A princesa da ilha do sal.
Havia uma deusa que habitava uma linda ilha isolada do mundo, no meio de um infindável oceano desconhecido. Alimentava-se de seus súditos – os peixes – normalmente pequenos, multicoloridos e numerosos. Ao vê-los belos sentia uma profunda tristeza ter que devorá-los para se alimentar e continuar vivendo isolada e feliz na ilha do sal.
A deusa, à noite, quando as estrelas coloriam o céu negro sobre a imensidão das águas, sentava-se numa grande pedra-de-sal e punha-se a olhá-las, admirada, triste e alegre.
Às vezes passava a noite acordada, pensativa, até a chegada do sol ardente. Aí deixava a pedra porque era a hora de apanhar os mansos peixinhos multicoloridos, entontecidos, próximos ao vai e vem do bailado da marola. Queria chorar mas não fazia lágrimas. Nunca havia derramado alguma.
Certo dia resolveu lavar o sol para destruir dentro de si certa dúvida cruel que lhe dissera um velho antepassado seu em um alvíssimo dia de verão – ele garantira-lhe que, como ela, o sol também não chorava; apenas conseguia entristecer-se vendo a água da chuva cair sobre o oceano e a ilha, e ele involuntariamente secá-la, chegando a rachar a terra e matar as pouquíssimas flores que resistiam viver ao lado da pequena deusa, enfeitando a ilha.
Ela pediu a um superior seu que lhe desse poderes para voar do solo da ilha do sal até o Sol sem ser queimada e que ela pudesse levar consigo um montão de água do oceano e lavá-lo carinhosamente.
Passaram-se anos, e a deusa não retornou à ilha. Os peixinhos multiplicaram-se tanto que atraíram outros maiores, doutras cores e semelhantes e foi criado um vai-e-vem infernal na briga cotidiana da sobrevivência, alguns alimentando-se de tantos outros. Em pouco tempo chegaram os tubarões, depois as baleias gigantes. Eram os novos moradores das águas da ilha, antes tão mansas, hoje agitadíssimas.
A deusa conseguiu realizar seu sonho: lavara o Sol que, agradecido, chorou de alegria porque havia recebido, em sua eterna isolação, o único visitante em toda sua vida.
Quando de seu retorno à ilha, a deusa, pretendendo realizar um bom pouso, diminuiu o bater de suas asas – como linda borboleta nascida de algum arco-íris e, antes mesmo que atingisse o solo salino da ilha, foi perigosamente atacada por um imenso peixe, chegando a perder parte de uma de suas asas.
-Que horror! Esta não é a ilha que deixei, lugar manso e fraterno onde moramos eu e minha alma. Cadê a brisa suave, meus peixinhos pequeninos e multicoloridos? O que terá acontecido?
Entristecida ela pediu outra vez ao seu superior que a permitisse retornar ao sol. Atendida, quando lá chegou, encontrou-o alegre a sorrir. Generosamente ele diminuiu o calor ao seu redor; lá em baixo o frio aumentou, choveu muito, a maré cresceu demais e o tempo ficou diferente.
-Veio visitar-me novamente, linda princesa?
-Desta vez, apavorada com o que vi lá em baixo no meu retorno.
Após ouvi-lo demoradamente, dele recebeu de presente uma batuta iluminada, capaz de, atendendo à sua voz, alertar os vulcões e po-los, qualquer deles, mesmo adormecido há milênios, de volta à erupção, quando assim desejasse.
E ela, ainda na casa do sol, usando o presente recebido, fez enfurecer os vulcões da ilha. Voltou radiosa, mas apreensiva. Ao chegar à ilha, as cinzas e as pedras deixadas pelas erupções de tantos vulcões dorminhocos dos quais nem sabia, dificultaram-lhe o pouso. As dunas de sal macio não haviam mais. O mar ao redor virara pequenas ilhas pétreas e sem vida. Triste, ela nunca mais pôde ver os pequeninos e inocentes peixes de que se alimentava para poder ver o sol cálido que vinha de cima do céu e a chuva que diluía o sal do oceano e brincava de derrubar as dunas salgadas, mais da solidão da ilha do que mesmo do sal deixado pela evaporação da água, esquentada pelo sol do Sol.
Pensamos pelas pernas e pelos passos do mundo, como se deuses da vida fôssemos. Há de existir os engolidos e os engolidores e jamais podemos esperar as lágrimas do sol, nem privar que a natureza, para nos ser bela, tenha que fazer o que queremos. Cada homem tem dentro de si tubarões imensos e peixinhos inocentes e multicoloridos. Viver carece ordem, posicionamentos, aptidões e, acima de tudo, grande gestos de amor: é por isso que criei esta lenda cheia de sol e de sal, tudo para nos alertar sobre o que de imprestável fazemos com o mundo, quando usamos de nosso egoísmo.