Um par de almas.
Apesar de terem estado juntos por toda a vida de cada um dos dois, havia uma coisa que ela guardava por perguntar, que desconfiava desde muito tempo, que ficava como uma dúvida que nunca era esquecida completamente e que às vezes voltava e lhe perturbava os pensamentos. Agora, depois de mais de trinta anos de companheirismo cotidiano, sentia que devia perguntar. Os cabelos já grisalhos e a fragilidade física de ambos, pareciam lhe reforçar a opinião sobre aquilo, e achava que neste momento ele haveria de admitir.
Sempre tiveram um cuidado extremo um com o outro, sempre mesmo, e principalmente da parte dele, era um cuidado que chegava a ser ingênuo em relação a ela, cuidado de quem por algum motivo imagina que a outra pessoa depende desse cuidado, senão faria coisas que se feriria a si próprio e que só teria essa noção no futuro, e aí sobraria os arrependimentos e a autocomplacência por não ter tido ninguém para lhe cuidar na ocasião. E ela recebia aquilo como quem recebe a própria vida das palmas das mãos de alguém, e adorava, e apesar disso, sempre pensava que aquilo tudo não era e nem poderia ser tão normal assim, que era incomum e raro de um jeito que só as coisas que não existem realmente podem ser.
A primeira vez que desconfiou foi muitos anos antes de concluir que as almas deles vagavam juntas e de mãos dadas há muitos e muitos tempos mais do que apenas aquele tempo de vida carnal que estavam experimentando. Foi quando ainda iria fazer nove anos na semana seguinte e caiu brincando no intervalo da aula e ele, que já tinha feito os seus nove anos dois anos antes, apareceu como quem aparece sabendo que precisa aparecer naquela hora, e ajudou-a. E ela percebeu que sempre poderia se machucar e brincar do que quer que fosse, que se fosse arriscado, ele estaria por perto para isso, para lhe ajudar quando precisasse, e foi assim que sempre aconteceu quando aconteceu algo à ela, e ela se sentia a pessoa mais segura do mundo por isso.
Mas, ainda assim, com toda a pureza que sempre rondou os dois quando juntos, ela estava já há algum tempo pensando que esse era o momento de lhe perguntar francamente o que muito lhe incomodava há muito tempo, que agora, com toda a experiência de vida que tinham, e a confiança e o respeito, ele não teria como e nem porque não lhe responder de forma sincera. E num dia em que tomavam café-da-manhã lhe pediu que alcançasse o queijo e pegou-o na mão, segurou os dedos dele que também seguraram os dela, e olhou-o nos olhos diretamente – e eles estavam brilhando, como sempre estiveram – e sem fazer prólogos e contextualizações vagas lhe disse:
- Agora já pode me dizer, querido. Onde e como esconde as suas asas?