reapareceu-me o meu anjo, silencioso como sombra em seus movimentos. O único som que se fazia ouvir era o som de sua voz, falando-me nestes termos: “Volto a ti, Antônio, para tornar-te membro da confraria celestial e instruir-te na arte da caça sobrenatural, cujo benefício é trazer a paz carnal e espiritual a todos os seres benévolos deste e doutros mundos. Estás preparado?”

— Ó anjo — disse-lhe eu —, vós que sois etéreo e soldado do Senhor, desconheço a razão que vos levais a escolher-me para tal encargo, assim como este sentimento que me compele a aceitá-lo, de corpo e alma. Fazeis de mim o que a providência destinou-me, amém!

— Escolhi-te — volveu o anjo — pelo teu dom e pelo teu espírito audaz. Serás esmerado na luta contra o mal, assim como és no trabalho da pedra e madeira.

E sem mais delongas o anjo norteou-me sobre como e onde caçar (...)”

“Dia seis do mês de agosto de mil setecentos e setenta e dois,

Na véspera fui acolhido como irmão na Irmandade de São José. Nosso intuito é prover assistência aos nossos integrantes e aos pobres, que nos chegam aos borbotões solicitando ajuda. Chegam também até nós toda sorte de artistas, sobretudo carpinteiros.

Nossa Irmandade também é composta por muitos caçadores como eu, mas esta função nós mantemos em estrito sigilo, sob pena de cair em desgraça eterna. As pessoas que nos rodeiam, a sociedade mineira não imaginam o que somos capazes de fazer na soledade da noite, capturando e exterminando maléficos seres que vivem ocultos e perniciosos entre nós. Só quem fora dotado com o “dom” é que pode enxergá-los. Há muito trabalho a fazer-se em Vila Rica, tanto o artístico quanto o sobrenatural. Este último nós o fazíamos mais como prazer do que como obrigação a nós designada.”

“(...) de mil setecentos e setenta e dois,

Vejo-me como um novo Dom Quixote à cata de aventuras. Sinto grande prazer em ser o suplício das criaturas das trevas, mostrando-me o mais implacável caçador de nossa Irmandade. Perdemos alguns de nossos valorosos companheiros, sem permitir que o pesar dominasse nossos corações, pois sabemos que suas almas encontrarão redenção.”

“(...) do mês de março de mil setecentos e setenta e seis,

Encontro-me no Rio de Janeiro, essa cidade de paisagens maravilhosas e inesquecíveis. Em minha juventude havia estado aqui, o que me deixou saudosas lembranças. Presentemente fui convocado, assim como um ajuntamento de artesãos, pelo governador da Capitania de Minas, Dom Antônio de Noronha, para integrarmos uma força trabalhadora na reconstrução do Forte (...) no Rio Grande do Sul. Porém, ao chegar aqui, fui dispensado dessa incumbência, o que me deixa com um tempo livre e precioso para desembaraçar-me de certos assuntos de ordem familiar e outros que tais.

É do conhecimento da ordem dos caçadores de que há muitos vampiros no Rio de Janeiro, criaturas cruentas e desprezíveis. Através de navios que zarpam da Europa eles chegam ao nosso país, e cada vez mais estão empestando o continente americano, sedentos por sangue. Além do que, são escorregadios e cheios de truques.

A despeito de toda astúcia vampiresca, nós os sabíamos caçar, e muitas vezes o conseguíamos, servindo-nos de alho que os repelem, grandes e lustrosos crucifixos que os amedrontam e os põe em sobressalto e, por fim, com rijas e pontiagudas estacas de madeiras lhes perfuramos o coração, pondo termo ao lume de seus olhos vermelhuscos. Regozijo-me por haver eliminado muitos vampiros.

Meus negócios encerraram no Rio de Janeiro, voltarei para Vila Rica, onde outros afazeres me aguardam.”

“(...) de mil setecentos e setenta e sete,

Encontro-me atribulado com tantos retábulos, mesas, bancos, púlpitos, esculturas e riscos que consomem grandemente meu tempo... Sinto também imensa falta de minha linda e ingrata mulata Narcisa, que me abandonou e levou meu filho para o Rio de Janeiro. Estão bem, certamente, longe de tudo isso.

Está cada vez mais arriscado vagar à noite em busca de monstros, as pessoas estão desconfiadas, ouvem-se mexericos da populaça de que a Irmandade de São José trama com forças demoníacas. Ignaros! Nada sabem, tudo desconhecem sobre os mistérios.

É deveras um alívio ter comigo meu fiel escravo Maurício, com quem posso contar para tudo. Maurício acompanha-me a qualquer lugar, como uma segunda sombra, sem nunca se desgostar pelos trabalhos insólitos que me ajuda a executar.

Estando sob juramento solene de nunca referir a ninguém acerca de minhas atividades de caçador, admiti Maurício como meu ajudante de caça. O meu anjo, que me visita de quando em vez, aprovou esta resolução, pois sabia da fidelidade inabalável de Maurício.

Conhecedores de minhas atribulações, certo dia vieram até mim meus outros escravos e, de bom coração, falaram-me:

— Vosmecê nos escuta, há de fazer favor...

— Perdão, senhor — interrompeu Januário —, eu mais Agostinho fazemos saber a vosmecê que vamos ajudar vosmecê... olha, enquanto vosmecê se ausenta mais Maurício... juramos, diga Agostinho, juramos que não sabemos de nada que vosmecê faz...

Era de ficar em nervos quando esses dois se punham a arrazoar sobre qualquer ninharia. Mas dessa vez eu os beijei na testa pela ideia que, em suas cacholas simplórias, forjaram para minha necessidade. Ficamos nisto: quando eu me ausentasse para tratar de meus negócios secretos, dos quais eles não sabiam ou fingiam nada saber, Agostinho, que é meu auxiliar de entalhes, se passaria por minha pessoa, simulado com largas roupas, capa e um chapelão para lhe esconder o rosto. Víamos como ele ficava ao pintar, trajado dessa forma. Januário, matreiro como ninguém, imputou-lhe o apelido de Aleijadinho, pois era de se ver como ficava encurvado e desajeitado ao entalhar as minhas estátuas.

Com essa peta, e deixando Agostinho interpretando seu papel, conseguimos encobrir as minhas ausências que, a partir dessa época, se tornaram constantes, devido às viagens a outros estados do Brasil à cata de novas criaturas sombrias.”

“Dia dez do mês de dezembro de mil setecentos e oitenta e sete,

Hoje me elevei a juiz de nossa Irmandade de São José, posição honrosa a que não pude recusar.

Orço pela idade de quarenta e nove, e há dez anos que nada escrevo. Registrarei alguns fatos dignos de nota que me hão ocorrido durante esse tempo. Como mencionei em lauda anterior, passei a percorrer muitos lugares, descobrindo muitas novas criaturas, com as quais travei pelejas mortais, sobrevivendo a todas, mas não sem graves e terríveis ferimentos. Não viajava sozinho, ia acompanhado de Maurício e muitos compadres da Irmandade, sendo que engrossávamos nosso grupo com outros caçadores que topávamos pelo caminho.

Percorrendo Minas Gerais, encontrávamos Corpos-secos, criaturas horrendas que nos atacam querendo nosso sangue; é preciso esquartejá-los, atear-lhes fogo e exorcismá-los para que morram. Para o exorcismo contávamos com alguns padres que também são membros da confraria celestial.

Ainda em Minas Gerais, caçamos os Lobisomens, que encontrávamos principalmente nas encruzilhadas. Levávamos mosquetes, bacamartes cuja carga de chumbo substituíamos por de prata, e mesmo garruchas e pistolas, todas com projeteis de prata. Embora sejam eles extremamente fortes e perigosos, nosso grupo era unido e numeroso, e tínhamos muitas armas com as quais abatê-los.

As Mulas-sem-cabeça, sem embargo de outras que enfrentei, são as criaturas que mais me causam pavor e as mais escorregadias de todas, difíceis de serem encontradas e capturadas. É pavoroso ouvir seus relinchos furiosos, ou seus gemidos como de mulher chorosa. O mais comum dos estratagemas que usamos para atraí-las é o de correr em frente a uma cruz à meia-noite, e lá surgem essas maldições.

À procura de Botos e Mapinguaris percorremos longos caminhos até as florestas amazônicas, numa viagem demoradíssima e exaustiva, muito embora o prazer da aventura tomasse conta de nossos ânimos e corações. Em barcos pelos rios caçávamos os Botos com arpões. Era uma caçada relativamente fácil.

Os Mapinguaris são grandes, com um basto pelame vermelho, pés tortos e garras brutais, o que os fazem mais fortes que os Lobisomens, mas não tão traiçoeiros e ágeis. Em verdade encontramos apenas dois deles, por viverem embrenhados nas florestas e, portanto, de dificílimo acesso. Quando encontramos um Mapinguari pela vez primeira, por um tudo-nada não tornamos essa experiência um desastre completo. Fomos pegos de surpresa pelo cheiro nauseante que a criatura exala, o que acarreta um entorpecimento dos sentidos quase fatal. O bicho, como hei dito, nos surpreendeu com seu fedor e abateu cinco de nossos companheiros. A raiva que sentimos nos permitiu enfim vencê-lo, logo o que ficamos consternados pela baixa de nosso grupo. Dessa forma, combatemos preparados o segundo Mapinguari.

Não posso descrever tudo o que vivenciamos nesses dez anos, que me parece ter transcorrido com esplêndida rapidez, explorando praticamente todo o litoral brasileiro, travando conhecimento com as tribos indígenas e vencendo feras e diversos seres que pareciam saídos dos livros de contos de fadas.

Agora, como juiz da Irmandade de São José, hei de sossegar ao menos um pouco meu espírito aventuresco, e voltar a dedicar-me aos trabalhos de pedra e madeira, e a outros que urgem minha dedicação.”

“(...) de mil setecentos e noventa e seis,

Já não me considero um caçador implacável, minha saúde se abalara com minhas andanças e aventuras pelo país, enfrentando criaturas com as quais troquei ferimentos profundos. Sou ainda um escultor, e tenho uma grande encomenda que necessita de todos os meus esforços e tempo. O trabalho se dará em Congonhas, em verdade já comecei a confeccionar as esculturas que me foram ordenadas para a Via Sacra e algumas estátuas, que planejo serem doze, representando os profetas, ambos trabalhos a serem efetuados no Santuário do Bom Jesus de Matosinhos.”

“(...) de mil setecentos e noventa e nove,

Concluídas as sessenta e seis estátuas, em cedro, para a via-crúcis (...)”

“(...) de mil oitocentos e cinco,

Em breve minhas estátuas em pedra-sabão dos profetas estarão concluídas.

Há anos que deixei de exercer minhas atividades secretas. Meu anjo nunca mais me visitou.”

“(...) de mil oitocentos e dez,

Sinto-me tão exaurido de minhas forças mentais e físicas, essa maldita doença só me causa sofrimentos e desesperanças. Meu semblante se tornou horrível, perdi dedos de mãos e pés, necessito ser carregado a todo lugar que eu queira ir. Desapareceu-me há muito meu humor jovial, agora a cólera toma conta de minhas ações e sentimentos. Já não sou mais Antônio Francisco Lisboa, todos me chamam pelo maldito apelido, que eu abomino, de Aleijadinho, antes designado ao meu bom Agostinho.”

“(...) de mil oitocentos e doze,

Impossibilitado que estou de tudo, mudei-me para a casa de minha querida nora, de quem recebo os mais zelosos cuidados e atenção. Como um sinal de que meu fim está próximo, meu anjo aparece-me, acredito, pela última vez.

Escrevo estas linhas no momento em que o vejo diante de mim, radiante e com um belo sorriso a dar-me. Ele me agradece pelo trabalho que realizei em nome da confraria celestial e pede-me, como um presente, que eu lhe entregue meu diário.

Ainda está diante de mim, sinto que tudo terminará. Bem, adeus!”

Antônio terminara de ler o diário e não pôde, sequer por um instante, acreditar que o que lera se tratasse de fatos verídicos. Não acredito, pensou o rapaz, que o mestre Aleijadinho tenha escrito estes papéis e vivenciado aquelas aventuras fantásticas.

— Bem, em todo caso — disse consigo mesmo Antônio —, tenho em meu poder um manuscrito de algum escritor antigo, isso se vê pela antiguidade dos papéis. Deve valer alguma coisa!

Guardou o diário em sua mochila com um sorriso no rosto e levantou-se, depois de horas lendo aqueles papéis. Não havia mais ninguém ali sentado. Antes que saísse da nave do santuário, percebeu algo estranho ao mesmo tempo que maravilhoso, o que lhe fez substituir o sorriso de antes por uma expressão de assombro. Ele viu um anjo, terrível e formoso, que assim lhe dizia:

— Serás um guerreiro do Senhor. Verdugo de seres maléficos, portador de mistérios e caçador implacável.